Vinculando a seleção à relação entre vagas e candidatos, os vestibulares estratificaram as escolas superiores em escolas “nobres”.

Vinculando a seleção à relação entre vagas e candidatos, os vestibulares estratificaram as escolas superiores em escolas “nobres”.

Vestibular Seletivo*

Por Perseu Abramo
26/01/1973

Em contraposição ao vestibular automático (aquele em que o número de vagas é maior do que o de candidatos, e no qual, portanto, são classificados todos os inscritos que comparecem aos exames), o vestibular seletivo classifica apenas os inscritos que, obtendo o maior número de pontos no conjunto de provas, acham-se, na escala decrescente de candidatos, colocados em tantos primeiros lugares quantas forem as vagas; ocorre, esse tipo de vestibular, em toda escola ou curso em que o número de vagas é menor que o de candidatos.

Embora os dois tipos de vestibular – nascidos da inovação perpetrada pelo decreto 68.908, de 11 de julho de 1971, que substituiu os exames de habilitação po26/01/1973r concursos de classificação – sejam perfeitamente distintos, e, assim, distingam também os cursos e as escolas em que são aplicados, pode existir uma certa dose de automaticidade também nos vestibulares do tipo seletivo. Essa dose de relativa automaticidade está vinculada à maneira de se procederem as inscrições dos candidatos, quando os vestibulares são realizados não pela escola mas por entidades selecionadoras de diversas escolas.

Tomemos o caso do Cescea e do Cescem. O Cescea inscreve seus candidatos por curso, ou por escola, ou por pequeno grupo de pequenas escolas. Assim, embora o Cescea aplique as mesmas provas para qualquer escola , grande ou pequena, da mesma carreira, na prática essas provas se comportarão de maneira completamente diferente, 26/01/1973conforme o candidato tenha feito sua inscrição para uma “grande” escola ou para uma “pequena” escola. Como cada candidato não está concorrendo com a totalidade dos demais candidatos inscritos no Cescea, mas apenas com os que se inscreveram para o mesmo curso, ou para a mesma escola, a seletividade desse vestibular seletivo fica extremamente prejudicada pela relação entre o número de candidatos e o de vagas de cada escola ou curso. Assim, pode ocorrer na prática a seguinte situação: na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em que o número de candidatos é várias vezes maior que o de vagas, o candidato A, que obteve 200 pontos (os números de pontos aqui são conjeturais) consegue entrar na sua primeira opção, que é o Curso de Ciências Sociais diurno; o candidato B, que tirou 150 pontos, só consegue entrar para a sua segunda 26/01/1973opção, Ciências Sociais, noturno; o candidato C, com 130 pontos, só consegue entrar em História, sua terceira opção; e o candidato D, que só obteve 100 pontos, não consegue entrar na Universidade. Mas, ao mesmo tempo, outro candidato E do mesmo Cescea, mas que optou por uma pequena escola X, da Capital ou do Interior – em que há mais vagas que candidatos – consegue entrar par o Curso de Ciências Sociais dessa escola fazendo exatamente as mesmas provas mas tendo obtido apenas, digamos, 50 pontos, isto é, a metade dos pontos do candidato D, que foi reprovado na USP. Isso, embora possa não ser preponderante, tem sido certamente significativo, em termos numéricos, nos últimos vestibulares, o que tem induzido muitos observadores a falarem em “seleção às avessas”. Com efeito, em termos globais e visto o processo educacional de uma perspectiva mais ampla, é completamente absurdo, não que o candidato E tenha entrado numa escola superior, mas que, tendo ele conseguido, não o tenha logrado o candidato D.

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Há outras entidades, todavia, como o Cescem, que procedem de maneira diferente: para a mesma carreira, cada candidato concorre com todos os demais, qualquer que seja a escola; e como as carreiras são correlatas, teoricamente um candidato pode por meio das opções concorrer a qualquer um dos 30 ou 40 cursos filiados à entidade. Isso significa duas coisas: em primeiro lugar, as oportunidades de cada candidato ficam consideravelmente ampliadas, pois ele está concorrendo a milhares de vagas, distribuídas por diversas escolas. Em segundo lugar, as habilitações de cada candidato são mais realisticamente avaliadas: como todos os candidatos concorrem a todas as vagas e estas são em número menor do que aqueles, serão sempre classificados apenas os “melhores” dentre todos os candidatos, qualquer que seja o curso ou escola, e abstraída, aqui, a discussão do conceito de “melhor”. Excepcionalmente, através de sucessivas desistências e sucessivas convocações, um candidato com um número de pontos relativamente baixo pode chegar a se matricular numa pequena escola em que ainda sobrem algumas vagas; mas nunca ele o fará em detrimento de um candidato que tenha obtido maior número de pontos e que tivesse sido barrado numa escola em que houvesse menos vagas do que candidatos. A automaticidade desse vestibular fica, assim, reduzida ao mínimo, e a variável predominante é a sua seletividade.

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Verifica-se, assim, que, além dos dois grandes tipos de vestibulares – o automático e o seleti26/01/1973vo – este último pode ser subdividido ainda em dois subtipos: o seletivo por habilitação (em que os mais habilitados são classificados) e o seletivo por concorrência (em que são classificados os que enfrentarem menor número de concorrentes em relação ao número de vagas).

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Essa tipificação não teria qualquer outra utilidade – a não ser a indiscutível utilidade lúdica em que toda a taxinomia implica – se não fora a de realçar, uma vez mais, os gravíssimos e ainda insuperados defeitos básicos do sistema educacional brasileiro, que, por trás das suas funções manifestas, ainda detém as inegáveis funções latentes de reconhecer e cristalizar o sistema social estratificado em camadas de nível de consumo e de prestígio ocupacional. Primeiramente, substituindo a habilitação pela classificação, os vestibulares terminaram por eliminar qualquer resquício de diferenciação pessoal nos componentes das diversas camadas sociais, reduzindo praticamente a zero o esforço individual como tentativa de superar as limitações de classe. Depois, vinculando a seleção à relação entre vagas e candidatos, os vestibulares estratificaram as escolas superiores em escolas “nobres”- as que absorvem os “melhores” candidatos das classes mais favorecidas, e escolas “massificadas”- aquelas em que entram todos os demais candidatos das classe sociais que têm direito a aspirar a uma escola superior. Mesmo que não seja maquiavélica, não resta dúvida de que não deixa de ser eficientíssima a maneira pela qual se está conseguindo a elitização crescente da educação, e, através dela, o reforço da elitização econômica, social e política da sociedade brasileira. Como diria o povo, se a ele fosse concedido o dom de dizer, e se lhe sobrasse, de outras preocupações mais imediatas e vitais, energia e lazer para meditar sobre assunto tão alheio, “universidade é para quem pode, não é para quem quer”.


*Publicado no jornal Folha de S.Paulo, na seção Educação