Fábio Porchat é parte de uma nova geração de artistas que não se furta de dizer o que pensa e que faz questão de se posicionar politicamente. Atuando em várias frentes, o ator, diretor, roteirista e comediante relata até que precisou buscar um pouco de equilíbrio porque começou a falar mais de política do que de qualquer outra coisa. “Não dá para não falar de política nos últimos tempos”, afirma.

Ele não participou dos protestos contra o governo de Jair Bolsonaro, em 29 de maio, por causa do receio do coronavírus. Ele afirma que estava decidido a ir, mas desistiu após conversar com o neurocientista Miguel Nicolélis e com um amigo que ficou mais de um mês internado e ainda lida com as sequelas da doença.

Fábio disse que não ajudou a divulgar os protestos, mas que compreende o sentimento de quem foi às ruas. “Eu entendo que dê raiva. Porque esse governo mais do que fazer o que faz, ele ri da nossa cara. É escárnio”, desabafa. Ao presidente e seu governo, Fábio não poupa críticas. “O Bolsonaro foi deputado por 28 anos. Ele era uma barata. Ninguém o via, ninguém sabia o que ele falava. Ele só aparecia no programa da Luciana Gimenez. O CQC o usava para ridicularizar”, aponta.

Aos 37 anos, próximo de ser vacinado, Fábio prega cautela e diz acreditar que dá para esperar até as eleições para tirar Bolsonaro. Até suspira ao falar da eleição. Diz que vai vai fazer uma longa inspiração quando este dia chegar e vai respirar aliviado, ao constatar que o governo do inominável terá chegado ao fim. Aqui, ele afirma que tem vividos dias absurdos e que o atual governo o faz refletir sobre o impensável e absurdo que se tornou o cenário político.

Além disso, o humorista fala sobre como vem enfrentando o período de pandemia. Diz que se sente angustiado e vive o desespero por estar observando o caos. Todos os dias, tenta oferecer ajuda. Ainda assim, lembra que é possível acreditar que o país esteja amadurecendo politicamente. Fábio também comenta sobre a mudança que sua geração provou na comédia, o papel das redes sociais online e a falta que Paulo Gustavo faz ao Brasil. A seguir, trechos da entrevista à Focus Brasil.

 

Focus Brasil – Você é uma pessoa que trabalha demais, isso é público e notório. Nesse período de mais de um ano de pandemia, como tem sido para você?

Fábio Porchat – Eu estou trabalhando mais. Estou emendando uma reunião na outra porque agora não tem mais trânsito, locomoção, viagem. Então, é reunião, live, a cada hora. Termino aqui e já emendo outra. As pessoas ficaram mais acessíveis, não tem muita desculpa de “ah, estou cheio de coisa”… Porque as pessoas não acreditam. A sensação é de que já estou em setembro, um pouco na exaustão no fim do ano de tanta coisa que tenho feito, escrito, participado, inventado.

O que eu estou conseguindo fazer, mas não só por conta da pandemia, mas de um modo geral estou tentando fazer coisas para minha vida pessoal ao longo do dia. Por exemplo, antes da entrevista eu estava fazendo minha aula de espanhol. Estou conseguindo fazer minhas aulas de espanhol e inglês. Estou conseguindo não trabalhar final de semana… Se for trabalhar, tem que ser uma coisa muito específica para que eu possa ter tempo para mim. Por exemplo, fazer exercício. Estou conseguindo abrir no meio desse meu caminho isso e tentar dizer não para algumas coisas, mas vão surgindo entrevistas, questões… Ainda mais porque eu estou politicamente cada vez mais envolvido. Não consigo não me posicionar perante esse governo. Acho que é pior do que tudo que a gente já teve, dá mais trabalho e a gente precisa ficar mais atento.

Tentando ser “Poliana”, olhando pelo “copo meio cheio” e pensando que ele [Bolsobnaro] vai embora no ano que vem para todo sempre. Eu acho que são males que não tinham que acontecer, mas quando acontecem tem que nos ensinar coisas.

 

Por exemplo?

