Desde que conheci Perseu Abramo, em 1975, ele sempre deteve alguma parcela de poder.
Por Alípio Freire

Desde que conheci Perseu Abramo, em 1975, ele sempre deteve alguma parcela de poder.
Por Alípio Freire

Um total desapego ao poder

Por Alípio Freire*
Março de 1966

Se não a melhor, uma das melhores formas de conhecermos uma pessoa é observar a maneira como ela exerce poder, por mais ínfimo e restrito que este seja.

Desde que conheci Perseu Abramo, em 1975, ele sempre deteve alguma parcela de poder. Fosse no plano profissional, fosse no plano da política. Naquele ano, Perseu era editor de Educação da Folha de S. Paulo. Uma Folha cujo projeto apostava então na abertura e “redemocratização” do país, ainda que nos limites óbvios de seus interesses. Uma redação cheia de vida, que pulsava, em meio aos acontecimentos que povoaram a segunda metade dos anos 70. Uma época em que, na categoria dos jornalistas, o centro da atuação profissional estava nas redações da grande mídia, particularmente dos grandes jornais, e quando ser editor da Folha significava prestígio e respeito, tanto do ponto de vista profissional quanto político.

Era uma época ainda de ditadura, quando pouco ou nada se falava ou se perguntava sobre a história das pessoas, e quando éramos obrigados – mais do que nunca – a decifrá-las pelos seus gestos, pelo seu fazer.

Quanto ao fazer profissional, rapidamente ia se desvendando para mim o Perseu jornalista rigoroso, com pautas precisas, informações o mais completas possíveis, em que “o leitor era a sua obsessão” como bem já descreveu Lillian Witte Fibe em artigo na Folha. Na relação com a equipe que coordenava, sua eterna preocupação em transferir para seus companheiros, no cotidiano, a vasta bagagem que modestamente carregava. Coerente, entendia os riscos da divisão do trabalho e, com seus repórteres e redatores, discutindo a pauta e a linha da seção e do jornal, evitava fragmentação e a alienação no processo de produção da informação. Tudo isto se completava, se costurava com a organização de um arquivo da sua editoria, em que criteriosamente assentava a memória e a história da Educação naquele tempo.

Na relação conosco, os demais profissionais seus colegas – jornalistas, editores, office boys ou faxineiros – o diálogo sempre franco e respeitoso, a solidariedade e uma profunda paciência em ouvir e tentar resolver problemas.

Mas, não se demoraria muito para que eu descobrisse também o militante político, no sentido estrito do termo, aspecto que até então desconhecia, porque não participara do Movimento de Fortalecimento do Sindicato, oposição sindical dos jornalistas, que levou à derrota dos pelegos naquele ano.

É que, poucos meses depois de conhecer Perseu, nossa categoria mergulhou de cabeça numa das maiores crises políticas que a ditadura militar viveu naquele período: o assassinato sob tortura de Vladimir Herzog – o Vlado – no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências da Oban.

A firmeza de Perseu nas articulações políticas mais gerais, nas assembléias do sindicato, ou junto à sua diretoria, foi de grande importância e eficácia. Juntamente com os de outros companheiros, seu papel foi decisivo. Naquele momento era preciso convencer os “imobilistas” de que era necessário e possível avançar nas conquistas democráticas, era necessário e possível ampliar os limites da liberdade concedida pelas leis de exceção do regime. Temer o famoso fantasma do “golpe” e do “fechamento” bramidos pelas forças que apostavam na inação para amedrontar os que ousavam avançar, significava propor à categoria e à sociedade a autocensura, que ela própria se autogolpeasse, livrando a direita desse ônus, em momentos em que a correlação de forças nos era visivelmente favorável. Perseu contribuiu para que essa concepção fosse derrotada atuando em várias frentes: articulando apoios políticos, mobilizando a redação onde trabalhava e outras para as assembléias e, com sua infinita paciência, tentando persuadir aqueles que pretendiam um recuo. Isto, é lógico, sem esquecer a atenção pessoal, a solidariedade plena à família Herzog. O resultado desta ação do Perseu e de outros militantes todos conhecemos.

A partir de então, estava claro para mim quem era aquele companheiro. E daí pra frente, suas atitudes e gestos só iriam confirmar e deixar mais claro aquele retrato esboçado a traços largos. Depois foram as reuniões ampliadas da diretoria do sindicato, as assembléias, as comissões salariais das campanhas, a Comissão de Liberdade da Imprensa, a criação e coordenação do CCRR (Conselho Consultivo de Representantes das Redações) o Comando de Greve dos Jornalistas, o Comitê Brasileiro pela Anistia, o Comitê de Solidariedade às Greves (particularmente as operárias) do final dos anos 70, o Comitê de Solidariedade aos Povos da América Latina e do Caribe, a fundação do PT e sua participação na Comissão Executiva Nacional, a coordenação da comunicação do partido, o Conselho de Redação da Revista Teoria & Debate, a Secretaria de Comunicação do Governo Erundina etc.

Modesto e paciente, nos últimos tempos parecia afundado em “trabalhos menores” ou na “burocracia” do Partido dos Trabalhadores. Mas apenas parecia. O trabalho de sistematização política, organizativo e de elaboração de textos que desenvolvia de modo disciplinado e preciso era de suma importância.

E, sobretudo os mais jovens que o tenham conhecido apenas nesses anos recentes certamente não se aperceberam de outras facetas.

Sua participação nas articulações e conspirações clandestinas contra o regime militar e sua firmeza e altivez serenas perante o inimigo durante sua prisão em Brasília logo depois do golpe de 64 são exemplos para todos nós.

Quem participou das jornadas de luta de nossa categoria nos anos 70 também jamais esquecerá suas intervenções. Particularmente no comando da greve dos jornalistas em 1979. Na assembléia da categoria, no Tuca, foi ele o responsável pelo encaminhamento da proposta que deflagrou a greve. Depois de uma clara exposição de motivos, no final de sua fala, ele rasgou em público a resposta intolerante dos patrões às nossas reivindicações. Sua fala e seu gesto representaram, naquele instante, o sentimento e a decisão da maioria quase unânime dos mais de mil jornalistas ali presentes. Um daqueles raros momentos em que orador e plenário fundem-se numa só decisão, num só destino.

Por fim, frente aos problemas de saúde que o afetaram e foram se agravando, encontramos mais uma vez a compostura, a postura digna, o recato no tratamento da questão, a preocupação em tranqüilizar os amigos que o visitavam.

Seu velório no saguão do Tuca, e seu enterro no cemitério Getsêmani reuniram amigos e companheiros de profissão e de lutas dos mais diversos partidos e tendências do PT e da esquerda: uma consternação coletiva partilhada na diversidade representava o espírito democrático, solidário, leal e fraterno que Perseu carregou durante a vida.

Ateu, formado na melhor tradição socialista e revolucionária, seus funerais dispensaram quaisquer serviços religiosos, levando assim a marca da sua experiência e da sua família.

Por tudo isso, reafirmamos: de um companheiro como Perseu, não nos despedimos. Nós o carregamos conosco como exemplo e referência. Como o tivemos em vida.


*Alípio Freire trabalhou na Folha de S. Paulo na década de 70.

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