Morto aos 96 anos, o baluarte da Mangueira era um artista completo e deixa um enorme legado para a cultura brasileira. O ícone da MPB foi vítima da Covid

 

Junto com Cartola, Nelson Cavaquinho, Jamelão e outros bambas, Nelson Sargento foi um dos principais nomes da Estação Primeira de Mangueira e um baluarte do samba brasileiro. Nascido no Rio de Janeiro em 1924, Nelson Mattos deixa um legado de mais de 400 sambas compostos e uma história de luta e resistência.

A alcunha de Sargento veio depois de uma curta passagem do sambista pelo Exército, entre 1945 e 1949. Além de compositor e cantor, o artista pintou quadros abstratos e outros em que retratou o cotidiano das favelas do Rio de Janeiro. Chegou a formar, na década de 80, com Wanderley Caramba, Sérgio Vidal e Heitorzinho dos Prazeres o grupo “Sambistas pintores”.

Nelson Sargento também era escritor e ator, tendo participado nos filmes “O Primeiro Dia”, de Walter Salles, e “Orfeu”, de Cacá Diegues. O mangueirense também ganhou um documentário com seu nome, dirigido por Estevão Ciavatta.

Dono de uma voz grave e rouca, Nelson Sargento fez parte da transformação do samba e da evolução do carnaval carioca. Entre suas composições mais famosas estão: “Agoniza, mas não morre”, “Falso amor sincero”, e “Encanto de paisagem”. Junto como padrasto Alfredo Português, compôs dois sambas-enredos campeões do carnaval pela Verde e Rosa: “Apologia ao mestre” (1949) e “Plano Salte – saúde, lavoura, transporte e educação” (1950).

O filósofo do samba, como foi apelidado, também é autor, em parceria com o próprio Lourenço e Jamelão, de um dos sambas mais emblemáticos da Mangueira: o “Cântico à Natureza (Primavera)” de 1955, ano em que a escola foi vice-campeã do carnaval carioca. A composição relaciona às estações do ano ao desfile da escola e o refrão – “Oh! primavera adorada/ inspiradora de amores/ Oh! primavera idolatrada/ sublime estação das flores” – está entre os hinos do samba carioca.

Figura histórica da Mangueira, Nelson Sargento chegou ao morro da Zona Norte do Rio de Janeiro aos 12 anos de idade. A partir daí passou a conviver com sambistas veteranos do morro, como Nelson Cavaquinho, Saturnino, Cartola, Babaú e Aluisio Dias, que ensinou Sargento a tocar violão.

Vascaíno, ele trabalhou por quase 40 anos como operário da construção civil. Mesmo assim, em 1958, tornou-se presidente da ala dos compositores da Mangueira. Em 2013, foi homenageado como presidente de honra da escola.

A carreira de Nelson começou a ganhar maior destaque a partir de 1965, quando participou, junto com nomes como Paulinho da Viola e Clementina de Jesus, do espetáculo Rosa de Outro, época em que integrou os grupos A Voz do Morro e Os Cinco Crioulos. A essa altura já era conhecido pelas participações no Zicartola, restaurante de Cartola e de sua mulher Dona Zica.

Em 1978, Beth Carvalho torna-se a primeira intérprete a gravar a composição mais famosa de Nelson Sargento, “Agoniza mas não morre”, considerado uma espécie de hino nacional dos sambistas. Com versos como “Samba/Agoniza, mas não morre / Alguém sempre te socorre / Antes do suspiro derradeiro”, a canção retrata a resistência do samba carioca.

Apenas em 1979, quando já tinha 55 anos, o filósofo do samba gravou seu primeiro disco solo. Intitulado “Sonho de Sambista”, o LP reúne alguns dos principais sucessos do compositor. Nelson chegou a lançar outros quatro discos: “Encanto da paisagem” (1986), “Inéditas de Nelson Sargento” (1990), “Flores em Vida” (2001) e “Versátil” (2008).

Nelson também esteve engajado no Festival Lula Livre e cantou pela liberdade do ex-presidente em um show nos Arcos da Lapa, em 2018. Na canção “Casaca, Casaca”, imortalizou a luta antirracista do clube do coração, nos seguintes versos: “Vasco da Gama baniu o preconceito / em nome do direito / dando razão à razão / Formando atletas de escol / na regata e no futebol / o seu nome está presente”.

O gigante da Mangueira teve sua voz silenciada de forma definitiva pela Covid-19, no último dia 27 de maio. Morto aos 96 anos de idade, Nelson Sargento deixou a mulher e nove filhos.

A morte do sambista e gênio da MPB gerou comoção na comunidade do samba. A Mangueira afirmou que a “semente plantada por ele rendeu frutos que estarão eternizados junto à certeza de que ‘O samba agoniza, mas não morre’ jamais. Vai, amigo Nelson, com seu jeito fino e elegante, se juntar a Cartola, Nelson, Jamelão e outros bambas fazer uma roda de samba e olhar por nós”.

Paulinho da Viola afirmou ter orgulho de “ter começado ainda jovem ao lado de Nelson Sargento”, a quem classificou como “uma belíssima pessoa e grande compositor da Mangueira que fará muita falta”.

Monarco, baluarte da Portela, declarou que “o samba está de luto, o mundo está de luto. Eu estou muito sentido porque nós erámos carne e unha. Eu ia na Mangueira e ele ia na Portela. Nós nos abraçávamos quando nos encontrávamos. Tinha uma união muito grande. Sambista correto. Nunca vi Nelson levantar a voz pra ninguém. Eu estou muito triste e o samba está de luto. Todas as escolas estão de luto. Descanse em paz, meu grande amigo!”

O ex-presidente Lula disse ter ficado triste com a morte do grande Nelson Sargento. “Mais uma vítima dessa tragédia que poderia ter sido evitada. Foi um prazer conviver com ele. Envio meus sentimentos aos familiares e aos sambistas de todo o Brasil. Que nasçam novos Nelson Sargento”, saudou Lula.

Em nota, a diretoria da Fundação Perseu Abramo declarou que Sargento será lembrado como baluarte do samba brasileiro e símbolo de luta e de resistência: “Ainda que vivamos tempos difíceis para a cultura, para os sambistas e para o povo brasileiro, nosso sonho e nossa disposição de seguir acreditando, lutando e trabalhando por um Brasil mais justo, mais plural e mais solidário pode até agonizar, mas jamais morrerá”.