Nos ensina que democracia não é uma coisa estabelecida, que a gente tem que lutar por ela o tempo inteiro. No fim das contas, acho que as pessoas estarem politicamente mais engajadas é um ótimo sinal para o Brasil. As pessoas entendem, mesmo que “trupicando”, um pouco mais que o presidente sozinho não faz nada, que precisa do Congresso… As pessoas começaram a se dar conta um pouco de como funciona a política. Eu acho isso ótimo. É uma pena que tenha que ser na base do tranco pelo que é este governo. Mas eu sinto que a gente está compreendendo mais como funciona a política no país, se engajando mais, se interessando mais.

Bolsonaro fez a gente descobrir um monte de coisa que não sabíamos, sobre o Inep, o Ibama… Como ele vai destruindo tudo, a gente vai entendendo que existem coisas a serem destruídas. Isso vai nos despertando a estar mais conscientes, mais atentos.

Novamente, tentando ver o “copo meio cheio” isso é um bom sinal. É sinal de que estamos sendo chacoalhados, percebendo que não podemos “dar mole” que vem os ratos e tomam conta do poder. A gente tem que ficar ali cobrando. Até acho que muita gente que não era tão crítica aos governos petistas no início, talvez agora com um novo governo petista fique mais atento, seja mais uma patrulha nesse sentido de verificação dos fatos mais aguçada.

 

Você diz uma participação política mais crítica. 

É. Com relação ao que foi lá atrás. Não estou falando só da oposição, qualquer que seja o governo a oposição que for. Acho que as pessoas estão entendendo o que é ser oposição, como cobrar, como fazer. É muito ruim que a gente tenha no Brasil – desde quando começou essa retomada da democracia aí, de 1990 para cá – dois impeachments. E o tempo todo havia pedidos de impeachment para o FHC, para o Lula, há pedidos de impeachment.

É muito ruim que qualquer governo, independente de estar certo ou errado – este homem [Bolsonaro] é um monstro ele tem que ser tirado mesmo – mas é muito ruim qualquer presidente que precise ficar vencendo processos de impeachment o tempo todo. Acho que talvez isso nos ensine que não adianta colocar qualquer coisa lá que depois a gente tira. Não. Tirar é uma cagada, é uma merda. Atrapalha o andamento de toda a política, do pensamento, lá para fora é horrível o exemplo que a gente dá com todo presidente ser tirado. O aviso que se dá é de insegurança absoluta o tempo todo. Acho que no fim a gente vai aprendendo e entendo. Olha aí, comecei falando que estou trabalhado muito e terminei falando de política.

 

Desculpe por insistir, mas você falou de uma maneira muito racional sobre esse período. Você conseguiu não se desesperar?

É desesperador. É horrível. São várias coisas. Tem o perigo imediato real da própria vida, da minha vida, da minha mulher, da minha mãe. A gente está há muito tempo já nessa pandemia. No início, em que ninguém sabia nada, todo mundo podia morrer a qualquer momento, o vírus podia entrar pela janela. A gente não sabia o que era. Então, tem esse pânico. E eu fui vendo as mortes chegando perto. Antes era, “morreu fulano. “Morreu lá longe”. E, de repente, foi chegando: “o tio de um tio meu”, “um primo de um amigo meu”… Logo depois, “os pais dos meus amigos”… Dali a pouco, meu amigo próximo. De repente morreu o Paulo Gustavo. Eu tenho um amigo muito, muito próximo que acabou de sair da entubação agora, aí… Caralho, é agora, é aqui! Então, é um desespero absoluto e individual que é horrível.

Segundo, é financeiramente ver o país se desestruturar, ver as pessoas próximas perdendo tudo o que elas têm. É o pânico de as pessoas estão sem dinheiro, as pessoas estão indo para a rua, as pessoas não têm o que comer, como posso ajudar. Então, eu doei dinheiro, doei tempo, doei meu rosto, fico conversando com pessoas que eu tenho acesso como o Renê Silva, aqui no Rio de Janeiro, que tem a Voz das Comunidades lá no [Complexo] do Alemão, o Edu Lira do Falcões, tentando saber o que eles precisam e como posso ajudar.

