Vida, obra e Militância (depoimento de Walnice Nogueira Galvão sobre Antonio Candido)
Por Walnice Nogueira Galvão*
Depoimento originalmente publicado no livro Antonio Candido – Pensamento e Militância. O trecho que segue foi disponibilizado online em 23 de julho de 2008 em homenagem aos 90 anos de Antonio Candido no site da Fundação Perseu Abramo.
Incumbida de fazer a apresentação geral do homenageado, e de contar tudo a seu respeito, alerto, em primeiro lugar, para a proibição de fazer-lhe elogios. Por isso, peço que não estranhem se não ouvirem um sequer.
Em segundo lugar, chamo a atenção para a drástica redução que me vi obrigada a fazer, tendo em mãos material mais para 800 anos do que para os 80 que festejamos.
Quem o conhece dispensa explicações. Quem não o conhece não sabe o que está perdendo.
Este é o homem cujos 80 anos fazem multiplicar as homenagens. Entre outras, suplementos especiais de vários jornais, o prêmio Camões e um simpósio de três dias, em que a USP se debruça sobre seu Professor Emérito.
As discussões costumam se elevar já sobre sua proveniência: seria mineiro, paulista ou carioca? Pasmem: todos os três. Nascido no Rio de Janeiro, foi criado em Minas e radicou-se em São Paulo. Por isso não tem sotaque, sua dicção é uma mistura dos três. O que outrora já fora objeto de um limerick da lavra de Décio de Almeida Prado:
Existe um curioso rapaz de Poços
Cujo segredo decifrar não posso:
Nascido no Rio de Janeiro,
É paulista ou será mineiro
Esse enigmático rapaz de Poços?
Já foi alvo – ou talvez vítima, sua discrição deixando entrever que se constrange ao centralizar as atenções – de um festschrift nos seus 60 anos (Esboço de figura, que tem até poema feito expressamente para a efeméride por Carlos Drummond de Andrade) e de outro nos seus 70 anos (Dentro do texto, dentro da vida). E agora não escapará de receber mais um, reunindo os trabalhos deste simpósio.
Passou a vida como professor, ofício do qual, aliás, bem que se orgulha. Sua matéria, no departamento que criou na USP, se intitula teoria literária e literatura comparada. Os alunos que formou, em 36 anos de magistério, perfazem legião. E estão espalhados por aí, tentando compartilhar com outros, agora alunos deles, o que aprenderam com o mestre.
O lugar que ocupa em nossa cultura é múltiplo. De saída, há que destacar seu papel como autor de uma reflexão fundamental para a criação de uma consciência sobre o país, de que é pedra angular seu livro de 1959, Formação da literatura brasileira. Ali procura retomar, a seu modo, o esforço de obras magistrais como Casa-grande e senzala, de Gilberto Freyre, Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Jr., e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
É nesse livro que Antonio Candido desenvolve o argumento de que tal formação pode ser vista como se, a partir de certo momento, fosse comandada pelo desejo dos brasileiros de construir uma literatura que expressasse o país. Ao mesmo tempo, essa literatura deveria marcar a sua diferença em relação à matriz: o que se faria mediante adaptação de modelos. Até atingir tal maturidade, os escritores vão-se impregnando dos modelos que vêm da Europa e adaptando-os às condições locais, o que, justamente, vai dar resultados de extrema originalidade. Quando a literatura brasileira deixa de se referir a eles e passa a se auto-referir, é que chegou ao ponto de maturidade. A noção de sistema, que preside a análise, é inseparável da compreensão desses itinerários. E o argumento será depois estendido por outros estudiosos a diferentes ramos da cultura.
Dentre seus vários livros sobressaem ainda Brigada ligeira, O observador literário, Literatura e sociedade, Vários escritos, Teresina etc., A educação pela noite, Na sala de aula, O discurso e a cidade, Recortes etc. Difícil é escolher entre eles, tal o alcance do pensamento e a finura da erudição. Uma de suas grandes conquistas é a clareza da escrita, que sempre fez questão que fosse de máxima acessibilidade. Sendo autor de algumas das mais belas análises formais de nossa literatura, é também o que erigiu em princípio condutor a meta de identificar no interior das obras o traço exterior reelaborado.
