Por Juliana Borges *

 

Em 6 de maio de 2021 ocorreu uma das mais letais ações da polícia em uma comunidade no Rio de Janeiro. Por volta das 6h da manhã, iniciava-se uma incursão da polícia na comunidade do Jacarezinho. Ao descer do blindado, o inspetor André Leonardo de Mello Frias foi alvejado na cabeça e, mesmo sendo socorrido, não resistiu aos ferimentos. O resultado foi, no mínimo, desastroso: 29 mortes, sendo 28 civis e um policial. Diante da ação sangrenta, especialistas e ativistas de direitos humanos denominaram um massacre ou uma chacina.

Segundo a polícia, a operação foi “técnica e madura”. A ação envolveu a participação de mais de 200 policiais e apreendeu, segundo a Polícia Civil, 16 pistolas, 5 fuzis, 1 submetralhadora, 12 granadas, 2 escopetas calibre 12 e munição. Em levantamento realizado por veículos de imprensa, a partir de registros de ocorrência relacionados às mortes que aconteceram na operação, encaminhados à Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro, 26 armas de policiais foram entregue à perícia e correspondem a 24 fuzis e duas pistolas. Segundo especialistas, as armas de todos os policiais envolvidos na incursão deveriam ser recolhidas e periciadas. Primeiro, porque exporia interesse na lisura do processo e da ação. E, segundo, porque a partir delas é possível elucidar o que de fato ocorreu na operação, bem como a realização da reconstituição do confronto.

Os acontecimentos na manhã de 6 de maio encontram dificuldades para serem elucidados: as informações sobre as vítimas não são fornecidas pelos órgãos oficiais. Em divulgação da Ordem dos Advogados do Brasil foram listados 16 nomes, todos homens e a maioria de jovens entre 18 e 29 anos. E, dentre os 28, 11 seguem sem identificação. Ao menos 13 mortos não tinham qualquer relação com a investigação, base da argumentação da Polícia Civil para a necessidade da operação. Dos nomes investigados, três estavam entre os mortos.

Em agosto de 2020, o STF “referendou tutela provisória deferida pelo ministro Edson Fachin para suspender a realização de incursões policiais em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto perdurar o estado de calamidade pública decorrente da pandemia da Covid-19”. Segundo a decisão, as operações estavam restritas a excepcionalidades e se informadas e acompanhadas pelo Ministério Público do estado do Rio de Janeiro.

Na ação do Jacarezinho, o MP-RJ recebeu notificação apenas às 9h, quando a operação já ocorria desde às 6h. Na coletiva de imprensa realizada pela Polícia Civil, ouviu-se a repetição de que os assassinados tinham antecedentes criminais, bem como nas declarações do vice-presidente Hamilton Mourão de que a ação se enquadraria sob uma política de guerra e, portanto, de combate a um inimigo interno, em uma clara alusão a um discurso de lei e ordem baseado em estereótipos e imagens de controle estigmatizantes e que estimulam e sustentam a criminalização de grupos sociais.

As chacinas podem ser assim consideradas em eventos com três ou mais vítimas fatais. Apesar de não existir como categoria jurídica, as chacinas são computadas por órgãos oficiais e de segurança pública como homicídios múltiplos e estão presentes em noticiários, além de serem popularmente difundidas. Essa ação extremada, em geral, acontece em uma mesma localidade ou território, sendo também modulares conforme as dinâmicas locais.

O projeto Reconexão Periferias, da Fundação Perseu Abramo, produziu a pesquisa “Chacinas e politização das mortes no Brasil”,  que construiu um mapa das chacinas no país entre 2015 e 2019, com o intuito de analisar o fenômeno a partir de seus atores, motivações e reações, compreendendo a diversidade de contextos em que ocorreram e as mobilizações decorrentes dessas ações.