Uma vez por dia eu divulgo alguma coisa de doe sangue, vacinação, doação de alimentos. Então, tem esse desespero e é um negócio que não tem como não se desesperar. A pandemia escancarou a desigualdade tão evidente no Brasil, mas que talvez como desculpa ou sobrevivência a gente se cegue para isso porque, se a cada pessoa pedindo dinheiro na rua a gente se desesperar, a gente morre. A gente vive num país em que mais de 50% das pessoas não têm água encanada.

As vezes falam sobre a dificuldade de fazer humor na pandemia, mas eu faço humor num país em que a cada minuto uma mulher é estuprada. O país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, onde morre um preto a cada duas horas vítima de assassinato. Então, já é um pavor. A pandemia é a cereja do bolo do demônio. No fim acho que é antes tarde do que nunca. Mas tem gente descobrindo agora que milhões passam fome no Brasil.

 

Tempos difíceis…

É exaustivo. O Bolsonaro cansa nossa vida. Outra dia eu falei: “Vocês estão anotando tudo que aconteceu?” Porque a próxima pessoa que vier vai ter que gastar quatro anos desfazendo essa loucura inteira, seja quem for.

 

Você falou sobre a necessidade de ir para as ruas. Em 29 de maio ocorreram protestos pelo impeachment de Bolsonaro. Você acompanhou?

Eu entendo que dê raiva. Porque esse governo mais do que fazer o que faz, ele ri da nossa cara. É escárnio o que esse cara faz. Ele aglomera gente, sai de moto, ri. É muito ruim ser humilhado diariamente, constantemente. A gente vai se sentindo impotente porque este homem não consegue a vacina, ele não faz absolutamente nada. Então, é difícil não querer sair na rua e gritar.

Eu não fui. Acompanhei, mas não fui. Não fui porque o [Miguel] Nicolelis, que foi no “Papo de Segunda”, disse que a terceira onda está aí, que é uma loucura sair, que não deveríamos fazer isso, a cepa indiana está chegando, o Brasil continua com 2 mil mortes por dia e que eu não deveria ir. E eu fui visitar no hospital meu amigo que se recuperou da Covid, mas não consegue falar direito. Ele tem sequelas, mas não são definitivas. E me perguntou por que eu iria ao protesto. E eu disse. que não aguento mais. E esse amigo falou: “Olha como eu estou”.

Então, com dor na alma falei para minha mulher – a gente tinha se programado para ir: “A gente não tem que ir, a ciência está falando para a gente não ir. Nosso coração pode estar dizendo, mas…” E, por isso, não fiz divulgação para irem, não quis incentivar porque acho que estamos quase lá. Falta muito pouco. Eu tenho 37 anos e vacino em agosto. É daqui a pouco. A eleição é no final do ano que vem… Dá para gente esperar. Eu sei que dói na alma, sei que dá aflição, que as pessoas não aguentam mais. Está certo. Por isso que é difícil julgar, mas a gente tem que usar mais a razão e menos coração. Então, por usar a razão, eu fiquei em casa.

 

O Porta dos Fundos vai fazer um sketch sobre a forma como boa parte da imprensa brasileira noticiou os protestos? O que você achou da cobertura, ou melhor, da falta de cobertura?

Eu achei muito curioso. Ainda não entendi. Eu queria perguntar para alguém, esqueci de perguntar isso para o Francisco [Bosco]. Por que será que não noticiaram? Não é que a Globo esteja a favor do Bolsonaro, então porque O Globo não mostrou a imagem. Eu não entendi direito, praticamente. Entendo as coisas todas, imprensa e tal… Mas queria entender, praticamente, porque o Estadão não deu uma foto de uma coisa que todo mundo comentou, que foi importante. O que ganha O Globo não mostrando? Fiquei meio querendo fazer uma análise aprofundada disso com alguém que analise isso. Mas lógico, isso dá muita vazão para piada mesmo.

 

Você sempre foi politizado?

Não. Foi com o Porta dos Fundos e com o Papo de Segunda que eu fui enveredando por um caminho de ler mais, prestando mais atenção, ouvindo. Sempre gostei muito de ouvir as pessoas, ouvir opiniões. Estou dando uma entrevista agora falando as minhas verdades, as minhas opiniões. Mas eu nunca tenho muita certeza do que eu acho, a sensação é de quanto mais eu ouço as pessoas falando, menos eu vou tendo certeza de tudo aquilo… Um “só sei que nada sei” um pouco.