Tendo estreado como crítico literário na legendária revista Clima, em 1941, aos 23 anos, tornou-se parte de uma esplêndida constelação que marcaria duradouramente o panorama cultural do país. Foi lá que se definiram quanto à vocação não só ele como vários companheiros de toda a vida, como Paulo Emílio Salles Gomes no cinema, Décio de Almeida Prado no teatro, Lourival Gomes Machado nas artes plásticas, Ruy Coelho na antropologia, Gilda de Moraes Rocha – com quem viria a se casar – na estética.
Passou depois a exercer o mister na imprensa diária, ao encarregar-se de um rodapé semanal na Folha da Manhã, a que se seguiram outros periódicos. Ali registrava os lançamentos, mas também elaborava temas e falava de escritores estrangeiros. Nesses primeiros artigos já é de notar a extensão de seus interesses.
Teve uma carreira mais semeada de tropeços do que seu trato ameno deixaria transparecer. Pois esse crítico, apaixonado por literatura, começou estudando simultaneamente direito no Largo de São Francisco e ciências sociais na Faculdade de Filosofia da USP. Ao se formar nesta, tendo deixado o direito no último ano, tornou-se assistente de Sociologia, posição que ocupou até 1958. Nesse ano, teve a oportunidade de passar a ser professor de literatura brasileira na novel Faculdade de Filosofia de Assis, no interior paulista, e dali reverteria à sua escola de origem, onde ensinaria teoria literária e literatura comparada, a partir de 1961.
Em sua folha de serviços prestados, que é interminável, figuram atividades tão variadas quanto a presidência da Cinemateca Brasileira em mais de um mandato (1962 e 1977), o planejamento do celebrado “Suplemento Literário” de O Estado de S. Paulo, em 1956, ou a coordenação do Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, no período 1976-1978. E isso afora diversos outros cargos, conselhos de fundações e participação em comissões como a do IV Centenário de São Paulo, em 1954.
Com tanto trabalho e com tantos milhares de páginas que escreveu, ainda achou tempo, desde cedo, para fazer militância política. Para isso pode-se dizer que foi espicaçado pela ditadura Vargas, contemporânea de sua fase de estudos superiores. Como todo estudante que se preze, fez parte de grupos de resistência, como o que levava esse nome (Frente de Resistência) na Faculdade de Direito. Depois de formado, integrou-se à Associação Brasileira de Escritores (mais conhecida como ABDE), que congregou os intelectuais de oposição ao regime, numa frente ampla que ia do centro à esquerda. Deve-se à ABDE um dos primeiros manifestos contra o regime.
Entretanto, encerrada a ditadura, o segundo congresso da seção paulista, de que Antonio Candido foi presidente em 1949-1950, realizado em 1949 em Jaú, terminou com uma declaração de princípios falando em nome da liberdade da criação e do pensamento, o que provocou estremecimentos na frente ampla anterior. Nosso homenageado passara a pensar que, em plena democracia, já era tempo de falar menos de política e mais de literatura, já que afinal se tratava de uma associação de escritores. Este manifesto, proposto por Antonio Candido, foi discutido pelo grupo socialista, especialmente por Sérgio Milliet – que o leu em plenário -, Lourival Gomes Machado e Sérgio Buarque de Holanda (que foi presidente nacional, e depois presidente da seção paulista), sendo este último responsável pela redação final.
Ao término da ditadura, em 1945, fez parte da Esquerda Democrática, que dois anos depois se tornaria o Partido Socialista Brasileiro. Neste militou por longos anos, ocupando duas vezes cargos na direção, bem como no jornal Folha Socialista. Foi até candidato a deputado estadual em 1950, um sacrifício para preenchimento da cota de cargos legislativos que, aliás, acataram vários de seus companheiros intelectuais, como Sérgio Buarque de Holanda, Sérgio Milliet, Luís Martins, Décio de Almeida Prado, Cid Franco (eleito), Febus Gikovate etc. Um lembrete: à época, a lei obrigava cada partido a apresentar chapa completa, ou seja, tantos candidatos quanto fosse o total de cadeiras em disputa, o que evidentemente era difícil para os pequenos como o Socialista. A piada corrente era que seria preciso juntar todos os afiliados para compor a chapa. Ainda assim, dos 1.500 votos necessários para eleger-se, Antonio Candido obteve 580.
