A fome como estratégia de controle da inflação dos alimentos
Na busca obstinada em atender os setores exportadores, Bolsonaro ignora por completo as necessidades do abastecimento alimentar do povo brasileiro. Não há um único produto da dieta básica da população com volume de estoques suficientes e capaz de atender a um dia do respectivo nível de consumo
Em 11 de março de 2021, quando o IBGE divulgou os resultados do IPCA de fevereiro, o Jornal Nacional da Rede Globo veiculou matéria sobre a inflação dos alimentos no Brasil. Ao tempo em que destacou as taxas “estratosféricas” da alta da comida no país, a matéria relativizou o fenômeno, caracterizando-o como de escala mundial.
Ainda que algumas tensões nos preços dos alimentos tenham sido observadas no planeta em 2020 pelos efeitos de uma maior demanda alimentar com os períodos de confinamento, combinados com medidas de amparo financeiro às populações vulneráveis, não há nada que se aproxime ao observado no Brasil.
Na realidade, na América Latina, os países com maiores altas da inflação de alimentos e índices gerais de preços foram a Venezuela e Argentina. Em ambos os casos, fenômenos antigos, essencialmente derivados de desarranjos estruturais agravados por fatores conjunturais.
O caso da Venezuela é mais antigo e conhecido. Na Argentina a inflação de dois dígitos remonta a 2010. O atual governo conseguiu reduzi-la de 53,8%, em 2019, para 36,1% em 2020. De todo modo, a inflação dos alimentos lá foi de 43,8% em 2020. Um ‘ponto fora da curva’ que, segundo o site agrositio.com, “responde a numerosas causas conjunturais e estruturais que são muito mais complexas do que o mero aumento dos preços internacionais de grãos”. O gráfico ao lado retrata as taxas da inflação dos alimentos no Brasil e países selecionados.
Há uma diversidade de fatores que impulsionaram a inflação da comida em 2020, que atinge de forma cruel os mais pobres. Destaco a irresponsabilidade do governo Bolsonaro que, na obstinação de atender os setores exportadores, ignora as necessidades do abastecimento alimentar do país. Não há um único produto estratégico da dieta básica da população com volume de estoques capaz de atender a um dia de consumo.
‘Especialistas do mercado’ responsabilizam pela carestia o aumento dos preços das commodities e o câmbio. As exportações de arroz se mantiveram em 1 milhão de toneladas em 2019 e 2020 – portanto, marginais no mercado internacional. Mas a inflação do produto foi de 76% em 2020.
As vendas externas de feijão não existem e a inflação do produto foi de 68%. O fato é que para vários produtos essenciais não temos produção capaz de garantir a demanda potencial de alimentos.
Com oferta comprometida por produção insuficiente, estoques públicos inexistentes e dificuldades de importações, parece que a estratégia do governo para enfrentar os preços altos vem da pior forma: a queda do consumo derivado do fim, ou do corte raso no auxílio emergencial.
Não por outra razão, o IPCA de fevereiro da ‘alimentação em casa’, foi de 0,28%. É significativamente menor que o de janeiro (1,06%), ainda que no acumulado dos 12 meses a inflação da comida tenha alcançado 19,4%.
Vale destacar que segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE, anterior à pandemia, os pobres destinavam 28% da renda à alimentação. Seguramente os dados já dramáticos regrediram para a catástrofe. Portanto, em meio a tanto infortúnio, não se enxerga qualquer ação virtuosa do governo para enfrentar o fenômeno da inflação dos alimentos. A estratégia parecer ser a do combate à carestia pelo aumento da fome!
* Integrante da coordenação do Núcleo de Acompanhamento de Políticas Públicas (NAPP) Agrário da Fundação Perseu Abramo.