Mas eu comecei a me politizar em todos os sentidos. Não só a gente falando da política nacional, mas também falando sobre racismo, homofobia, machismo… Essas lutas das quais eu fui cada vez mais tomando conhecimento e mais aderindo a esses movimentos e entendendo e ouvindo. No fim das contas, como diria a minha avó: “Deus fez o ser humano com duas orelhas e uma boca pra gente ouvir mais e falar menos”.

 

Você acha que esse é um momento em que toda figura pública deveria se posicionar? Essa é uma discussão um pouco recorrente nas redes também.

Eu acho que cada um sabe o que faz. É difícil a gente ficar cobrando do outro porque a gente não sabe as dores, as dificuldades do outro, do que o outro depende, do que precisa e pelo que está passando. Então, é difícil falar: “Você tem que se posicionar”. Eu fico tão incomodado nesse momento que eu acho difícil conseguir não se posicionar. Vai existir uma perda imediata. Você vai ter hater, vai perder seguidor, patrocínio. Então, existe uma perda real. Mas para gente poder usufruir disso é preciso abrir mão de algumas coisas. O público cada vez mais cobra da gente opinião e não dá mais para ficar em cima do muro e fazer a Cláudia Leitte no “Altas Horas”, entendeu? Não dá mais para dizer: “Sabe o que me irrita hoje em dia, a maldade humana”. Sei… “Hoje no Brasil, pra mim, o problema é o ódio, a inveja e o desamor entre o próximo”. Tudo bem, minha linda, mas a verdade é que a gente precisa ser mais efetivo e tocar nesse vespeiro. As pessoas precisam entender que não dá mais, que não pode ser assim.

Eu acho que apesar de ser de esquerda, eu não sou visto como… Como eu faço críticas ao PT, ao Lula, as pessoas não sabem muito onde me colocar. Porque hoje em dia é assim se você não é Bolsonaro, [te acusam] “petista”. Se você não é Bolsonaro nem petista, você é o quê? “Ih, acabou”. Eu fiz um sketch do Porta dos Fundos que é assim: O cara diz: “Eu não gosto do PT, eu não gosto do Bolsonaro”. E o outro grita: “Mas você é o quê, então?” E a cabeça dele explode, porque não consegue entender o que o outro é. E você pode ser crítico, você pode entender. Acho que também estamos aprendendo isso, mas não dá para discutir política em 140 caracteres no Twitter. Tudo é mais complexo.

O famoso “não tem mais jeito”, “é assim mesmo”, “é tudo ladrão”, “é tudo a mesma coisa… Isso é coisa de gente preguiçosa, de gente que não quer lutar, não quer trabalhar, não quer pensar, debater ou conversar. Dá mais trabalho, mas ninguém falou que seria fácil. É que a gente hoje é tão mimado por tudo, está tudo tão ao nosso alcance que achamos que as coisas se resolvem assim [num estalo de dedos]. Não. Para chegar aonde a gente chegou com democracia as pessoas lutaram, as pessoas brigaram, as pessoas passaram por coisas e agora talvez tenhamos que lutar de novo.

O ano que vem, eu não sei o que vai acontecer. Quando chegar ali em outubro e o Bolsonaro não chegar nem no segundo turno, vai dar merda. Deu nos EUA, deu no Capitólio e não vai dar aqui? Vai. A gente precisa ver o que vai fazer, se a gente vai precisar ir para a rua, se vai precisar gritar, quem vamos ter que acionar, mas é assim. Viver dá trabalho. Agora a gente não precisa caçar nossa comida, pode ir ao supermercado, mas precisa manter a decência. Não pode descambar para a barbárie.

 

Como você vê o papel das redes sociais? 

