Por Laís Abramo *

 

A desigualdade é uma característica estrutural das sociedades latino-americanas e se caracteriza por uma complexa trama em que as desigualdades de classe se entrecruzam e se potencializam com as desigualdades de gênero, étnico-raciais, territoriais e por idade, encadeando-se ao longo do ciclo de vida das pessoas. As desigualdades que afetam a população afrodescendente da América Latina – atualmente aproximadamente 134 milhões de pessoas, representando 21% da população total – constituem um dos eixos estruturantes da matriz da desigualdade social e um dos elementos centrais da cultura do privilégio, característica histórica constitutiva das sociedades latino-americanas, que tem origem no seu passado colonial e escravista, mas que continua se reproduzindo na atualidade.

O legado de exclusão da escravidão durante séculos tornou invisível a contribuição da população negra ao desenvolvimento das nações. Mas a persistente luta e resistência das organizações e do movimento negro conseguiu posicionar suas demandas históricas na agenda pública e tem sido fundamental para a adoção de marcos normativos internacionais, regionais e nacionais de reconhecimento e proteção de seus direitos, assim como para a criação de mecanismos governamentais e políticas de combate ao racismo e promoção da igualdade racial. As constituições de 13 países da região condenam a discriminação racial e em 16  existem leis contra a discriminação racial e esta é tipificada como delito.

Apesar desses avanços, persiste a invisibilidade estatística, uma das mais perversas formas de discriminação. Apenas em 2010, um número considerável de países da América Latina (11) passou a incluir a autoidentificação da população afrodescendente nos censos demográficos. Mas até agora essa autoidentificação está presente nas pesquisas domiciliares como a PNAD, fundamentais para medir fenômenos como a pobreza e desemprego, em apenas seis países: Brasil, Colômbia, Equador, Panamá, Peru e Uruguai.

Ainda assim, os dados existentes evidenciam a persistência de severas desigualdades raciais, afetando principalmente as mulheres negras, os e as jovens negras, a população negra LGBTI, com deficiência, que vive nas áreas rurais ou nas periferias das grandes cidades e os migrantes. A pobreza e a extrema pobreza são mais acentuadas entre os negros inclusive em países com baixos níveis de pobreza, como o Uruguai, onde a porcentagem de afrodescendentes nessa situação triplica a de não afrodescendentes.

A população negra sofre maiores privações de acesso a moradias adequadas, água potável, saneamento, eletricidade e internet, em particular nas zonas rurais. Também se registram acentuadas desigualdades na garantia do direito à saúde: a mortalidade infantil, ou seja, a probabilidade de uma criança negra morrer antes de completar um ano de vida é superior à de uma criança branca nos sete países para os quais se conta com informação. A mortalidade materna e a maternidade adolescente também são mais elevadas, assim como a prevalência de deficiências, em especial entre a população idosa.

Apesar de um importante aumento na taxa de assistência escolar e no número médio de anos de escolaridade, persistem importantes desigualdades raciais em termos de atraso e evasão escolar, e a conclusão do ensino médio continua sendo um desafio chave. A porcentagem de conclusão do ensino médio entre os jovens negros é significativamente inferior a dos jovens brancos, ainda que no Brasil e Uruguai, essas disparidades tenham se reduzido em anos recentes. As desigualdades raciais se aprofundam na educação terciária. Mas, no Brasil, a expansão das instituições públicas e as políticas de ação afirmativa foram capazes de reduzi-las significativamente em um curto período de tempo.

Os melhores resultados educativos das mulheres não repercutem em forma equivalente no mercado de trabalho. Nos 15 países com informação, a porcentagem de jovens mulheres negras que não estuda e não está ocupada no mercado de trabalho é marcadamente superior à de jovens mulheres brancas e a de jovens homens negros. As diferenças entre as jovens negras e os jovens homens brancos nessa situação oscilam entre o dobro na Argentina a 5 vezes a mais no Equador.

As dificuldades de inserção das mulheres no mercado de trabalho estão fortemente associadas à desigual divisão sexual do trabalho que faz com que elas continuem sendo as principais (quando não exclusivas) responsáveis pelo trabalho doméstico e de cuidados não remunerado, o que tem se agravado fortemente no contexto da pandemia.

Os rendimentos mensais do trabalho das mulheres negras equivalem a aproximadamente 40% dos rendimentos dos homens brancos no Peru e no Brasil, a 53,6% no Uruguai, 66,2% na Colômbia, 70,4% no Equador e 78,4% no Panamá. Mesmo controlando por horas trabalhadas e anos de escolaridade, observa-se uma clara hierarquia, marcada por desigualdades entrecruzadas de gênero e raça, que situa os homens brancos na melhor posição e as mulheres negras na pior. Além disso, a desigualdade é maior quanto mais elevado é o nível de escolaridade.

A superação das profundas desigualdades raciais e da persistência do racismo como componente fundamental da cultura do privilégio é uma tarefa de todos e constitui um aspecto central da construção de sociedades mais justas, democráticas e igualitárias.

Essa luta exige não apenas a implementação de políticas universais, mas também políticas de ação afirmativa, como parte da perspectiva de um universalismo sensível às diferenças.

É necessário implementar políticas permanentes de luta contra o racismo estrutural e institucional, contra as práticas discriminatórias e a violência racial e garantir a plena participação afrodescendente na formulação e acompanhamento dessas políticas. É urgente estabelecer mecanismos governamentais que formulem, coordenem e monitorem essas políticas e garantir a visibilidade estatística afrodescendente.

 

* Ex-diretora da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil de 2005 a 2015, foi ainda diretora da Divisão de Desenvolvimento Social da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (CEPAL) de 2015 a 2019.