Entrevista – Jacqueline Muniz: “A operação em Jacarezinho foi uma lambança”
Por Pedro Camarão
O debate da segurança pública segue ‘cloroquinado’”. É assim que a professora da Universidade Federal Fluminense, Jacqueline Muniz, uma das mais respeitadas especialistas em segurança pública do Brasil se refere ao tema que vem dominando o debate político, a pauta da mídia e o cotidiano da população. Jacqueline fala sobre o tema com a paixão de quem se dedica a pesquisar Segurança Pública e a trabalhar diretamente na área há mais de 20 anos.
Autora e organizadora da obra “Saberes e Práticas Latino-Americanas de Polícia – Polícia, Estado e Sociedade”, livro publicado em português e espanhol e que embasa as formas de agir e pensar policiais no Brasil e na América Latina, ela é dona de um currículo extenso. Ocupou cargos no governo federal, inclusive no governo Lula e em outras administrações, e foi diretora da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro.
Em entrevista à Focus Brasil, a professora critica a ação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho e diz que a elite da polícia não deveria estar fazendo operações com frequência, e deveriam atuar apenas em situações extremas e de alta complexidade, razão de ser das operações policiais especiais. Segundo Jacqueline, o problema da segurança não demanda os bilhões que vêm sendo gastos, a solução está ao alcance das mãos.
Ela esclarece que quem inventou as polícias nas sociedades de tradição liberal-democrática foram os progressistas e que no Brasil a polícia não se tornou pública, seguindo somente como uma força estatal. “Primeiro chegou a polícia, muito tempo depois chegou a lei e, por último, há 50 anos chegaram os direitos que fundamentam e circunscrevem as práticas de policiamento”, diz. Para a professora, o debate sobre segurança pública não pode mais ficar na abstração que dissolve responsabilidades no genérico “sistema”. Indignada com o estado das coisas, Jacqueline tem pressa para produzir mudanças e alerta: “A política do medo gera o imediatismo, suprime mediações e consensos, promovendo o pensamento unitário que leva um autoritário como Jair Bolsonaro ao poder”.
Focus Brasil – Qual sua avaliação sobre a ação da polícia civil do Rio na favela do Jacarezinho. O governador e o chefe da Polícia Civil afirmam que foi uma operação de inteligência. Foi a mais letal da história. Existe algum traço de “ação tática” nisso que aconteceu?
Jacqueline Muniz – Essa operação foi uma lambança. Um desastre tático-operacional. Sequer obedeceu a qualquer parâmetro da doutrina de uso potencial e de força internacional. Sequer obedeceu a qualquer parâmetro do procedimento operacional da própria Polícia Civil – um procedimento publicado em 2 de janeiro de 2018 por cobrança e exigência dos movimentos sociais, do Ministério Público e da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e de especialistas que atuavam na ação civil publica do caso da Maré, que visava controlar, pactuando protocolos de operações policiais. Sequer responde a outro protocolo de operações policiais, de 2 de outubro de 2018, também sob exigência da sociedade civil organizada, construído pela antiga Secretaria de Segurança Pública que foi desativada pelo ex-governador Witzel. Enfim, a operação no Jacarezinho sequer seguiu parâmetros definidos pelas próprias polícias.
O protocolo interagência que orienta operações policiais no Rio existe, mas é oculto para sociedade. Ninguém sabe. É como se você fosse assistir a um jogo de futebol e as regras fossem secretas. Você é árbitro de um jogo que as regras são desconhecidas. Como avaliar o mérito da ação policial se os procedimentos operacionais são ocultos e passiveis de manipulação conforme as circunstâncias? Como aferir o padrão tático da operação por critérios técnicos-policiais se tudo esta intencionalmente escondido e mal se dá satisfação? Diantes deste protocolos pode-se dizer que foi uma lambança a tática operacional. Não tem como tapar o sol com a peneira. É uma impostura moral fazer uso de uma morte, no caso de um policial, para poder esconder a falta de transparência e fragilidade de planejamento e execução.
E mais, junto com a polícia todo mundo atirou atrás. A polícia é a política em armas. Quando a polícia atira, atira com ela os coordenadores táticos de campo, os comandos intermediários, o comando central, o governador, o Ministério Público e os eleitores que assinaram o “cheque em branco” de um mandato policial em aberto. Então, são corresponsáveis. Nenhuma polícia do mundo tem licença para matar, nem mesmo James Bond.