A rede social dá para a gente a falsa sensação de que somos importantes, de que significamos e representamos alguma coisa. Porque no fim das contas, o ser humano é muito precário. A gente é muito frágil, a gente só quer fazer parte de grupo, de tribo, só quer ser reconhecido. A gente quer ser ouvido, quer se sentir inteligente. Ninguém fala: “Eu sou uma besta, eu sou um idiota, minha opinião não importa”. A gente sempre acha que nossa opinião importa muito e muitas vezes a gente toma um susto quando vê que é minoria. No fim das contas, a rede social dá a falsa sensação de que as pessoas querem ouvir a nossa opinião, que significa alguma coisa.

 

O Porta dos Fundos é uma iniciativa que marcou a transição do entretenimento da TV e do rádio para a internet. Como é ser parte da história?

É curioso isso mesmo porque é uma geração, né? Pensando na comédia, para pensar do meu lugar aqui, é uma geração de comediantes muito autorais, não à toa que vem do stand up, que escreve os próprios textos, que vem do improviso. Então, é uma geração muito talentosa: Tatá Werneck, Gregório [Duvivier], [Marcelo] Adnet… Uma galera muito forte, jovem e que vem querendo dizer aquilo que acredita, escreveu, criou… E isso rompe com a televisão que diz o que você tem que dizer. Na televisão você não pode falar palavrão, não pode falar marca, não pode falar nome de ninguém. Tem assuntos que você não pode falar e essa geração não aguenta mais isso. E o público não sabia disso, mas também não aguentava. O público estava cansado daquele tipo de humor em que tudo era “enlatadinho”, tudo era “restritinho”, tudo era proibido.

 

Bolsonaro estava no seu radar antes de ser presidente?

Não. Folclórico. Um cara que estava no programa da Luciana Gimenez para nos divertir de tão pitoresco e absurdo que era aquilo o que ele falava. Então, não era uma coisa que eu imaginei que fosse acontecer.

 

Surreal que ele tenha virado presidente da República.

É muito. Mas outro dia, eu li um artigo, esqueci até de quem é, é até chato esquecer de quem é… Mas era bem interessante. E dizia que o Brasil nunca foi tão bem representado como agora porque o Brasil é um país homofóbico, racista, machista, agressivo, violento. Esse é o Bolsonaro. Por isso que é tão difícil tirar esse cara de lá. Porque ele é aquilo que nós somos. Ele é aquilo que o brasileiro em sua maioria é. Então, é duro. Hoje a gente fala de racismo e cada vez mais a luta é para que se entenda que o racismo é estrutural, que ele está em nós e que a luta é evitar os racismos que acontecem diariamente na nossa cabeça.

 

Você tem gente na sua família que é bolsonarista, que fala os maiores absurdos diariamente e justifica tudo? Você deixou de conviver com elas?

Tenho. Mas, não, eu converso com todo mundo. Para você ter uma noção, minha mulher brigou com o grupo da família dela, saiu e eu fiquei no grupo da família dela [ri]. Hoje em dia, na verdade, o que eu tenho nos grupos da família são bolsonaristas arrependidos: 95% de quem votou no Bolsonaro da minha família já entende que ele é um louco, que ele não tem condição de governar o país. Mas na época, em 2019, antes da pandemia e tal, eu conversava.

Pode até dizer para mim, não sabia da “rachadinha”. É, realmente, antes da eleição não se falava de “rachadinha”. Agora, um homem que apoia milícia, que homenageou milícia, que diz que milícia é uma coisa boa para o país. Bom, temos um problema grave, você apoiou esse “cara” que falou que é a favor da milícia, o “cara” que falou que tem que matar, que tem que torturar pessoas. Isso não é um ser humano, é uma loucura. Realmente, se uma pessoa na Alemanha, no meio do Parlamento, fala “quero aqui deixar meu agradecimento a Goebbels”, esse cara acabou. Ele vai preso, ele perde o mandato. Aqui, não. Aqui o Bolsonaro fala “meu voto é pelo impeachment em homenagem ao Ustra” que é um torturador, que enfiou bicho em vagina de mulher e isso é comprovado. Imagina que em algum país civilizado você exalta um torturador e as pessoas te aplaudem, comemoram? Em qualquer país civilizado, se você fala de um torturador assim você é perde tudo, você é cancelado. Aqui, não.

