Wilson H. da Silva
“A democracia não virá, hoje, este ano, nem nunca através do acordo e do medo”
Os versos acima (em tradução livre) foram escritos por um dos mais geniais poetas norte americanos, Langston Hughes. Negro e homossexual, Langston foi uma das mais importantes expressões de um movimento artístico que floresceu no bairro negro nova iorquino, o Harlem, nos anos 20 e acabou influenciando todo o cenário cultural da época.
Apesar das abissais diferenças que existem entre o poeta e o mais aclamado cineasta negro da atualidade, Spike Lee, acredito, no entanto, que seu poema oferece uma espécie de passaporte para adentrarmos em um dos últimos filmes do diretor: o pouquíssimo visto (pelo menos por aqui) Todos a bordo, de 1996.
Tendo tido uma meteórica passagem pelas telas brasileiras (o que dispensa comentários sobre os absurdos e discriminatórios critérios que regulamentam a distribuição cinematográfica em terras tupiniquins), o filme, que está disponível nas locadoras de vídeo, tem como pano de fundo a “A Marcha de Um Milhão de Homens Negros”, realizada na (ou melhor, sobre a) capital dos Estados Unidos, em 1995.
Como todos devem lembrar, a Marcha sobre Washington foi tão polêmica quanto gigantesca. Organizada sob a batuta de Ferrakhan, um sujeito que, em hipótese alguma, pode ser identificado com os ideários da esquerda ou mesmo com as convicções e práticas de um outro líder negro adepto do islamismo, Malcom X, a manifestação, entre outras coisas, praticamente vetou a participação das mulheres negras (que mesmo assim, é verdade, se fizeram presentes, até porque, tanto lá quanto aqui, são elas que se encontram em pior situação na racista pirâmide social erguida pela sociedade capitalista).
Seja como for, é um fato inegável (e louvável) que cerca de um milhão de negros, independentemente de sua simpatia ou não por Farrakhan e seu projeto político, tenham saído dos mais distantes cantos do país para expressar sua revolta contra os inúmeros descalabros provocados pelo racismo que reina no país do Tio Sam. Um racismo que (apesar dos mitos que correm mundo afora) afeta diretamente a vida de milhões de pessoas, das mais diversas formas, cotidianamente.
E é exatamente ao trazer esta dimensão cotidiana, pessoal e às vezes quase imperceptível para dentro das telas que Todos a bordo é particularmente genial. Transformando um ônibus – que atravessa o país em uma viagem de três dias em um microcosmo dos Estados Unidos, Spike Lee realizou um dos mais completo e complexo retrato da população negra norte- americana (masculina, é necessário insistir) que se tem notícia.
Nele, há um velho e sábio senhor cheiro de ética, sabedoria e histórias; um radical, jovem e um tanto confuso militante muçulmano; um pai, literalmente, algemado a seu filho “delinqüente”, um nostálgico ativista do movimento pelos direitos civis da década de 60, um músico cheio de ódio; um desempregado crônico e, até mesmo, um casal de gays que além da discriminação racial tem que lidar com a pouco sutil homofobia que corre solta dentro da comunidade negra.
Isto para citar apenas alguns dos passageiros que embarcam em uma viagem cujo percurso acaba sendo muito mais importante que o ponto de chegada, pois é durante o caminho, e não na Marcha em si (que surge em imagens realizadas durante o próprio evento), que estes homens refazem suas próprias histórias, reavaliam os caminhos escolhidos e, acima de tudo, rediscutem o caminho que todos eles, enquanto uma comunidade marginalizada, percorreram nas últimas décadas.
Filmado com maestria pelo sempre competente Spike Lee, que consegue fazer do interior de um apertado ônibus um cenário dinâmico e envolvente, o filme, apesar de suas muitas contradições (a maioria delas vinculadas ao “ponto-de-vista-classe-média-negra-intelectualizada” que o diretor geralmente imprime em seus filmes), indiscutivelmente, faz ecoar o poema de Langston ao evidenciar que nos EUA, ou em qualquer outro lugar do mundo, só há um caminho de fato para se chegar à uma situação mais igualitária em relação às questões raciais (o que não tem nada a ver com qualquer farsa travestida “democracia radical”): caminhar sem medo, lutar sem trégua.
O que, é óbvio, não significa fechar-se ao diálogo. Mas, categoricamente, implica em não deixar-se calar, em impor a nossa voz, como negros e negras, para que nossa história não seja escrita por meio de “terceiros” que tomaram para si o monopólio do poder, da fala, da grana e, até mesmo, durante séculos, de nossas vidas.
Indispensável para todos os negros, principalmente aqueles que alimentam ilusões sobre as relações raciais nos EUA, o filme certamente também deve ser visto por todos que visam construir uma sociedade que esteja para muito além do racismo, dos acordos e dos medos e, consequentemente, para além da própria democracia. Pois, assim como o fim do racismo, o socialismo só virá para os que caminham sem medo, sem tréguas.
Wilson H. da Silva é historiador, com mestrado em cinema na Universidade de São Paulo
Fonte: PT Notícias, nº 80, 08 de julho de 1999, p. 04. Acervo: CSBH/FPA.