Focus Brasil – E as operações especiais?
Jacqueline Muniz – Operações especiais têm uma razão de ser. Elas são importantíssimas no desenho organizacional de meios de força suficientes ou comedidos, cujo nome cotidiano é Polícia. Mas aqui tem-se usado rotineiramente um recurso excepcional. É como se você pegasse um cirurgião e o colocasse diariamente para trocar band-aid, a mão vai tremer. Ele vai perder a qualidade de sua ação. Ou não teria tido nunca a precisão em sua ação. Então, aqui, se substituiu os policiamentos que produzem controle sobre território e população e, portanto, produzem segurança pública pelo que eu chamo de “síndrome do cabrito”, o sobe-desce morro pontual que produz escassez de recurso repressivo. Cabe lembra que polícia não tem estoque. O emprego rotineiro de um recurso caro e nobre como as operações produz escassez e sabota a cobertura policial de território e população. Operações rotinizadas são apenas a polícia de espetáculo, a polícia ostentação que produz uma repressão cara e burra, que não têm como durar no tempo e no espaço.
Focus Brasil – Foi desperdício?
Jacqueline Muniz – Na verdade, elas fazem um gasto abusivo de uma repressão sem foco, não qualificada que não produzem efeito para além do imediato. Tem uma repressão ineficaz e ineficiente que não garante o efeito coercitivo sobre o crime de forma acumulativa além do imediato, da ação pontual. A repressão como um fim em si mesma encarece e exaure a própria capacidade repressiva da polícia A razão um policial morto para 28 mortos demonstra mais que elevada letalidade, demonstra incapacidade, incompetência e erros intencionais.
Focus Brasil – Nem houve inteligência policial.
Jacqueline Muniz – Quando não se governa a segurança pública, não se governa mais nada. Então, o resultado é o desastre anunciado. Não se coleta dados mantando a galinha dos ovos de ouro da investigação que são os suspeitos e indiciados. E atividade de inteligência, de produção de conhecimento e de informação, não precisa deste espetáculo, necessita ser pervasiva e discreta. Aqui, quando não se sabe o que dizer, a esquerda, a direita, o centro ou ao lado, quando se pretende fazer um engana bobo, se diz que está “trabalhando com inteligência”. Porque inteligência não é tangível, visível aos olhos nus da população. É atividade-meio, indireta e de baixa visibilidade. Então a população acredita: “ah, estão fazendo alguma coisa aí”.
Focus Brasil – Tudo foi feito fora do manual?
Jacqueline Muniz – Nós podemos detalhar a partir dos 12 critérios construídos pelas próprias polícias e que estão nos procedimentos de operações policiais que não estão públicos e não foram publicados e, com isso, aferir a eficácia, a eficiência e a efetividade desta operação policial. Eu mesma desenhei métricas de desempenho policial num estudo comparado de unidades de operações especiais exatamente para dar de presente para a Polícia Civil, o Bope, para as polícias brasileiras. Chama-se “Padrões de Medidas e Métricas de Desempenho Policial”, publicada em 2007 para as polícias da América Latina as polícias brasileiras. Então, a ideia de que não tem medida, não há como medir e que basta o blefe, falar alto, gritar e não dar satisfação não fica de pé. Não passa no teste do profissionalismo policial, da doutrina policial do uso da força Isso está errado.
A Polícia de sobrenome Civil não compareceu na audiência da arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF 635, conhecida como ADPF das favelas – há duas semanas na frente do [ministro Luiz Edson] Fachin para explicar seus meios logísticos e os seus modos táticos, à luz dos fins políticos de sua ação. Porque é isso que configura os mandatos de polícia em sociedades democráticas, livres e plurais. Você tem que ver quais os fins, os meios logísticos à luz dos fins que delimitam os modos táticos do agir. Aqui tem-se uma bateção intencional de cabeça entre os fins, os meios e os modos para deixar a polícia indigente e o policial vulnerável à manipulação político-eleitoral. Portanto, não estamos diante de um impressionismo de filme B de televisão. Há parâmetros técnicos, há uma doutrina do uso da força que eles próprios adotaram e que não explicam, não demonstram como empregaram.
