Desde a saída de Dilma, os investimentos em obras de infra-estrutura hídrica desabaram a quase zero e o governo Bolsonaro ignora a realidade. Programas como o Água para Todos e a distribuição de cisternas estão praticamente extintos. O país caminha para uma situação de apagão da infraestrutura

 

O Brasil tem um robusto sistema de recursos hídricos, resultado de uma construção histórica que remonta à Constituição de 1988. Ao ser regulamentado pela Lei 9.433/1997, o sistema garantiu ao país uma gestão descentralizada e participativa das águas e tornou-se referência global. Os governos Lula e Dilma garantiram um ambiente propício à evolução do sistema de gestão integrada de recursos hídricos, expresso na ampliação da quantidade de Comitês de Bacia Hidrográfica – estaduais e interestaduais – criados e na aprovação do Plano Nacional de Recursos Hídricos 2006-2020, o que permitiu a implantação de vários instrumentos de gestão.

Durante os governos Lula e Dilma, houve avanços institucionais e elevação dos investimentos e aprimoramento da alocação dos recursos disponíveis para garantir acesso a água para abastecimento das pessoas e ao desenvolvimento produtivo. Entre os avanços institucionais, cabe destacar o lançamento do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a criação de uma carreira de analistas de infraestrutura para apoiar a sua gestão; a organização do Plano Plurianual; adoção de aprimoramentos na legislação de licitações, como o Regime Diferenciado de Contratações (RDC) e o lançamento do Plano Nacional de Redução de Riscos de Desastres.

A carteira de investimentos do PAC na área de recursos hídricos incluiu empreendimentos de grande porte, como canais, adutoras, barragens para usos múltiplos, empreendimentos de macrodrenagem, e investimentos para contenção de cheias, além da recuperação e aprimoramento de perímetros públicos de irrigação. Um destaque é o Projeto de Integração da Bacia do São Francisco (PISF), cuja execução exigiu que o Estado brasileiro reaprendesse a construir infraestrutura. Em paralelo, para atender a população rural dispersa principalmente no semiárido, os governos do PT apoiaram a implantação de soluções locais de abastecimento, em especial as cisternas, mas também os sistemas simplificados de abastecimento.

A preocupação com a gestão de riscos de desastres foi forte durante os governos do PT. Os municípios foram apoiados no mapeamento de áreas de risco urbanas e os estados, na aquisição de radares meteorológicos e na implantação de salas de situação. Houve também a efetiva instalação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (Cemaden) e do Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres (Cenad), que até então existiam apenas virtualmente. Ademais, para dar suporte às populações carentes durante a grande seca de 2010-2017, os governos do PT garantiram o abastecimento de água às populações dos semiárido com a Operação Carro-Pipa e o Programa Água Para Todos.

Riscos Institucionais

A reorganização ministerial promovida em 2019 pelo governo Bolsonaro transferiu toda a pauta de água do Ministério do Meio Ambiente para o novo Ministério do Desenvolvimento Regional. Se, por um lado, é um alívio ao setor estar longe do ministro Ricardo Salles e sua sanha destruidora, por outro lado, significa afastar o olhar ambiental da pauta de recursos hídricos. Além disso, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) foi reconfigurado, após passar mais de um ano sem reunir-se, tendo havido redução das representações da sociedade, assim como o número de câmaras técnicas.

A avidez dos mercados, acoplada ao garrote da Emenda Constitucional 95 – a famigerada Ementa do Teto dos Gastos –, está fazendo prosperar propostas como a do Projeto de Lei do Senado 495 que, literalmente pretende privatizar as águas e transformar os comitês de bacias em lojas para sua transação.

Todas as grandes obras de recursos hídricos entregues ou paralisadas pelos governos golpistas foram iniciadas durante os governos Lula e Dilma. No caso do PISF, do total investido até abril de 2021, 77% foram aplicados nos governos do PT. Nos 28 meses do governo Bolsonaro, foram investidos R$ 700 milhões nesta obra, o que significa apenas 3,3% do total.

Embora quase a totalidade das obras físicas do Projeto de Integração do São Francisco tenha sido realizada nos governos do PT, poucas foram as entregas no período, devido à necessidade de testar equipamentos e os reservatórios. A partir do Golpe de 2016, com a saída de Dilma Rousseff da Presidência, os governos Temer e Bolsonaro, ávidos por fazer entregas de obras, relativizaram as boas práticas de enchimento de reservatórios e de testes de equipamentos. São várias as notícias dos acidentes e vazamentos de barragens do projeto que circularam nos jornais após entregas apressadas de obras.

A incapacidade dos governos pós-golpe para construir um acordo com os governos dos estados para a operação e manutenção do PISF tem gerado despesas acumuladas elevadas, que já superam os R$ 840 milhões em valores atualizados.

Além do Projeto de Integração do São Francisco, os governos do PT realizaram um amplo conjunto de investimentos em obras estruturantes para assegurar segurança hídrica ao Nordeste. Como parte expressiva dos investimentos havia sido feita até 2015 – exceto a obra do Cinturão das Águas do Ceará, cujo início foi em 2013 –, os governos pós-golpe apenas deram sequência, nem sempre em ritmo adequado. No caso de obras que demandavam novas etapas, como é o caso do Canal do Sertão Alagoano, elas não foram asseguradas.

