“O reconhecimento que Lula recebeu da esquerda e da direita nos últimos dias pode ser atribuído à sua capacidade de vender uma mensagem conciliatória”, opina o professor Andre Pagliarini, em artigo no jornal The Guardian

 

Na quarta-feira, 10 de março, o ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fez um discurso de retorno empolgante na sede do Sindicato dos Metalúrgicos em São Bernardo do Campo, um centro industrial na região metropolitana de São Paulo de onde Lula emergiu como uma figura nacional nos anos 70. No dia anterior, em uma reviravolta chocante que surpreendeu até mesmo aqueles que estavam convencidos de sua inocência, um juiz do Supremo Tribunal anulou as condenações criminais contra Lula, tornando-o elegível para um terceiro mandato no ano que vem.

A decisão a favor de Lula teria sido uma grande história, mesmo se sua popularidade tivesse diminuído desde que deixou o cargo em 2011. Mas as pesquisas recentes mostram que ele continua surpreendentemente forte eleitoralmente, à frente do titular da extrema direita, Jair Bolsonaro, que venceu as eleições de 2018.

Outras pesquisas apontam para uma disputa mais acirrada, o que ainda é notável visto que Lula nem começou a fazer campanha. Ele também liderou as pesquisas há três anos, mas foi impedido de concorrer por um infame juiz que ingressou no governo Bolsonaro.

Por sua vez, Bolsonaro, capitão aposentado do Exército que serviu sem distinção no Congresso por 27 anos, presidiu uma catástrofe absoluta. Se a maior nação da América Latina já foi tida como modelo para saber como equilibrar o crescimento econômico com a redução dramática da pobreza, sua liderança atual parece perfeitamente satisfeita em ser um pária global – o ministro das Relações Exteriores literalmente disse isso em outubro.

Desde o modo como lida com o meio ambiente e a pandemia, para citar algumas questões importantes, Bolsonaro se mostrou imune à razão. Por isso, Lula parecia tão decidido a reafirmar a primazia dos fatos no discurso político de seu país em seu discurso na semana passada. “É sempre importante reiterar sempre que possível”, declarou. “O planeta é redondo… e Bolsonaro não sabe disso”. Lula descreveu todas as medidas que teria tomado se estivesse no cargo quando a pandemia o atingiu, cada uma mais sensata que a outra. E Bolsonaro continua a minimizar o vírus, mesmo enquanto observadores internacionais temem que o Brasil se torne um centro de disseminação de novas variantes.

Embora não esteja claro se Lula vai realmente concorrer novamente no ano que vem, o simples fato de que ele pode mudou o cenário político do Brasil. Tanto o atual presidente da Câmara, eleito para sua posição de influência com o apoio de Bolsonaro, quanto o anterior, uma figura de centro-direita cujo partido sugeriu que poderia endossar Bolsonaro em 2022, sinalizou uma abertura para a reabilitação de Lula.

Esta é uma reversão impressionante em relação a apenas três anos atrás, quando a sociedade brasileira se viu nas garras de uma onda reacionária que responsabilizava os progressistas por todos os males sociais – reais ou imaginários.

O reconhecimento que Lula recebeu da esquerda e da direita nos últimos dias pode ser atribuído à sua capacidade de vender uma mensagem conciliatória, enraizada não no confronto ideológico, mas na recuperação dos valores republicanos básicos que Bolsonaro abertamente desdenha.

Um obstáculo flagrante permanece no caminho caso Lula volte a assumir a Presidência: as forças do mercado internacional. Conforme noticiado na Bloomberg, a renovada elegibilidade política de Lula “fez com que as ações e a moeda despencassem, aprofundando alguns dos piores desempenhos deste ano”.

Em outro lugar, os investidores disseram à Reuters que “a perspectiva de Bolsonaro concorrer contra Lula coloca dois candidatos ‘populistas’ um contra o outro, esvaziando o centro, que é mais fértil para as reformas econômicas de que o Brasil precisa desesperadamente”.

Em meio ao aperto de mão dos observadores mais sintonizados com os desejos estreitos dos investidores privados, vale a pena lembrar as diferenças óbvias entre o titular e o candidato a desafiante que, sem sucesso, concorreu à Presidência três vezes antes de finalmente alcancá-la em 2002.

Sob o Partido dos Trabalhadores de Lula, o governo federal brasileiro implementou uma enxurrada de políticas federais inovadoras que transformaram a vida de milhões de brasileiros. A pobreza despencou, enquanto o número de graduados aumentou.

Bolsonaro, por sua vez, lamenta sua incapacidade de fazer qualquer coisa, ansiando pelos dias de regime militar. Ele demonstra uma atitude irreverente em relação ao bem-estar de qualquer pessoa que não seja parente de sangue. O fato de ele ter conquistado a Presidência em 2018 é uma prova não do apelo de sua agenda, mas da erosão da civilidade básica no Brasil.

Essa é a comparação a ter em mente à medida que as manchetes aparecerem nos próximos meses – e com certeza farão – alertando os investidores para a agenda econômica supostamente preocupante de Lula e seu partido, o mesmo “bando horrível” que uma vez levantou 28 milhões de pessoas saíram da pobreza.

Também houve algumas reclamações de militares aposentados sobre a impropriedade de Lula ser elegível para um cargo público. Para seu grande crédito, no entanto, o vice-presidente Hamilton Mourão, um general aposentado, jogou água fria em qualquer conversa sobre conspiração, dizendo que as pessoas têm todo o direito de votar no ex-presidente.

É altamente improvável que uma trágica história de intervenção militar se repita. O retorno de Lula à cena também deixou a centro-direita em desordem. Por exemplo, João Doria, um ex-empresário que cavalgou ao lado de Bolsonaro até chegar ao cargo de governador de São Paulo em 2018, anunciou que pode não disputar a Presidência, reconhecendo o perigo de dividir o voto da direita. A ação de Doria é uma admissão tácita da capacidade do ex-presidente de atrair o amplo centro da política brasileira.

Como em 2002, quando Lula prometeu uma alternativa social-democrata plausível às privações do neoliberalismo, seu momento pode novamente se provar impecável. Há um ciclo de feedback a seu favor – os números das pesquisas indicam que Lula se sai melhor contra o Bolsonaro entre figuras da oposição, fortalecendo assim sua posição como líder da oposição e levando a números mais altos nas pesquisas à medida que outros eleitores anti-Bolsonaro acorrem ao seu lado.

Percebendo esse ímpeto, até mesmo figuras de centro-direita notaram a capacidade de Lula de construir pontes, uma crítica à incapacidade de Bolsonaro de fazê-lo. Talvez seja um sinal de que o establishment que antes apostou no Bolsonaro para manter o Partido dos Trabalhadores de Lula acuado em 2018 esteja chegando, aos trancos, à conclusão de que não vale mais a pena levar o país à beira do colapso.

*Professor de história e estudos latino-americanos no Dartmouth College, na Universidade em Hanover, em New Hampshire (EUA).