Em que consiste uma operação de inteligência? É esse circo todo? Eu preciso gastar 200 agentes policiais? Quando ponho 200 na rua, eu pré-empenhei 800. Isto gera escassez de recurso repressivo, de recurso coercitivo, compromentendo o controle de população e de território, ampliando a oportunidade de ocorrência de crimes e violências nas ruas. A inteligência é falada como um corpo sem órgão. Inteligência não é isso que se diz, parece central de fofoca da revista “Amiga”. Duas coisas que observamos em discursos sem substância: dizer do despreparo da polícia e da inteligência. Quando se usa essas duas expressões é porque o sujeito quer ficar “bem na foto” e não sabe o que dizer.
Focus Brasil – As polícias cariocas têm preparo?
Jacqueline Muniz – As polícias do Rio de começaram a ter cursos de direitos humanos no primeiro governo [de Leonel] Brizola. têm um processo continuado de preparo, de qualificação profissional. Veja que há preparo para miliciar, para corromper, para ser sócio ou patrão de grupos criminosos, mas curiosamente não se tem preparo para cumprir uma regra jogo que a própria polícia inventou? O problema é político e a solução é política. O problema é de governabilidade e a solução é de governabilidade. Quando se usa a as desculpas da “falta de preparo” e da “falta de inteligência”e porque se esta jogando a solução do problema para muito longo da gente , da realidade. Enquanto isso, seguimos de matança em matança. São 34 anos de guerra decretada no Rio sem vitória ou derrota.
Focus Brasil – Como estabelecer controle sobre as polícias?
Jacqueline Muniz – Aqui no Brasil se sofre de autonomia predatória nos meios de força. Aqui tem excesso de autonomização e baixo controle social de polícia. O Ministério Público controla a ponta do iceberg, só controla fluxo de papel e não o fluxo decisório. Então, se você não controla fluxo decisório de uso potencial e concreto de força na tomada de decisão individual e como corpo tático não se controla nada nos meios de força policiais. Na segurança pública e na saúde pública, não há como reverter cenários trágicos como a morte.
Não tem ficar no falso dilema do ovo e a galinha, não tem que esperar mudar sistema para mudar práticas na esquina. O controle da ação policial para reduzir letalidade e vitimização policiais é de ordem executiva e administrativa. Basta apertar dois parafusos de natureza procedimental ao alcance que pode começar agora, como foram construídos em 2002 [no Rio de Janeiro]. É preciso controlar o potencial de autonomização dos meios de força e a amplitude discrionária da decisão e ação policiais. Quem sabe onde começa e termina o poder coercitivo de polícia? Esse é o principal poder que uma sociedade livre, plural, de larga escala, de mercado delega ao Estado para que este administre em nosso nome. Se você não sabe e não decide sobre o âmbito e alcance do poder coercitivo, você é corresponsável pelos resultados produzidos. Em que democracia i existe esta informalidade e alegalidade no uso do poder de policia como existe no caso brasileiro? Nenhuma.
Focus Brasil – Mas e a operação no Jacarezinho?
Jacqueline Muniz – Há uma espécie de conveniência, de conivência onde se confunde incompetências, incapacidades e erros intencionais por escolhas políticas das políticas de segurança e de policiamento. Esta operação foi programada, para utilizar a linguagem do procedimento operacional policial. Não era uma operação emergencial. Uma operação programada é feita sob demanda, demanda interna da própria polícia, do sistema de Justiça do MP. Toda operação programada é adiável e imprime superioridade de método e de controle à polícia, pois é ela que cria a situação que atua e tem a prerrogativa do agir. As não programadas são as operações emergenciais, quando a sociedade chama. Tem uma vida em risco, um assalto em andamento… Ou seja, a vida não se adia. Essas operações não podem ser adiadas porque é a demanda direta da sociedade. As programadas são demandadas para dentro e, portanto, adiáveis, segundo também as regras da própria arguição de descumprimento de preceito fundamental [ADPF 635] do STF e antes delas. O Supremo não inventou moda. Só lembrou a polícia que ela precisa voltar a ser polícia e cumprir os seus procedimentos operacionais. Tudo isso que estou dizendo é validado pela Associação Internacional de Chefes de Polícia que tem uma doutrina internacional de uso potencial e concreto de força, que recomenda para todas as unidades de polícia mundo à fora, que quer ser polícia e não bando armado. Se é só pra sair dando tiro, não precisa de polícia. O estado da arte das operações policiais é reverter desvantagens táticas, é esfriar a chapa, é reverter cenários de elevado risco, incerteza e perigo reais para os policiais, cidadãos suspeitos ou não. É fazer o relógio andar para trás tendo como meta “baixa zero”. Esta é sua razão de ser e que justifica a existência e orçamento de unidades como BOPE e a CORE. Se sai pra trabalhar com “bandidômetro” na cabeça, não preciso de investigação porque já sei quem é bandido e quem não é. Podemos voltar ao mundo das gangues, ao mundo miliciano que está aí e cresceu por esse processo de autonomização predatória. Isso se chama autarquia sem tutela ou governos autônomos.