Então, com a família eu tento jogar. Eu tento falar: “Ué, mas você tinha dito que ele era uma maravilha”. O que se fala agora é isso: “Ah, mas era para tirar o PT, era para tirar o PT”. E aí, as pessoas morrendo, sem vacina eu falo: “Espero eu que vocês tenham entendido que ignorância e burrice são tão danosas quanto a corrupção”. E a gente agora está vendo que isso é aliado à corrupção. Não adianta “contra a corrupção eu vou votar no Hitler”. Não, pelo amor de Deus. É uma merda, é uma merda. Calma, não é assim.

E tinha outras pessoas concorrendo. Vamos lembrar que não era só Bolsonaro e [Fernando] Haddad. No início, até junho, o Bolsonaro não era a força que derrotaria o PT ou o Lula, então, é a desculpa que as pessoas arranjaram. Porque a verdade é que o problema nunca foi corrupção. O problema é outro. E é isso que fica cada vez mais escancarado e é o que eu tento falar com a família. E como eu tenho as minhas questões com o PT, com a esquerda, digamos, com o Lula. Então, as pessoas não sabem muito por onde me pegar, por onde me atacar.

Mas é muito triste ver as pessoas cegas. O que me deixa mais aflito hoje é ver como a razão não é mais um ponto para diálogo. Não adianta mais ser racional. Então, por exemplo, quando uma pessoa vem conversar comigo sobre fake news, eu respondo com fake news também. Eu jogo na arma dela.  Não adianta você falar que está comprovado cientificamente porque a pessoa inventa uma loucura.

 

Você falou do Paulo Gustavo que era seu amigo. Todo mundo gostava dele. Era quase como aquele alguém da família que se foi. Você acha que esse cara, capaz de mobilizar tantas pessoas, foi um pouco responsável pelo desgaste do governo agora?

Muito. Porque o Paulo era muito querido. O Paulo era rico, era jovem, tinha o melhor tratamento de todos, ele não tinha comorbidades, estava se cuidando e o Paulo morreu de corona. As pessoas ficaram muito, muito assustadas, muito impactadas porque morreu um ente querido delas. A mãe do Brasil morreu. De repente as pessoas falaram: “Espera aí, minha gente. Aí não, o que está acontecendo?” Acho que no fim das contas o Paulo deu uma cara para esses 460 mil [mortos], simbolizou, representou isso. Então, acho sim que é um estopim de “não dá mais”. Eu acho que o Paulo vai fazer falta pelo artista que ele era, por tudo o que ele criou e teria ainda para criar porque ele realmente era muito jovem.

Mas o Paulo também vai fazer falta pelo tipo de posicionamento que ele tinha quando a gente fala o Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo, e o filme mais visto é um cara gay vestido de mulher. As pessoas iam assistir o Paulo e ele era uma Beyoncé brasileira. É uma coisa que dá um nó na cabeça. No terceiro filme dele, que é o filme mais visto da história do país, tem um casamento gay onde ele fala para o filho coisas lindas naquele momento. E a família brasileira está tomando esse “comprimido Paulo Gustavo”, está ouvindo. Criança, velho, adulto… As pessoas mudam, as pessoas vão entendendo e se modificando. Claro, você pode ter 10% de idiotas convictos, mas as pessoas vão ouvindo, vão entendendo.

E pessoas como o Paulo que conseguiam penetrar tão fortemente em camadas tão profundas da sociedade, são perdas irreparáveis. Então, o Paulo faz falta como amigo, como parente, não vamos nem entrar nesse mérito porque é lógico, mas como artista brasileiro potente. Porque o Paulo é o Brasil que deu certo. Ele é a pessoa que vem do nada, sem recurso, mas com talento absoluto. É o brasileiro. Com dom, com vontade, com alegria, vai atrás, na adversidade, vence preconceito e ganha o jogo. E vira o comediante mais famoso do Brasil, o cara mais rico, o mais engraçado. É o cara que ganhou. É o Brasil que a gente quer ver. E quando não tem vacina é o contraponto absoluto, entre o brasileiro que a gente ama e que está sempre de bom humor, rindo, lutando e sobrevivendo, contra o brasileiro que propaga ódio, que está colocando todo mundo para baixo, indo contra a vacina.

