Em cadeia de rádio e tevê, o presidente volta a desdenhar da crise, leva puxão de orelhas da CPI da Covid e é alvo do mais ensurdecedor barulhaço nas janelas das principais cidades. Para vergonha nacional, Bolsonaro decide sediar torneio de futebol

 

 

Tinha tudo para ser uma semana ruim para o presidente Jair Bolsonaro. E foi. Ele começou a segunda sob a pressão das ruas, depois das gigantescas manifestações populares convocadas pela sociedade civil em mais de 200 cidades do país e 15 capitais do mundo. Na quarta-feira, 2, num esforço grandiloquente de mostrar que está tudo bem, fez um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV e foi alvo do mais estrondoso panelaço de seu governo. Os brasileiros correram para as janelas para gritar em alto e bom som contra o governo, responsável pela morte de 470 mil brasileiros na pandemia.

Bolsonaro tentou faturar a alta do PIB – minguados 1,2% no primeiro trimestre – buscou esboçar um gesto conciliador ao demonstrar que todos os brasileiros que quiserem serão vacinados até o final do ano. E mentiu. Como sempre fez em situações difíceis, mentiu descaradamente. Deu a entender que o Brasil é o quarto país que mais vacina no planeta. Mentira. Disse que o país estava na elite do grupo de cinco nações que produzem vacina contra a Covid-19 no mundo. Mentira. E que o governo vem terminando obras paradas há décadas, como a BR-163. Outra mentira.

O presidente levou uma invertida na mesma noite seguinte. Ainda na quarta-feira, o grupo majoritário da CPI da Covid, formado por sete senadores, afirmou em nota que “a inflexão” de Bolsonaro celebrando pela primeira vez vacinas em pronunciamento nacional chegou tarde. “Veio com atraso fatal e doloroso”, diz a nota. “O Brasil esperava esse tom em 24 de março de 2020, quando inaugurou-se o negacionismo minimizando a doença, qualificando-a de ‘gripezinha’. A nota é assinada, entre outros senadores, pelos petistas Humberto Costa (PE) e Rogério Carvalho (SE), além do presidente Omar Aziz (PSD-AM), do vice Randolfe Rodrigues (Rede-AP) e do relator Renan Calheiros (MDB-AL).

Bolsonaro tenta se livrar as armadilhas que montou para si mesmo. Ao mentir, negar a pandemia, insistir na distribuição de medicamentos – como a hidroxicloroquina e ivermectina – além de movimentar a máquina federal para distribuir verbas para aliados do Centrão e apaniguados. A CPI está na coleta de provas de que o Palácio do Planalto tem uma estrutura paralela que atuou desde o início da pandemia ignorando as orientações de especialistas do Ministério da Saúde e da Fiocruz. Foi por isso que a CPI colheu o depoimento da médica Nise Yamaguchi. A Doutora Cloroquina foi à CPI e adotou a mesma tática do presidente: mentiu.

As contradições, mentiras e respostas evasivas dela, o mesmo modus operandi de aliados do presidente em depoimentos à CPI, foram evidentes. E, pior, Nise foi desmascarada ao vivo e à cores para todo o país. Na terça-feira, a médica tentou escapulir das perguntas do relator – que apontou 13 contradições evidentes – e entregou a existência do “gabinete paralelo” do Planalto – ou Ministério das Sombras, como insiste Renan – que ela mesma integrava como colaboradora eventual e pseudoespecialista. E entregou os outros “conselheiros”: o empresário Carlos Wizard, o ex-assessor Arthur Weintraub, o médico Luciano Azevedo e o deputado Osmar Terra (MDB-RS).

No momento mais constrangedor, o senador Otto Alencar (PSD-BA), que é médico, constatou que a médica não tem conhecimentos básicos de infectologia. Ela não soube responder perguntas como a diferença entre um vírus e um protozoário. “A senhora não sabe nada de infectologia, nem estudou, doutora. A senhora foi aleatória mesmo, superficial. A senhora não podia de jeito nenhum estar debatendo um assunto que não é do seu domínio. Isso não é honesto, doutora”, alfinetou.

Em vários momentos no depoimento, Nise insistiu na tese da imunidade de rebanho, que aposta na contaminação em massa pela livre circulação do vírus. A médica afirmou que a imunidade é “um fato” e que acontece quando uma grande quantidade de pessoas foi imunizada ou teve contato com o vírus. Levou uma invertida de Rogério Carvalho, que é medico. “Ser acometido por um vírus não produz imunidade”, desmentiu.

Se o depoimento da médica trouxe espanto à audiência da CPI, a sessão em que foi ouvida a infectologista Luana Araújo provocou comoção, com sua defesa enfática da ciência, contra a ignorância e a desinformação. Bolsonaro a impediu de ser nomeada secretária extraordinária de Enfrentamento à Covid-19, na gestão do ministro Marcelo Queiroga. Ela deu uma aula sobre a pandemia, demolindo, entre outras teorias negacionistas, a tese da imunidade de rebanho e condenando o chamado “tratamento precoce”. E classificou defensores do uso cloroquina contra a Covid-19 como a “vanguarda da estupidez”. “Essa é uma discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”, criticou.

A CPI ainda tem muito chão pela frente – pelo menos 50 dias de trabalhos. Mas já está no rumo de uma investigação consistente, apontando a responsabilidade de autoridades federais na má gestão da crise sanitária e condução criminosa da pandemia. O presidente da CPI confirmou que já há indícios da responsabilidade de Bolsonaro e outras autoridades pelas 470 mil mortes. “Temos evidências suficientes”, diz. Aziz considera que já existem evidências suficientes de que o governo Bolsonaro agiu “deliberadamente”, através de um “gabinete paralelo”, para atrasar a compra de vacinas, apostando tudo na “imunidade do rebanho”. “Não há mais nada a provar”, aponta.

A condução irresponsável da pandemia ficou novamente evidente ao longo desta semana. Na segunda-feira, o presidente anunciou que vai colocar o Brasil como sede da Copa América, após a Argentina se recusar a receber a competição por causa da Covid. O assunto ganhou repercussão – negativa – na imprensa estrangeira, com jornais influentes, como o Financial Times reportando a conveniência de ceder estádios de futebol numa nação em que o vírus da Covid-19 está acelerando e tornando a pandemia mais letal e perigosa. The Guardian mostrou o espanto com a decisão: “Vergonhoso”. No New York Times, Miguel Nicolélis resumiu: “Isso é uma loucura completa. É como se Roma estivesse pegando fogo, e Nero quisesse um jogo de futebol no coliseu para comemorar”.