Isso é um fenômeno comum. Todas as democracias que não controlaram o poder de polícia, experimentaram golpes, guerra civil, instabilidade e quebra da previsibilidade no exercício do poder. Aqui, vivemos de chantagem em chantagem corporativa. Sempre que você vai apertar o parafuso do controle da ação policial alguém grita, “está mexendo na minha autonomia”. Que autonomia? Você tem autonomização predatória e não autonomia regulada e transparente como deve ser. E tem gente que propõe coisas que só pioram esse quadro.
Focus Brasil – Há um projeto de lei orgânica sobre a autonomia das polícias rodando no Congresso.
Jacqueline Muniz – Isso é uma bobagem corporativista e infantil. Não vai acontecer, ninguém é maluco. Nunca vi governador e político querer perder poder. Aqui, não fizemos o dever de casa de repactuação federativa do poder de polícia. Onde começa e termina o poder da polícia do Senado? Onde começa e termina o poder coercitivo da PM, da PF e da Civil? Quem decide isso somos nós. Quem decide a capacidade coercitiva das forças combatentes, Forças Armadas e das forças comedidas policiais somos nós, a sociedade, porque o poder é nosso. Estão sequestrando este para fins particulares. O nome disso é corrupção. Quando se apropria de um mandato público para fins particulares, o nome é desvio. É assim que se tem governado, chantageando.
Cada delegacia no Brasil é um Vaticano dentro de Roma e cada batalhão é uma capitania hereditária. Os dois modelos são ruins, mas não são ruins porque são militares e civis. São ruins porque não permitem a governabilidade das polícias, porque ocultam dispositivos de controle interno e externo profissionais de polícia.
Focus Brasil – As polícias trabalham à revelia da Constituição Federal?
Jacqueline Muniz – A Constituição Federal, no que diz respeito à segurança, é conservadora, um arremedo, uma emenda que saiu pior do que o soneto. Para quem leu o artigo 144 é bom saber que ele é uma costura mal feita das constituições autoritárias anteriores. Não se mudou status quo algum das polícias ali. Ao contrário. O artigo 144 é produto de lobbys e reproduz monopólios e quase monopólios de práticas de policiamento, deixando os mandatos policiais como uma procuração em aberto para serem preenchida conforme a convivência, conveniência e conivência.
Quem estava lá fazendo lobby na área de segurança? É só ver nos anais da Constituição que são políticos que chegaram a defender a milícia como uma liga comunitária de auto-defesa. A última reforma na estruturação do poder de polícia no Brasil e das organizações de força foi em 1968, todo o resto é cosmético. Todo o resto é esmalte que você passa em brinquedo velho para brilhar. É papel de bala brilhoso em recheio podre. Essa é a discussão séria. Aqui se confunde coisas que não se pode confundir. Então, a Constituição de 1988 é um arremedo conservador, é cotó, perneta no que diz respeito à Segurança Pública. Ela é produto de um acordo, de uma acomodação que manteve a clientelização do poder de polícia e seu exercício em aberto para se ter polícia forte para fracos e policiais como mercadorias políticas.
A New Scotland Yard não é new [nova] à toa. Ela passou por uma reforma. A polícia de Nova York passou por mais de trinta anos de reforma para controlar, para produzir controles sobre o emprego coercitivo que é o principal poder que uma democracia delega a alguém. Aqui é um cheque em branco.