Falar sobre a tortura e os brutais assassinatos cometidos pelo Estado durante a ditadura é um imperativo ético e moral para quem sobreviveu e vai contar a história

Por Eleonora Menicucci *

No Golpe de 1964, recém integrada ao Partido Comunista Brasileiro, como membro da Juventude Comunista, eu era professora primária numa escola particular. Aguçaram ali minhas indignações com a desigualdade do processo de acesso à educação, além de ter vivenciado a demissão arbitrária de um tio diretor da Rede Ferroviária Federal S/A. A entrada no PCB significou a tentativa de, organizadamente, combater a ditadura militar que se instaurava no Brasil.

As lições de liberdade fincaram-me de maneira fundante. Submeti -me ao concurso público estadual para professora primária, função que desenvolvi até entrar para a clandestinidade política. Em 1965, fiz vestibular para o curso de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Federal de Minas Gerais.

Já estava aguçada em mim as idéias revolucionárias. Para além do espaço de aprendizado da vivência democrática, do pluralismo ideológico e político, assombrou-me o ecumenismo, a heterogeneidade e a diversificação das áreas do conhecimento ali instaladas na universidade. Estava dada a partida para o grande vôo em busca de uma sociedade mais justa e igualitária.

Do ponto de vista político, como militante do PCB, rapidamente, assumi funções de liderança no movimento estudantil chegando a fazer parte da primeira diretoria, por eleição direta da União Estadual dos Estudantes de Minas Gerais. Eu me  comprometia cada dia mais profundamente com a resistência à ditadura civil militar.

Fui liderança no embate ao acordo MEC-USAID, firmado entre a ditadura militar e a USAID, na tentativa de implantar a Universidade/Empresa. Era parte ativa de um dos mais importantes movimentos de resistência à ditadura que foi a força estudantil.

Foi neste período que se criou a comissão paritária entre professores, alunos e funcionários para reelaboração dos currículos acadêmicos. A ideia era interferir nas decisões dos órgãos colegiados, na gestão e controle da administração da Universidade. Ali, eu era membro participante. Iniciou-se, neste momento, a discussão sobre autonomia universitária. A experiência marcou minha vida, considerando formas de participação política horizontal e plural.

Procurar, nexo entre prática política e conhecimento científico, pautou a construção de meu saber, na perspectiva em que o conhecimento deve buscar na prática social seu início e fim. Neste momento, rompida com o PCB, passei a integrar a organização Corrente em MG, dissidência do PCB e depois por muito pouco tempo a Política Operária-POLOP. Mais tarde, criamos o Partido Operário Comunista (POC), onde permaneci até ser presa.

Em 1968, no decorrer do quarto ano de Ciências Sociais, a militância política ocupava lugar de destaque na minha vida. Integrando o POC, interrompi os estudos para dedicar-me, integralmente, à militância clandestina.

É preciso  lembrar do passado para que não se repita no futuro. Isso é fundamental para iluminar os passos do presente para o enfrentamento da luta de classe social que estamos vivenciando no Brasil desde o Golpe de 2016.

E se torna crucial pelo fato de vivermos no Brasil um governo autoritário, fundamentalista, teocrático, genocida, entreguista e misógino. Diuturnamente, Jair Bolsonaro faz questão de elogiar a ditadura civil militar, ameaçando com a volta do arbítrio.

Daí que volto ao passado. Com o cerco cada vez mais forte da repressão naquela época, em 1968 desloquei-me para a cidade Industrial de Betim/Contagem. E, no inicio de 1969, mudei para São Paulo, já como clandestina, juntamente com o meu companheiro na época e grávida de minha primeira filha, nascida na clandestinidade em São Paulo. Vivemos ali com entusiasmo até 1971, quando fomos presos em São Paulo. Eu estava na clandestinidade e tinha uma filha de 1 ano e 10 meses.

Fiquei presa durante três anos –,de 1971 a 1974. Na dimensão mais inominável, a tortura produziu em mim uma das mais fortes transformações. As constantes ameaças de tortura da minha filha emergiram em mim, novamente, o sentimento da hierarquia de poder entre os gêneros. Com o passar dos dias na prisão, fui me descobrindo com indagações cada vez mais feministas.

A tortura, na condição de mulher e mãe, foi uma das experiências mais sofridas na minha vida. O amadurecimento pelo sofrimento foi o sustentáculo de minhas opções na vida em defesa intransigente da democracia, da igualdade de classe, das mulheres e da população negra e pobre de nosso pais.

Sou uma das testemunhas do brutal assassinato do companheiro Luiz Eduardo Merlino, o Nicolau, nas dependências da Operação Bandeirantes (Oban), em julho de 1971, em São Paulo. Ele no pau de arara e eu na cadeira do dragão. Ele sangrava intensamente na perna direita, o que provocou gangrena e, depois. a morte decorrente de da tortura.

Aqui transcrevo um depoimento prestado por mim ao Poder Judiciário, 20ª Vara Civil de São Paulo, na década de 90: “…no momento da prisão do Luiz Eduardo da Rocha Merlino eu já estava presa. Numa madrugada, fui retirada da cela e levada à sala da tortura onde tinha um pau de arara e uma cadeira do dragão. No pau de arara já estava nu e pendurado o Luiz Eduardo, já com uma enorme ferida nas pernas, numa delas muito maior e sangrando. Eu fui colocada nua na cadeira do dragão. E o Ustra (Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra), conhecido como ‘Major Tibiriçá’ entrava e saia da cela, controlando a intensidade da tortura…”

Desde essa época, assumi como responsabilidade e compromisso de vida denunciar o assassinato de Nicolau, até que o Estado brasileiro assumisse sua responsabilidade e punisse os algozes torturadores, como Brilhante Ustra, que dava as ordens de tortura.

Assim o fiz e faço até hoje. A história está narrada. A família de Nicolau ainda não conseguiu a vitória de obrigar o Estado a assumir a responsabilidade e responsabilizar Ulstra como agente torturador responsável.

Falar sobre a tortura e os brutais assassinatos cometidos pelo Estado brasileiro durante a ditadura civil militar é um imperativo ético e moral para todas e todos que sobreviveram para contar essa brutal história.

* Socióloga, foi ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres no Governo Dilma Rousseff.

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