Esse caminho foi traçado pela construção de um banco de dados a partir de informações da imprensa, de diferentes veículos e pela definição de categorias em ocorrências, pessoas envolvidas, encaminhamentos institucionais e repercussão política. Pela fonte, portanto, há um viés, tendo em vista a cobertura de casos ser maior no eixo Sul e Sudeste. Além disso, as matérias jornalísticas são construídas por informações obtidas pelas polícias militares, com amplo déficit no espaço às narrativas de outros envolvidos como familiares, testemunhas civis – em geral, difíceis de serem acessadas pelo medo instaurado da ação –, e representantes de movimentos sociais.

As chacinas compõem uma etapa importante em meio a um processo contínuo de conflitos que não são encerrados nos óbitos decorrentes da ação. Majoritariamente, tais ações são exercidas sob os discursos da política de guerra às drogas e por território, de grupos de extermínio, em feminicídios e conflitos agrários e em operações policiais. Por essa última categoria é que a chacina no Jacarezinho se torna um ponto de partida e tem caráter simbólico do uso desse repertório de ação como gramática política e um expediente paralelo para a imposição de poder.

Dentre as motivações mais frequentes das chacinas, em primeiro lugar estão as disputas de tráfico, seguida por suspeita de envolvimento de policiais ou ex-agentes estatais. Assim como no Jacarezinho, os alvos preferenciais são jovens-homens-negros e periféricos. Pelo viés na fonte, não foi possível obter os dados de raça/cor das vítimas das chacinas do país na pesquisa.

Contudo, a ação no Jacarezinho dá pistas dos territórios e grupos alvos desse tipo de ação. A maioria das vítimas não tem antecedentes criminais, sustentando a hipótese de uma forma simbólica para fins de gramática política e exercício do poder pelo terror e pela violência.

Conforme dossiê publicado pela Fundação Perseu Abramo, homônimo ao título da pesquisa desenvolvida, as “chacinas são expressões radicais da violência letal como recurso político de controle social, com demonstração pública de poder, utilizada tanto por organizações criminosas como agentes públicos, principalmente em contexto de instabilidade institucional ou de disputa por territórios e mercados”.

Dessa definição, conclui-se que a análise sobre as chacinas no país permite compreender as complexidades e a aderência profunda do fenômeno da violência como constitutiva das relações sociais cotidianas e institucionais da sociedade brasileira. Não se tratam, portanto, de ocorrências excepcionais.

Estamos falando, portanto, de um expediente utilizado com implicações políticas e de exercício de poder, impulsionador de uma agenda que fortalece cada vez mais o discurso de combate à criminalidade como política pública central para a diminuição de conflitos sociais. Tem servido a ações repressivas e a política de guerra às drogas como defesa do bem-estar social – vale lembrar que a investigação que sustenta a ação e discurso de defesa pelos policiais civis no Jacarezinho se lançava pelo combate ao aliciamento de menores pelo tráfico.

Ainda é preciso aprofundar-se mais na análise sobre esse fenômeno. Contudo, é possível perceber um discurso posicionado no uso desse repertório de ação sob uma dinâmica de disputa territorial e política (seja no uso político amplo ou no discurso de poder, mesmo em casos de motivação teoricamente particular, como nos feminicídios.

Assim, em vez da defesa de políticas públicas que impulsionem direitos sociais, cada vez mais ganha luz no debate público o controle e a repressão para combater violências, que foram criadas justamente por esse modelo de ação, em meio ao terror promovido e amplamente difundido. O medo como mola propulsora para desestabilizar, paralisar e controlar.

Isso coloca o desafio imperativo de buscar saídas que não deveriam reforçar a repressão. Os conflitos sociais não podem continuar a ser resolvidos com mais tensão e uso tático de forças policiais que estimulam o conflito em vez de mediá-los.

Não parece fácil construir políticas simplórias, como a simples presença do Estado em comunidades, principalmente se isso se realizar a partir de medidas repressivas. Mas o desafio está lançado. E, se não queremos mais banhos de sangue, precisamos nos debruçar sobre esse fenômeno encrustado na cultura política brasileira para enfrentá-lo na garantia de direitos, a começar pelo direito à vida. •

 

* Consultora do eixo “violência” do projeto Reconexão Periferias, Estuda Sociologia e Política na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e é pesquisadora de Política Criminal e Relações Raciais.