Entrevista | Fernando Haddad “Lula é o caminho para sairmos da crise”
Por Pedro Camarão *
O número de mortes alcançado pela Covid no Brasil é resultado do pensamento retrógrado e atrasado presente no governo Bolsonaro. Essa é a opinião do economista e advogado Fernando Haddad sobre o caos que toma conta do país. Ex-prefeito de São Paulo e o mais longevo ministro da Educação na história do país, aos 58 anos de idade, Haddad permanece como observador atento da realidade política brasileira e se mantém na trincheira da oposição, de onde traça planos para a reconstrução do Brasil.
Ele está preocupado em ajudar formular uma saída para o país, mergulhado na mais terrível crise política e institucional da história. Agora, diante da instalação da CPI da Covid, o professor universitário considera que o país ganha uma oportunidade para apurar as responsabilidades do governo e do presidente Jair Bolsonaro diante da carnificina que a Nação atravessa, com mais de 400 mil mortos na pandemia, óbitos crescentes que vem ocorrendo desde março de 2020.
Haddad diz que a CPI da Pandemia instalada pelo Senado é uma oportunidade para desbancar o negacionismo e forçar Bolsonaro e seus ministros a tomarem medidas para combater a pandemia. Mas ele acredita que essa hipótese, ainda que distante, não se repetirá em outras áreas cruciais para o país.
Em entrevista à Focus Brasil, Haddad fala sobre o quanto o Brasil está sendo prejudicado pelo pensamento neoliberal de Paulo Guedes que, segundo ele, é atrasado. O desemprego, o desalento, a falta de um projeto de desenvolvimento social e crescimento econômico, o desrespeito aos direitos humanos e o descaso proposital para fazer avançar o desmatamento não apenas reforçam a posição do Brasil como um pária internacional, mas tornam cada vez mais longo o caminho para a construção de um país pujante e menos desigual. Apesar disso, Haddad diz que é possível tirar o país do buraco.
“Hoje, efetivamente, há dois projetos no país: o do Bolsonaro e o do Lula. Tem duas forças”, lembra. “O projeto de desenvolvimento que está na ordem do dia, quem representa esse projeto, é o presidente Lula”, aponta.
Sobre a crise econômica, Haddad faz uma comparação da agenda que está sendo aplicada pelo ministro Paulo Guedes com o projeto proposto pelo presidente Joe Biden para os Estados Unidos. Ele anunciou um plano que coloca o Estado como ferramenta para combater a desigualdade e alavancar o crescimento econômico. “Precisa distribuir renda para diminuir a desigualdade e fazer o país voltar a crescer. É isso que os Estados Unidos sob Biden pretendem seguir”, aponta.
Quanto ao cenário político eleitoral para 2022, o professor diz que ainda é cedo para desenhar os cenários, mas não descarta a possibilidade de ser candidato ao governo de São Paulo. “Ainda é cedo, mas acho que o mais importante é não descasar a estratégia nacional da estadual”, diz. “Isso vale para São Paulo, o Rio [de Janeiro], Pernambuco, Minas Gerais… Vale para todos os estados. Devemos pensar na eleição presidencial prioritariamente e organizar os palanques estaduais de maneira a garantir uma ampla aliança para derrotar o bolsonarismo”, aponta.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Focus – Qual é a sua avaliação sobre o governo de Jair Bolsonaro diante desse caos que o país vive?
Fernando Haddad – O governo Bolsonaro é uma combinação macabra de três vertentes de pensamento retrógradas que geraram um projeto que dialoga com problemas históricos do Brasil muito mal resolvidos. A primeira é a autoritária, a segunda, a fundamentalista e a terceira, a vertente neoliberal.
O governo Bolsonaro é uma conjugação dessas três forças, expressas nos três núcleos do governo: o autoritarismo dos generais bolsonaristas, sempre ameaçando a sociedade; o [ministro da Economia, Paulo] Guedes que representa o neoliberalismo mais tosco que se possa imaginar; e aquele núcleo “olavista” de ministros como [Abraham] Weintraub, Damares [Alves], [Ricardo] Salles, [Ernesto] Araújo e Milton Ribeiro, que são pessoas que estão dialogando no que eles chamam de “guerra ideológica”.
O próprio Salles mencionou isso numa entrevista dizendo que a Tereza Cristina cuida do arroz e feijão do ministério. E quem cuida da parte ideológica é ele. Ou seja, mudando a maneira de se enxergar o meio ambiente ou – no caso da Damares – os direitos humanos.
