Por Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas da Saúde da Fundação Perseu Abramo

 

Em abril de 2009, Organização Mundial da Saúde declarou o surto causado pela H1N1 como “emergência de saúde pública de âmbito internacional”. Em maio de 2009, a doença chegou ao Brasil. Um ano depois, em maio de 2010, após três meses de campanha de vacinação, Brasil bateu a meta, com a imunização de 92 milhões de pessoas. Ao vacinar percentual da população superior a qualquer outro país do mundo naquela que era, até então, a maior campanha de vacinação em massa do século 21, em um ano Brasil debelou a pandemia.

Os segredos do sucesso no enfrentamento da H1N1 foram coordenação federal das ações de contenção e mitigação; recursos para compra de equipamentos, insumos e medicamentos no tempo certo; compra de vacinas com antecedência, de vários laboratórios e com transferência de tecnologia para o Butantan; recursos para Fiocruz produzir o kit de medicamento com eficiência comprovada, distribuído para estados e municípios e colocado à disposição na rede de Farmácia Popular; campanha de comunicação sobre a vacina, para enfrentar fake news; mobilização de ampla estrutura para a vacinação, com calendário definido previamente e coordenação do Programa Nacional de Imunização. Tudo coordenado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Se tinha experiência de sucesso no enfrentamento à pandemias, porque o Brasil falhou tanto no enfrentamento à Covid-19? Porque chegamos a quase 15 milhões de adoecidos e ultrapassamos as 400 mil mortes em abril de 2021, em 13 meses de pandemia?

A inépcia no enfrentamento da crise sanitária não decorre da incompetência do governo, ainda que ela exista. A tragédia humanitária que o Brasil vive é resultado de escolhas. O governo Bolsonaro escolheu a estratégia de alcançar a “imunidade de rebanho” natural e não por meio de vacinas, independente do custo em vidas dessa escolha. Presidente fruto da onda antidemocrática resultante do Golpe de 2016, Bolsonaro escolheu promover o genocídio do povo brasileiro.

 

Um presidente a favor do vírus

Sob inspiração do ex-presidente Donald Trump, desde o início da pandemia Bolsonaro age em favor da disseminação do vírus e contra medidas de enfrentamento da pandemia. Sua atitude negacionista, de recusar o uso da máscara e incentivar aglomerações, é reconhecida e criticada em todo o mundo. Seu contínuo embate contra governadores e prefeitos, transformando medidas recomendadas pela ciência em estratégias de opositores para prejudicar seu governo e ameaçando intervir nas decisões, tomadas com respaldo do Supremo Tribunal Federal, criou um ambiente de desconfiança e dúvida na população, bombardeada por demonstrações opostas de seus líderes, levando a uma descoordenação nacional que impede a implantação de um plano articulado de enfrentamento da pandemia.

O incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia comprovada no tratamento da Covid-19, o mais “famoso” dos quais é a cloroquina, fez parte, desde os primórdios da pandemia, da estratégia de Bolsonaro de disseminar desinformação e transmitir a sensação de que as pessoas estariam seguras mesmo se expondo sem proteção.

Expressivo volume de recursos públicos foram destinados para a produção e compra de quantidades injustificáveis de medicamentos – o Exército chegou a ter estoque de cloroquina equivalente a 18 anos de uso.

Propositalmente, Bolsonaro criou enorme confusão entre tratamento preventivo e tratamento precoce, levando um sem número de brasileiros a se automedicarem com substâncias sem eficácia, e a retardarem a procura do sistema de saúde, com impactos sobre a progressão da doença.

Isto poderá ter efeitos mais graves, só perceptíveis o futuro, sobre a saúde individual pelo uso excessivo de medicamentos, cuja recomendação é para outras patologias. O Ministério da Saúde produziu e chegou a disponibilizar um aplicativo para “facilitar” o diagnóstico e a distribuição do chamado “Kit Covid”, objeto também de distribuição na rede pública de saúde de Manaus, às vésperas da crise de falta de oxigênio, em janeiro de 2021.

Coerente com a negativa de Bolsonaro de reconhecer a gravidade da doença – a “gripezinha” em um de seus primeiros pronunciamentos sobre o tema –, seu governo retardou, ao máximo, a realização de campanhas informativas sobre a doença. Omitiu-se diante da disseminação de informações falsas e distorcidas sobre a Covid-19, estratégias de prevenção e tratamento. Em março de 2020, chegou a iniciar uma campanha incentivando o fim do isolamento social, denominada “o Brasil não pode parar”. Somente em abril de 2021, um ano após o início da pandemia, foi lançada a primeira campanha nas redes sociais do governo e do Ministério da Saúde em defesa de medidas preventivas preconizadas pela Organização Mundial da Saúde.

Bolsonaro patrocina uma guerra de comunicação a favor de sua estratégia de “imunização de rebanho”. Não se trata de inépcia. É escolha política, feita por um presidente genocida.

 

Fracasso no enfrentamento da pandemia

A existência do SUS, com sua capilaridade e histórico de construção e implementação de políticas consensuais entre União, estados e municípios, poderia ter sido um diferencial ao enfrentamento da Covid-19. Não foi isso que ocorreu. A inação do Ministério da Saúde, com trocas de comando e adoção de uma gestão militarizada, criou um vácuo de coordenação.

O governo Bolsonaro não definiu estratégias e medidas comuns ao país para contenção e mitigação da pandemia. Não organizou uma ampla estratégia de testagem no momento oportuno, não planejou a compra de respiradores, equipamentos de proteção individual, medicamentos, seringas e agulhas, o que gerou desequilíbrio de preços e oferta de insumos hospitalares.