Entre as obrigações da carreira, acharia tempo para fazer sua tese de livre-docência em literatura brasileira, sobre O método crítico de Sílvio Romero, em 1945. E, mais tarde, o doutoramento em ciências sociais, com a tese intitulada Os parceiros do Rio Bonito, em 1954.
Com o advento da nova ditadura, instaurada pelo golpe de 1964, Antonio Candido não mais cessaria de participar de numerosas atividades. Dentre elas ressaltam seu desempenho na Comissão Paritária Central, de que foi membro eleito na Maria Antonia ocupada pelos estudantes, e em várias outras ações que assinalaram o ano de 1968. Foi iniciativa sua a recolha de depoimentos e provas para um “livro branco” sobre a destruição da faculdade, só publicado 20 anos depois.
Colaborou no jornal Opinião e foi um dos dirigentes da revista Argumento (1973-1974), proibida pelo regime militar no seu quarto número. Até uma lei especial foi criada para impedir que a revista se protegesse mediante um habeas-corpus. Depois continuou a militar intensamente nas oposições, inclusive na luta pela anistia, pela reintegração dos cassados e pela redemocratização. Por essa época, ajudou a criar a Associação dos Docentes da USP (ADUSP), de que foi o primeiro vice-presidente, bem a tempo para atuar na grande greve do ensino em 1979. Essa foi a greve em que Antonio Candido subiu na mesa, famoso episódio que até hoje é lembrado por quem o presenciou.
Foi a essa altura, também, que Antonio Candido se tornou membro da Comissão Justiça e Paz, criada por D. Paulo Evaristo Arns quando passou a arcebispo de São Paulo. Compareceu nesses anos a inúmeros comícios e atos públicos. Dentre esses, presidiu à sessão de lançamento da candidatura de Fernando Henrique Cardoso a senador, sessão realizada num teatro da Vila Mariana, em 1978; mas a partir daí trilhariam diferentes rumos. Foi signatário da “Carta aos Brasileiros”, redigida por Gofredo Telles Jr., e membro da comissão que a apresentou ao público, em 1977, na Faculdade de Direito. Finalmente, foi em 1980 um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores, no qual passou a atuar em diversas posições, sendo hoje presidente do conselho editorial da sua Fundação Perseu Abramo.
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Algumas palavras sobre a faina do professor. Há aulas e aulas, como todos sabem: depende do professor. Se este começou por preparar as aulas, e até as redige, é bom sinal. Sinal de respeito pelo aluno, que não está ali para ser embromado.
Em sala de aula, Antonio Candido costuma ser rigoroso. Não gosta de conversa fiada, nem de ser interrompido. As perguntas até que são bem-vindas, já que mostram que alguma coisa atingiu o aluno. E este, por definição, tem direito à atenção do professor. Mas é bom que espere o final da aula, para que o raciocínio do professor não se veja bruscamente cortado; e não é fácil reatá-lo, recompondo o fio da meada.
Paciência, segurança – a segurança de quem preparou a aula de antemão -, lhaneza de trato. E também limites bem definidos para barrar a intrusão injustificada e a pura falta de educação. Não se pode dizer, dados tais traços, que os alunos morressem de medo; mas sim que ficavam transidos de respeito.
Vários estavam ali para aprender mesmo. E, quando nesse caso, faziam jus à oportunidade. Foi assim que Antonio Candido preparou grupos de alunos, que tinham vocação e boa-vontade, para a pesquisa de arquivo. Começando pelos arquivos de Mário de Andrade, a que tinha acesso privilegiado, levou esses alunos a aprenderem a lidar com manuscritos, apontamentos, notas avulsas, fichas de leitura, anotações à margem dos livros da biblioteca, recortes e prototextos de toda ordem. A messe que frutificou constata-se como enorme, rica e inédita, e com justiça pode encher de orgulho o professor. Foi nesse ponto que contribuiu para a aquisição dos esplêndidos Arquivos Mário de Andrade pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP, fundado e presidido por Sérgio Buarque de Holanda, à época dirigido por José Aderaldo Castello. Contribuiu também, com Aziz Simão, para levar à Unicamp o arquivo de Edgard Leuenroth.