O governo e essas pessoas trabalham virar do avesso conceitos do iluminismo. Então, esta administração, desse ponto de vista, é pré-iluminista. E, por isso, que a guerra contra a ciência é uma coisa importante. Isso ficou absolutamente claro no combate à pandemia, onde essas três vertentes se encontraram. Guedes não querendo investir e o negacionismo científico e o autoritarismo sendo usados contra prefeitos e governadores. É muito cristalizado isso que digo no enfrentamento à pandemia, como essas três engrenagens se combinam viciosamente gerando o caos que estamos vivendo.
Focus Brasil – Nesse cenário de caos, no qual o Brasil ultrapassou a marca de 400 mil mortos pela Covid, aparece agora a CPI no Senado. O que você acha que a comissão pode representar e até onde pode chegar?
Fernando Haddad – Uma vez que não conseguimos fazer tramitar nenhum dos 100 pedidos de impeachment contra Bolsonaro, temos na CPI uma oportunidade para apurar as responsabilidades do que aconteceu. Mas, também, de tentar evitar de alguma maneira aquilo que vai acontecer: mais 200 mil mortes até agosto. E essa CPI é uma comissão de investigação de tipo novo. Ela vai funcionar em meio a uma crise e não pós-crise como a maioria. Por isso, espero que a CPI possa, efetivamente, constranger o governo a tomar as medidas que ele reluta em adotar. Estou preocupado porque tenho conversado com epidemiologistas e médicos. Se nada for feito, até agosto, teremos mais 200 mil mortes no país. Veja que já estamos em 2021 com número superior [de mortes] ao de 2020 e não mal começamos o segundo trimestre.
Focus Brasil – A crise sanitária gerou uma série de problemas para a economia, mas as medidas que o governo tomou não parecem ser efetivas. O que o governo Bolsonaro e Paulo Guedes almejam com esse projeto econômico?
Fernando Haddad – Nada do que o governo está fazendo vai resolver o problema econômico do país. Absolutamente nada. Nada do que fizeram ou fazem implica na recuperação da economia. Alguém dirá: “Ah, a economia esse ano vai crescer, ano que vem vai crescer’”. Existe uma coisa chamada inércia em economia. Como a capacidade instalada se mantém em recessão, dificilmente você tem destruição de capital no curto prazo e é possível recuperar o nível de atividade pré-crise. Isso é quase inercial. Agora, se formos pensar numa tendência de longo prazo de crescimento, o governo não está fazendo absolutamente nada para que isso aconteça. Então, vamos ter um crescimento entre aspas. Na verdade, vamos recuperar o nível de atividade pré-crise que, a bem dizer, começou em 2015 com o [ex-deputado federal] Eduardo Cunha na Presidência da Câmara e a aliança entre PSDB e MDB em torno das chamadas “pautas-bomba” que descarrilharam o Brasil naquele ano. Então, estamos vivendo desde 2015 – estamos indo para o sétimo ano de turbulência político-institucional – com medidas absolutamente equivocadas para enfrentar. E isso vem desde o governo [Michel] Temer. É uma situação difícil mesmo. Se não tivermos um projeto de desenvolvimento na ordem do dia – e eu acho que quem representa esse projeto é o presidente Lula – teremos muita dificuldade em sair dessa crise.
Por isso, repito, vai haver, entre aspas, crescimento. Mas isso é efeito estatístico, é como a economia funciona. É a recuperação do nível de atividade pré-crise. Então, obviamente, ao recuperar o nível de atividade pré-crise, vai aparecer na estatística anual que crescemos. Mas isso não é crescimento. Crescimento é quando você toma as medidas necessárias para fazer com que a curva da atividade econômica mude de inclinação. Aí estamos falando de economia pra valer. É alterar a inclinação da curva de crescimento. Hoje, ela está quase paralela ao eixo. Precisamos torná-la mais inclinada. E aí a economia vai começar a crescer a taxas significativas como aconteceu nos governos do PT. Nós dobramos a taxa de crescimento do país.
Focus Brasil – E com distribuição de renda…
Fernando Haddad – Esse foi um dos segredos da mudança da inclinação. Lula percebeu e o PT, o Partido dos Trabalhadores, sempre disse isso: sem mercado interno não tem crescimento econômico. Então, é preciso distribuir renda para mudar a inclinação da curva. E reduzir as desigualdades para começarmos a fazer o país crescer de maneira socialmente justa.