Somente três meses após o início da pandemia, regulamentou os hospitais de campanha, para recebimento de recursos federais – Portaria 1.514/2020. Em agosto de 2020, o Ministério da Saúde cancelou a importação do chamado kit intubação, medicamentos essenciais para o tratamento, nas UTIs, de pacientes em estado grave.

A liberação de recursos para estados e municípios avançou em ritmo lento, descontínuo e sem uma programação condizente com as necessidades do desenvolvimento da pandemia. Por duas vezes, em relatórios divulgados em junho e dezembro de 2020, o Tribunal de Contas da União apontou a omissão do governo federal.

Nada se alterou e, com a expiração dos recursos extraordinários em 2020, o segundo ano da pandemia foi iniciado com menos leitos para atender à doença.

Na falta de diretrizes federais, estados e municípios passaram a atuar de forma fragmentada, com menor eficácia do que se atuassem com base em uma coordenação federal. O Ministério da Saúde não assumiu seu papel porque seguiu ordens do presidente Bolsonaro para não fazê-lo. Além de não proteger vidas, Bolsonaro trabalha para avançar o número de mortes.

 

Insuficiência das medidas de apoio à população

Vencido pela pressão da sociedade e pela ação do Congresso, o governo Bolsonaro implementou ações de proteção à renda e ao emprego, para apoiar a população durante as medidas de isolamento social. O necessário investimento foi expressivo – R$ 524 bilhões para enfrentar a pandemia, R$ 293 bilhões dos quais para pagamento do auxílio emergencial. Certamente mais poderia ter sido feito, em especial em relação ao apoio às micro e pequenas empresas e ao programa de proteção ao emprego, mas essas medidas conseguiram evitar o aumento ainda maior da pobreza e a queda mais expressiva do PIB.

Seu impacto sobre o enfrentamento da pandemia, contudo, ficou muito aquém do esperado. Isto porque foram implementadas de forma descoordenada com as medidas da área de saúde, sem vinculação com a adoção, pelos beneficiários, de medidas de isolamento e de prevenção.

Ao contrário, coerente com o discurso negacionista de Bolsonaro e de seu governo, este investimento social foi apresentado como medida para acelerar a volta ao trabalho e a retomada do funcionamento da economia. Nem a estratégia de isolamento vertical, tese levantada pelo governo chegou a ser adotada adequadamente. Para essa estratégia seria necessária a compra de testes suficientes para realização dos bloqueios e isolamentos necessários, o que não foi feito.

Esta descoordenação se expressa também na decisão de Bolsonaro de permitir o encerramento das medidas ao final de 2020, como se a pandemia tivesse data para terminar. Ele postergou o máximo possível a renovação de todas, mesmo o Brasil vivendo o pior momento da pandemia no início de 2021. O auxílio emergencial somente voltou a ser pago em abril de 2021, deixando a população sem proteção por três meses. Sua descontinuidade, diminuição do valor e dificuldade de acesso a grande parte da população, entretanto, têm acelerado o aumento da fome, que é o problema cotidiano de milhões de brasileiros.

Faltou consistência na proteção ao trabalho e renda dos brasileiros porque Bolsonaro e seu governo discordavam da necessidade desta ação. E, obrigados a agir, quebraram seu vínculo com medidas da área de saúde. Boicotaram as medidas de proteção, porque o presidente sempre defendeu que a economia estava à frente das vidas.

 

Omissão na compra de vacinas

Se é verdade que as vacinas contra Covid-19 somente se tornaram disponíveis ao final de 2020, também é verdade que o governo Bolsonaro agiu de forma irresponsável e atrasada na busca de alternativas para imunizar a população. O primeiro Plano de Imunização foi apresentado somente a partir de determinação do Supremo Tribunal Federal.

Em realidade, o governo jamais se preocupou com uma estratégia consistente para imunização da população. No segundo semestre de 2020, o Brasil participou de estudos da fase 3 de quatro vacinas, o que o habilitava a ter preferência na aquisição desses imunizantes. Embora tenha recebido propostas para adquirir estoques dessas vacinas, por incompetência logística ou preconceito ideológico, recusou as ofertas. Recursos mais expressivos para aquisição de vacinas somente foram alocados no orçamento em dezembro de 2020 por meio da MP 1.015, quando o STF cobrava o plano de imunização.

O governo apostava em uma única vacina produzida pela Fiocruz que, mesmo muito importante, não teria capacidade de ser produzida para toda a população brasileira. Havia necessidade, ainda em 2020, de abrir diálogos com todas as possibilidades que surgiam. Tardou negociar com Butantan e até com a OMS, tendo aderido ao COVAX Facility apenas no último dia e no limite mínimo de doses. E sempre usando agressões políticas aos países fornecedores de insumos para o Brasil.

Chegamos a 2021 sem dispor de vacinas suficientes, sem estratégia para comprar volumes mais expressivos e sem cronograma de imunização consistente, além das disparatadas declarações de autoridades do governo Bolsonaro aos países dos quais dependemos para produção de imunizantes no Brasil. O início tardio da vacinação e o caos na gestão da pouca oferta de vacinas existentes indicam enorme dificuldade para o Brasil acelerar o processo de imunização para um ritmo compatível com o enfrentamento da crise sanitária.

Inegável o sucesso de Bolsonaro em sua opção pela “imunização de rebanho”: deixou o Brasil sem vacinas e os brasileiros sem perspectiva de se imunizarem em curto prazo. O aumento vertiginoso do número de brasileiros mortos a cada dia, que já rompeu a barreira de 420.000 pessoas que perderam a vida para a doença, é a resposta de um governo genocida à pandemia pelo Covid-19.