A criação de um país invisível, sem o censo demográfico
Por Antonio C. Alkmim
A discussão sobre a realização do censo demográfico no Brasil virou um tema controverso, envolvendo os Três Poderes do Estado: o Executivo, o Legislativo e, recentemente, o Judiciário. Situação prosaica, pois a lei determina que a pesquisa seja realizada decenalmente. Pautado pela perspectiva negacionista do presidente e avesso à informação, o Executivo é aliado do jogo de interesses que se transformou a disputa sobre o Orçamento na Câmara. Já o Judiciário tenta recompor a legalidade.
O resultado deste processo acabou reduzindo a verba tecnicamente projetada para R$ 3,2 bilhões de reais em 2021, valor estimado com base no planejamento para a realização do Censo no ano passado, restringida a minguados R$ 2 bilhões de reais, até atingir os irrisórios R$ 53 milhões. O valor não garante sequer a execução das atividades preliminares necessárias para o ano corrente, caso o censo seja planejado para 2022.
Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello reagiu, a partir da iniciativa do governador do Maranhão, Flávio Dino, e determinou a realização do Censo ainda em 2021. E esta decisão sobre tornou-se finalmente um caso de justiça a ser decidida pelo plenário da corte. Além disso, o tema mobilizou a mídia com as mais diversas opiniões de especialistas e leigos.
Uma das opiniões correntes e defendidas por parte dos especialistas e ex-presidentes do IBGE defende a realização do Censo ainda em 2021, adiando de agosto para setembro ou outubro o início da operação. Desde que evidentemente se garantam os R$ 2 bilhões, que seriam suficientes, a despeito da inevitável elevação dos custos decorrentes da adoção de protocolos de segurança.
O argumento para adiar o Censo de 2020 foi a incidência da pandemia19. Mas não custa lembrar que, entre março, quando ocorreu o primeiro óbito, até dezembro de 2020, foram computadas 194.994 mortes. Em 2021, em quatro meses entre janeiro até o final de abril o país alcançou 200 mil mortos. O que teria mudado?
Por outro lado, a data de agosto para a realização da pesquisa não é arbitrária, como é sugerido pelos que querem seu início a partir de outubro. Existe a proximidade com o final de ano, período atípico e mesmo com fatores climáticos, como a seca na Região Amazônica que dificulta o acesso àquela população residente.
Segundo a demissionária presidente e o atual, Eduardo Rios Neto, as providências sanitárias necessárias para o empreendimento da tarefa estariam totalmente prontas e adequadas. Talvez caiba, no mínimo, uma ponta de suspeita em relação a esta afirmação, diante de um país com um volume de mortos dos maiores do mundo, enfrentando problemas graves de atendimento à população, com um ritmo lento de vacinação.
Isso sem contar a gestão desastrosa do governo e seu Ministério da Saúde com a propagação de métodos heterodoxos e ineficazes, o que derivou em uma CPI sobre o tema. Suspeita que se amplia ao considerarmos que, a despeito do porte do projeto, que irá até todos os domicílios brasileiros em busca de informações, tais protocolos não foram chancelados por nenhuma instituição da área da saúde.
Mas a questão de forma nenhuma se resume a isso, embora por si só já seja um fato grave. A direção do IBGE no governo Bolsonaro, sob o comando de Paulo Guedes, desde que Suzana Cordeiro assumiu, e agora com Ricardo Dias Neto, confrontou o corpo técnico, demitiu o diretor de pesquisa e provocou a saída de gerentes da área social.
Além disso, provocou uma intervenção no questionário retirando quesitos considerados básicos para o diagnóstico da situação estrutural do país, como a renda e a migração. O efeito desta omissão prejudica estimativas populacionais previstas em lei e impedem o reconhecimento das desigualdades e da pobreza existentes no país.
Defender o IBGE, como anuncia o atual presidente, não passa apenas pela incorporação de novas tecnologias e articulação com os registros administrativos. Este esforço constante de modernização já vem sendo feito há muitas décadas pelo instituto, pelas diversas gestões que pelo IBGE passaram. A constante incorporação tecnológica nunca foi indiferente ao órgão.
Mas não somos Suécia, ou país similar. Não se captura informações por internet em favelas, periferias pobres, interior, região Amazônica, e mesmo condomínios fechados e avessos a qualquer iniciativa do estado. Nas áreas mais pobres, não apenas pela exclusão digital somente, mas pela dificuldade em responder um questionário complexo.
Por outro lado, é preciso reconhecer as restrições dos atuais registros administrativos, em boa parte pela ausência de uma coordenação estatística nacional que deveria existir e ser coordenada pelo próprio IBGE. Dificuldades em relação a este problema persistem e algumas não são de breve resolução. Os atrasos advindos de 2020 não são apenas decorrentes da pandemia, mas de dificuldades estruturais que atingem não só o IBGE, mas o conjunto do Estado, diante da política de terra arrasada adotada no país.
Apesar disso, os técnicos e pesquisadores do IBGE pretendem fazer um Censo de qualidade e que forneça o importante e necessário diagnóstico do país. Para isso é preciso a recomposição do orçamento e do cronograma, que sejam factíveis, que se ouçam o conjunto de técnicos da casa, de pesquisadores mais experientes e que realizaram outros censos.
Especialistas que desconhecem o processo complexo de um censo demográfico e formuladores de opiniões aleatórias deveriam ser no mínimo secundarizados – senão descartados – em relação à recomposição do orçamento e a um novo cronograma para o Censo. Dadas as circunstâncias reais, o censo deveria ser postergado para 2022. Infelizmente.
Que o atual episódio sirva para uma reflexão sobre o IBGE, sua importância, seu papel dentro da estrutura do Estado brasileiro, a redefinição do seu estatuto, formato e hierarquia que remonta ao final dos anos de 1960. Sua autonomia financeira, técnica, administrativa e política parece ser, ao exemplo de institutos modelos similares no mundo e que se prezam, desejável. Para melhor servir uma sociedade que se pretende democrática e mais igualitária. •
* Cientista político, é professor da PUC do Rio de Janeiro.