Focus Brasil – Bolsonaro está tentando criar algum diálogo com o novo governo dos EUA, sob administração de Joe Biden, que tem um plano econômico que vai em sentido oposto ao implementado por Guedes. Biden propõe um pacote muito mais próximo, por exemplo, ao que foi apresentado pelo PT, com o Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil.
Fernando Haddad – O Brasil com Guedes está com uma cartilha antiga, dos 80. Estamos uns 40 anos atrasados em relação à teoria econômica contemporânea. Hoje, há uma produção acadêmica que segue todos os cânones da ciência econômica contemporânea. São modelos matematizados, testáveis, tudo o que eles gostam de dizer que fazem. Há inclusive a busca de evidência empírica e tudo mais. E temos uma série de modelagens hoje que apontam em outra direção. E a direção é usar o Estado para corrigir as distorções de mercado no plano nacional, doméstico e no plano internacional.
Por exemplo, há uma tendência de concentração da produção industrial geograficamente. Isso vale para um país, como era o caso de São Paulo até outro dia e é o caso do mundo. Toda a atividade industrial está migrando para o sudeste asiático. Se você ficar olhando, isso vai acontecer.
Então, o governo Biden está procurando reagir a isso. Ele não quer que os EUA se desindustrializem. A Europa também reage a isso. E a pergunta é: a América Latina vai reagir a isso ou não? Veja, isso não tem nada a ver com a questão fiscal de curto prazo. Tem a ver com estratégias de desenvolvimento, parcerias, modelagens, transferência de tecnologia, compras governamentais, investimento em ciência. Tem a ver com outra coisa, com outro mundo.
Então, o Guedes está no mundo… eu não vou dizer que ele está no mundo da lua porque precisa de foguete para chegar até a lua, e ele não pensa em ciência ou tecnologia. Ele está muito atrasado. Paulo Guedes está no pré-arado.
Isso é uma coisa, realmente, muito preocupante porque estamos perdendo tempo. Os cortes que o governo Bolsonaro está fazendo na educação, na ciência e tecnologia, o desmonte das compras governamentais, o mais baixo nível de investimento em obra de infraestrutura, tudo isso revela uma falta de visão. O que temos hoje é uma política de desmonte e destruição.
Focus Brasil – Temos, oficialmente, a volta de Lula ao cenário político. Como você analisa o tabuleiro eleitoral?
Fernando Haddad – O Lula organiza… pela força que ele tem, o prestígio que tem, os anos de estrada que tem. São 40, 50 anos de política com “P” maiúsculo. Então, Lula organiza o tabuleiro. Os partidos começaram a se movimentar em torno dessa realidade. Hoje, efetivamente, há dois projetos no país: o do Bolsonaro e o do Lula. Você tem essas duas forças hoje, representando, visões distintas e projetos distintos para o país. “Ah, é possível até o ano que vem surgir [nova força]?” Bem, tudo é possível em política. Agora, não há uma tendência para que isso aconteça. Não há nenhuma tendência. Porque as figuras que estão se apresentando são todas conhecidas e, diria, pouco sedutoras tanto do ponto de vista retórico quanto do ponto de vista programático. Uma coisa meio insossa. É difícil isso cativar a ponto de em um ano e meio mudar o quadro político.
Focus Brasil – A Folha de S. Paulo menciona seu nome como candidato a governador. Você já se apresenta como candidato, realmente? Qual é a sua posição nesse momento?
Fernando Haddad – Eu acho que é muito cedo para falar em candidatura, Mas eu acho que o palanque em São Paulo tem que, de alguma maneira, fazer sentido nacional. Nós não podemos descasar a estratégia nacional das estaduais. Isso vale para São Paulo, para o Rio, Pernambuco, Minas Gerais, Rio Grande do Sul… Vale para todos os estados.
Na minha opinião, devemos pensar na eleição presidencial prioritariamente e organizar os palanques estaduais de maneira a garantir uma ampla aliança para derrotar o bolsonarismo. E isso tem que se refletir nos estados. Em São Paulo, defendo alternância no poder. Acho que o PSDB já deu o que tinha que dar e nós temos que fazer uma aliança progressista. O bolsonarismo deve ter um candidato, os tucanos vão ter um candidato e o setor progressista tem que se unir em torno de uma estratégia para derrotar o chamado Bolso-Dória. Agora é a hora de construir essa aliança. •