A crise é de energia
O governo Bolsonaro chama de hídrica uma crise que é essencialmente de energia. A operação imprudente dos reservatórios da bacia do Rio Paraná – Edvaldo Santana, ex-diretor da ANEEL, em artigo no Valor, atribui a operação irracional dos reservatórios aos modelos matemáticos de otimização do sistema – pode levar a um apagão elétrico no país e, ainda, “transbordar” para outras bacias hidrográficas e para outros diversos usos, como a suspensão da hidrovia Tiete-Paraná em julho. A operação inadequada dos grandes reservatórios do país pode fabricar – e fabricou – o que depois se rotula como “crise hídrica”.
Ao afirmar que a crise é hídrica, Bolsonaro desvia a atenção para uma hipotética situação imprevisível, que não tem responsáveis senão São Pedro e o acaso do clima. Segundos os relatórios do próprio governo, a falta de chuvas e a redução das vazões na bacia do Paraná acontecem há vários anos, acentuando-se nos últimos 48 meses. Isto não é imprevisível.
O que aconteceu, assim como na crise no Paraíba do Sul em 2014, no São Francisco em 2012, na própria bacia do Paraná em Ilha Solteira em 2015, é que os reservatórios são utilizados ao extremo com a expectativa de que seus volumes sejam recuperados no próximo período de chuvas. Os gráficos dos reservatórios da bacia do Paraná demonstram exatamente isto: uma utilização intensa em 2020 apostando no próximo período de chuvas, sem qualquer segurança. No Ofício 13/2021, o Operador Nacional do Sistema (ONS) não poderia ser mais claro: “a condição de afluências adversas no período chuvoso de 2020/2021 não levou a uma recuperação dos reservatórios conforme o esperado”.
A alternativa para evitar novo apagão energético no país é exportar a crise para outras bacias: romper com as regras de operação dos reservatórios do São Francisco, que se encontram com cerca de 65% do seu volume, depois de quase oito anos de seca.
Esse volume existe pela generosidade das chuvas em 2020, mas principalmente porque a nova regra de operação daquela bacia (Resolução 2081/17-ANA) impediu a sobre-exploração de suas águas para uso hidrelétrico. Na ponta da bacia do Rio Paraná, Itaipu pode operar abaixo de seu nível mínimo; Ilha Solteira e Três Irmãos terão que romper as regras operativas e as condições de outorga, paralisando outra vez a hidrovia Tiete-Paraná; os reservatórios da Bacia do rio Paranapanema já estão operando abaixo dos valores de armazenamento recomendados pela sala de crise coordenada pela ANA e as térmicas serão utilizadas na sua capacidade máxima em vários meses (em torno de 20 mil MW), sendo que especialistas nessa área afirmam que essas usinas podem não estar disponíveis para geração, por manutenção ou inexistência de combustível. Em todas as simulações, caso as chuvas do próximo período – novembro de 2021 a março de 2022 – atrasem ou não venham com alguma intensidade, 2022 será o ano do Apagão Bolsonaro. Inevitavelmente.
O Brasil tem 175 mil MW de capacidade elétrica instalada, com pouco mais de 62% de matriz hidráulica, que já foi de mais de 90% na década de 1980. A matriz térmica responde por cerca de 24% e os cerca de 12% restantes de fontes eólica e solar. Essa diversidade de fontes permitiria – e está a exigir! – uma operação diferenciada do sistema, além de uma opção clara para expansão das fontes alternativas. A título de comparação, os EUA têm uma capacidade instalada total de mais de 1.100 GW contra 157 GW no Brasil – segundo a Anuário Estatístico de Energia Elétrica 2020.
A fonte hidráulica dessa capacidade instalada tem valores semelhantes: 103 GW nos EUA, 100 GW no Brasil, sendo que, no entanto, a geração hidrelétrica no Brasil é cerca de 25% maior, ou seja, as hidrelétricas operam mais no Brasil. Fontes alternativas são 150 GW nos EUA (maior do que capacidade instalada de fonte hidráulica) enquanto no Brasil representam apenas cerca 25% da hidreletricidade.
Em resumo: a capacidade hidrelétrica instalada dos EUA é semelhante à do Brasil, as águas de seus reservatórios são mais preservadas e há, ainda, maior volume de fontes alternativas. Se é verdade que as fontes eólicas e solar são intermitentes, é verdade também que elas podem “produzir chuvas virtuais”, evitando-se descargas nos reservatórios.
Diferentemente de 2001, quando a crise energética não produziu nenhum ordenamento na gestão dos recursos hídricos, as crises de 2012 a 2018 geraram novos padrões de operação em parte dos reservatórios brasileiros, privilegiando a segurança hídrica e os usos múltiplos, reduzindo a prevalência política e econômica do setor elétrico.
No entanto, é fato que o aumento da segurança hídrica nessas bacias produz também a redução da flexibilidade na operação em outros reservatórios. Ou seja – e esta é uma conclusão com consequências: progressivamente, o objetivo de garantir segurança hídrica é incompatível com a matriz elétrica existente e o padrão de operação dos reservatórios atuais.
Por extensão, expõe um modelo de segurança elétrica não resiliente à redução das chuvas, muito vulnerável, exageradamente caro e onde a crise é a regra. Dada sua relevância na geração hidrelétrica e na transmissão de energia, a privatização da Eletrobrás vai ter consequências explosivas nas tarifas, mas também na intensidade e na frequência de novas “crises hídricas”.
As lições de diversas crises anteriores demonstram a visível fragilidade de recursos hídricos diante das mudanças climáticas; a insuficiência dos modelos de planejamento e operação de hidrelétricas baseados em séries históricas muito longas, com dados imprecisos e cada vez mais incapazes de “explicar” qualquer coisa no presente e no futuro e a necessidade de mudanças nos padrões perdulários e poluentes de uso da água.
Os tempos de hoje requerem a ousadia de reconhecer nossas limitações e a humildade de reaprender a cada dia, amparados na gestão radicalmente democrática da água e nos avanços da ciência. Nunca serão tarefas para um governo autoritário e negacionista. •