Os investimentos estão em queda em algumas dos principais empreendimentos estruturantes do Nordeste. O Canal do Sertão Alagoano, que demandou em 2015 R$ 411,1 milhões em investimentos, em 2020 recebeu aporte de R$ 100 milhões e, até abril de 2021, nenhum centavo. No caso do Cinturão das Águas do Ceará, os aportes caíram de R$ 208,3 milhões em 2015 para R$ 71,6 milhões no ano passado. E, até abril deste ano, zero.

A Adutora do Agreste, cujo volume de recursos de 2013 até 2015, somados, foi de R$ 749,2 milhões, no ano do Golpe recebeu R$ 183 milhões e, em 2020, R$ 148,2 milhões. Em 2021, nada. O mesmo se deu com as obras da Vertente Litorânea, que recebeu, entre 2012 e 2015, R$ 668,8 milhões e viu os investimentos minguarem desde 2016 para um patamar médio em torno de R$ 120 milhões, ano a ano, mas também não viu nenhuma cor de dinheiro até abril passado.

Ao contrário da consistente carteira de investimentos hídricos estruturada durante o período do PT, os governos pós-golpe acenam com a construção da bilionária e altamente impactante transposição do Rio Tocantins para as bacias do São Francisco e Parnaíba, no esforço de atender à expansão da soja na região do Matopiba – Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Provavelmente, mais um factoide de governos que não conseguem planejar e executar investimentos de longo prazo.

 

O golpe sobre o direito à água

Com o golpe, o semiárido perdeu o apoio para superar a insegurança hídrica, com o fim do Programa Água Para Todos, o que restringiu a execução de sistemas simplificados de abastecimento de água. O programa só manteve execuções pós-golpe porque os repasses aos governos estaduais feitos antes de 2015 permitiram a estes manter a sua implantação. No entanto, o nível de investimento atual é praticamente zero.

Vale lembrar que até maio de 2016, foram entregues 1.257.670 cisternas para consumo e 169.537 para produção, o que foi vital para superar a seca que se iniciou em 2010 e se estendeu até 2017.

 

Investimento zero para a revitalização de bacias

Os governos Lula e Dilma assumiram o compromisso de investimentos em revitalização de bacias hidrográficas, em especial a do São Francisco. A referência para este processo era o Programa Cultivando Água Boa, implantado por Itaipu e que se tornou exemplo global, premiado e reproduzido por outros países.

Na Bacia do São Francisco houve maciços investimentos em revitalização, que resultaram em melhoria nos indicadores de qualidade das águas dos rios da região metropolitana de Belo Horizonte. Vários desses investimentos vieram da carteira de saneamento do extinto Ministério das Cidades. Com o golpe, mesmo os investimentos em ações ambientais para revitalização de bacias foram virtualmente reduzidos a zero.

Hoje, o Brasil caminha para uma situação de apagão da infraestrutura hídrica. A falta de investimentos e de custeio das infraestruturas hídricas, as mudanças climáticas e a ocupação desordenada do solo geram um quadro de alto risco. Em especial, uma nova grande seca, num ambiente em que o governo abre mão de seus instrumentos para proteger a população, poderá ser catastrófica para as pessoas e para a economia. Tudo resultado do golpe. •

 

 

Risco real de blecaute. Como em 2001

 

Barbeiragem dos tucanos há 20 anos jogou o país no escuro e abriu a maior crise energética da história do país. Agora, analistas temem uma nova crise elétrica

 

Foi manchete do Valor em 31 de maio: “Risco de blecaute aumenta com piora da crise hídrica”. Segundo o jornal, o agravamento da crise hídrica poderá causar problemas de abastecimento de energia a partir do segundo semestre. Com a permanência de condições hidrológicas adversas, o maior risco é o surgimento de dificuldades na oferta de energia nos horários de pico, o que poderia resultar em blecautes.

Ou seja, o Brasil volta a sofrer de um mal que acometeu o país em 2001, quando o governo Fernando Henrique Cardoso mergulhou o país num racionamento rigoroso. O passado não é alvissareiro, mas o fato é que a história se repete. Por omissão e negligência, o governo Bolsonaro, assim como FHC, não viu acender os sinais amarelos para os riscos de uma crise hídrica grave. Agora, estamos em alerta vermelho.

O alarme de emergência hídrica emitido pelo governo federal há 15 dias acendeu o sinal de perigo na produção das usinas hidrelétricas, que representam mais de 60% da matriz elétrica nacional. O problema é a oferta de energia ficar comprometida no ápice da demanda.

“Nesse período de uma ou duas horas, que temos de usar a potência das hidrelétricas, é possível que não tenhamos essa reserva”, afirma Nivalde de Castro, coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel) da UFRJ. Com isso, há o risco de blecautes. “Não se prevê racionamento como em 2001, mas apagões pontuais”, diz Castro, otimista. Mesmo esse cenário mais crítico, de blecaute, dependerá da evolução de diversas variáveis nos próximos meses, como clima, atividade econômica e novas plantas em operação.

O ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), Edvaldo Santana, é menos otimista. Ele considera que há um sério risco de blecautes no sistema elétrico caso o governo não inicie, agora, um programa para racionar o consumo de energia. Ele entende que o país poderia repetir o quadro vivido em 2009. “Só estamos enxergando a situação do lado da oferta”, destaca.