 

Você se sente hoje no meio de uma guerra cultural?

Ah, totalmente. Eu me sinto hoje numa guerra em que estão me colocando como inimigo. Em que estão colocando os artistas como inimigo, a cultura como inimiga. Por exemplo, eu estava na Record, é porque eu era “petralha”. Eu fui pra Globo, então agora eu sou “globolixo”. Eu sou artista, então eu sou “mamador” da Lei Rouanet. Eu nunca usei Lei Rouanet na minha vida, poderia ter usado, mas por acaso nunca usei. “Ah você está reclamando do Bolsonaro porque você parou de mamar”. Parou de mamar? Quem é que está mamando? Toda a indústria recebe incentivo, recebe isenção e a cultura também, mas a cultura é que é o problema. E as pessoas não percebem o quanto elas estão sendo manipuladas.

Eu percebo que eu estou no meio de uma guerra, sim. Uma guerra que está sendo vencida porque esse governo não governa, ele se vinga. Aquela gente que a vida inteira era nada… gente, o Bolsonaro foi por 28 anos deputado, ele era uma barata. Ninguém via ele, ninguém sabia o que ele falava. Ele só aparecia no programa da Luciana Gimenez. O CQC o usava para ridicularizar. Os filhos dele ninguém nem tinha visto aquela gente. O esquema de corrupção deles é “rachadinha”, eles roubam o dinheiro do assessor. Olha que coisa mais triste, mais chula.

Essa gente estava no bueiro. Quando que você tinha ouvido falar em Damares [Alves], em [Ricardo] Salles, em [Abraham] Weintraub, essa gente estava escondida no bueiro, no esgoto. De repente o rato foi colocado ali em cima e essa gente saiu. Então, é uma gente que está se deleitando porque eles estão querendo vingar esses anos todos colocados no escuro. É meio “Carrie, a estranha”. Essa gente está fechando todas as portas e tentando matar todo mundo.

É um governo que colocou no Meio Ambiente uma pessoa que não gosta do meio ambiente, colocou nos Direitos Humanos uma pessoa que não gosta de direitos humanos, colocou na pasta da Fundação Palmares um cara que não acredita em racismo. É a negação da negação. Todo mundo que está ali é uma gente que não concorda em nada com o que está comandando. O ministro da Saúde é um cara que recomenda remédio que a saúde diz que não pode, o ministro da Educação não sabe ler e escrever, o ministro das Relações Exteriores xinga a China que é o nosso maior comprador. Então, é uma gente que odeia o que faz. Eles só querem se vingar.

Porque para eles meio ambiente é de esquerda, direitos humanos é de esquerda, defender a democracia é de esquerda. Eles nem sabem, por isso que é tosco. É uma mistura de maldade com “tosquera”.  Por isso que eu acho que em novembro do ano que vem, quando o Bolsonaro não for eleito, eu acho que vou dar a respirada mais funda que eu já dei na minha vida. A sensação que deu quando eu vi a posse do Bolsonaro em 2019 era que… eu torço pelo Vasco e uma das piores sensações da sua vida é quando seu time é humilhado pelo outro. Então, a sensação que me deu quando o Bolsonaro assumiu é que o Flamengo tinha ganhado do Vasco de 9 a 0, rebaixado o Vasco e em comemoração os torcedores do Flamengo estavam comendo o cu da minha mãe, televisionado. Essa foi a sensação que eu estava tentando. Juro por deus. Era de humilhação, de vergonha, de tristeza, de impotência, de ódio, de raiva. Era tudo isso pensando “que loucura, o que está acontecendo? Olha que ser degradante”, era essa a sensação que dava. Eu acho que quando chegar ali em novembro, no segundo turno, que o presidente for anunciado, eu vou dar o maior suspiro que já dei na minha vida. Vai sair um peso das costas, acho que até a minha psoríase vai curar.

 

Só não sabemos se ele vai querer entregar o poder numa boa.

Ah, mas aí a gente vai ter que tomar. Se ele não entregar e democraticamente outra pessoa for eleita, a gente vai ter que tomar isso aí.