Tarimbado pesquisador ele próprio, mostram-no, entre outros, a Formação da literatura brasileira, à qual não escapou sequer o humílimo e ignorado “Sapateiro” Silva; e Teresina etc., verdadeira reconstrução a partir de retalhos heterogêneos. Nessa linha, os cursos pioneiros de crítica textual que ministrou, primeiro em Assis e depois na USP, figuram entre os primeiros do país.
Além de distribuir tarefas e ensinar como cumpri-las, o professor se encarregava de acompanhar o progresso dos trabalhos, na qualidade de orientador de mestrados e doutorados. Tal labuta implicava a manutenção de um seminário permanente, em que os vários alunos iam sucessivamente apresentando projetos de tese, bem como os diferentes estágios de sua realização. Terminada a exposição, o professor e os demais alunos submetiam o orador do dia a uma amigável sabatina. Surgiam dúvidas, críticas, sugestões, preciosas por chamarem a atenção do candidato para pontos que lhe tinham escapado. Mas igualmente serviam como treinamento para a defesa pública de tese que haveria de sobrevir a seu tempo. Este teste (obrigatório) no seminário se complementava por colóquios individuais, em que o professor discutia diretamente com o aluno.
Pode-se contar Antonio Candido como dos mais atuantes dentre os examinadores de teses. Devido a seu desempenho, viu-se requestado para ser orientador, ou, quando não fosse possível, ao menos para participar das argüições. Estas, escritas previamente, eram dadas ao candidato depois da cerimônia, para que pudesse estudá-las com vagar e maior proveito. Mais uma vez, a tônica sublinhava o respeito, num lance difícil, à pessoa e a seu trabalho.
Sua presença nas bancas despertava curiosidade e fazia acorrer os interessados. Trata-se de uma ocasião propícia para o exercício público do debate intelectual, conforme normas bem estritas. E suas argüições eram consideradas honrosas para o candidato, mesmo que gerassem polêmica: porque implicavam reconhecimento a seu esforço.
Da aula à pesquisa, da pesquisa à tese, da tese ao concurso, assim o professor ia-se desincumbindo de sua missão com os alunos. E é incalculável o número dos que veio a preparar para os futuros papéis, por sua vez, de pesquisadores e professores.
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Das peculiaridades de seu feitio, destacam-se aqui duas. Em primeiro lugar, é conhecedor de ópera e de música caipira, especialmente do cururu, sobre o qual fez pesquisa de campo e publicou trabalhos. Em segundo lugar, atribui grande valor à influência das mulheres na condução de sua vida, desde a infância. Afora sua mãe, que sempre menciona em conjunção com seu pai, também Mademoiselle de Sussex, que lhe ensinou francês quando criança em Paris; Maria Ovídia Junqueira, sua professora de inglês em Poços de Caldas e iniciadora na literatura inglesa, a quem homenageou escolhendo-a como patrono de sua cadeira na Academia de Letras daquela cidade; e Teresina Carini Rocchi, grande amiga de sua mãe, com quem aprendeu italiano e militância. Esta última, socialista ferrenha, deu-lhe o exemplo da força das convicções políticas e do que são os sentimentos igualitários. Sobre ela escreveria todo um livro mais tarde. Afora isso, nunca deixou de reconhecer o quanto lhe agrada viver cercado de mulheres, pois é pai de três filhas e avô de sete netos, dos quais seis são meninas.
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Apresentado então este panorama de vida, obra e militância de nosso homenageado, termino lembrando versos do poema que Carlos Drummond de Andrade lhe dedicou no volume de homenagem aos seus 60 anos, Esboço de figura (e se for elogio não fui eu quem o enunciou, foi o poeta):
Arguto, sutil Antonio,
a captar nos livros
a inteligência e o sentimento das aventuras do espírito,
ao mesmo tempo em que, no dia brasileiro,
desdenha provar os frutos da árvore da opressão,
e, fugindo ao séquito dos poderosos do mundo,
acusa a transfiguração do homem em servil objeto do homem.
* Walnice Nogueira Galvão é ensaísta e professora de teoria literária e literatura comparada da USP.
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