TRÊS VEZES DISCRIMINADA – 1988

Sueli Chan Ferreira

A mulher negra resgata a tradição de Dandara e Luiza Mahin para opor-se à opressão de classe, raça e sexo.

Falar e pensar a mulher negra na sociedade brasileira implica entender a complexidade do ser negra numa sociedade construída sobre os alicerces classista, racista e patriarcal. Certamente, essa discussão não se esgota, assim como não se iniciou, num artigo e muito menos em grandes teses a respeito da realidade das mulheres negras no Brasil e no mundo, mas passa principalmente pela organização das mesmas, no sentido de conscientizarem-se de sua tríplice discriminação (de classe, racial e sexual), engajando se então nas lutas gerais e específicas dos trabalhadores e oprimidos pelo fim da exploração e opressão, o que remete à discussão e ao compromisso dos setores progressistas da sociedade brasileira, no sentido de contemplar, no conjunto das reivindicações da classe trabalhadora e dos oprimidos em geral, a luta das mulheres negras.

Neste sentido, a necessidade de se discutir a questão coloca-se em espaços de lutas sociais fundamentais, ou seja, nos movimentos sindical e popular, passando basicamente pelos movimentos negro e feminista. E é com esta compreensão que entendemos que o Partido dos Trabalhadores em muito contribuirá para esta discussão, pois, nascido das bases dos movimentos sociais (sindical e popular), incorporou às suas bandeiras setores específicos essenciais, quais sejam as mulheres e os negros. Embora estes setores estejam contidos, na sua grande maioria, na classe trabalhadora, são tratados pela classe dominante enquanto “minoria”. Certamente são minorias no que diz respeito à sua participação efetiva no poder, no entanto são maioria enquanto contingente populacional. Só a população negra representa 44% da população brasileira, onde aproximadamente a metade das mulheres, flagrantemente, se encontram na base da pirâmide social e econômica.

Objeto sexual

Vale lembrar aqui a trajetória da mulher negra no Brasil. Embora trazida da África em proporções menores que o contingente masculino, até porque no atendimento dos comerciantes de escravos as mulheres significavam um ônus maior, na medida em que, estando grávidas, contribuiriam na diminuição da produção, cumpriam os mesmos trabalhos no cultivo e colheita das grandes produções de açúcar, algodão, na extração de minérios, além de servirem às famílias dos senhores de escravos na “Casa Grande”. Porém, as maiores humilhações destinadas às mulheres negras eram submetê-las às luxúrias dos seus senhores, além de amamentarem os filhos da “Casa Grande”. Forçadas à condição de objeto de exploração sexual e amas de leite, eram constantemente transformadas em mercadorias de aluguel, aumentando assim as “rendas” de seus senhores, situação esta que as impedia de manter uma relação mais próxima e necessária com seus filhos.

Em se comparando com a luta das mulheres nos nossos dias, as reivindicações por creche, garantia da licença maternidade, entre outras reivindicações feitas pelos movimentos feministas, reflete ainda o descaso dos governantes para com a mulher trabalhadora, agravando-se ainda mais no que diz respeito às mulheres negras, que, na sua grande maioria (80% no setor de prestação de serviços), trabalham como empregadas domésticas. Deve- se lembrar que esta categoria de trabalhadoras não tem ainda garantidos direitos trabalhistas tais como: piso salarial, descanso remunerado, folga semanal, férias de 30 dias, FGTS, além da jornada de trabalho regulamentada.

O importante papel desempenhado pelas mulheres negras na luta de resistência à escravidão e à opressão secular é uma realidade na suas vidas. Nomes como Dandara, grande guerreira de Palmares, como Luiza Mahin, uma das líderes do movimento pela libertação dos negros escravizados, são omitidos da história oficial, no sentido de não reconhecer na força negra feminina um dos baluartes da verdadeira liberdade dos oprimidos. Traçando aqui também um paralelo com as lutas atuais, é interessante perceber que a mulher negra, mantendo sua tradição de luta, encontra-se engajada nas lutas populares e, observando em especial o movimento negro, as mulheres negras representam um contingente significativo no seu interior.

8 de março

No entanto, tanto o movimento negro quanto o movimento de mulheres ainda não conseguiram tratar com a devida necessidade a questão específica da mulher negra, que, reafirmamos, sofre uma tríplice discriminação. Embora esta seja ainda uma realidade dos movimentos, foi interessante observar a tônica dada pelas mulheres negras, no último 8 de Março, o Dia Internacional da Mulher. Sabemos que a grande imprensa, neste 8 de Março, evidenciou a questão da mulher, abordando em especial a questão da mulher negra, aqui em função do Centenário da Abolição, até porque começa a reconhecer o papel da mulher e a sua organização na sociedade brasileira. Mas foi efetivamente nas ruas que as mulheres negras, em particular em São Paulo, demonstraram sua participação nas lutas do dia-a-dia, levantando bandeiras gerais e específicas.

Foram ainda as mulheres negras que deram a tônica festiva e política ao 8 de Março deste ano, diferentemente das manifestações de anos anteriores, empregando nesta manifestação de rua a marca cultural do povo negro. Para quem se lembra, a palavra de ordem: “8 de março o que é, o que é; Dia Internacional da Mulher. A mulher não é chofer de fogão, não, não, não”, foi puxada com o ritmo do afoxé, que, somada a outras palavras de ordem (- Melhor que lavar prato é estar no Sindicato – esta puxada pelas sindicalistas), trouxe à manifestação um colorido só possível para aquelas que se engajam na luta por melhores condições de vida sem perder a vitalidade e a beleza que lhes é peculiar.

Em muitos outros espaços de luta, a população negra há de reivindicar, junto com todos aqueles que lutam pela mesma causa, uma sociedade verdadeiramente justa, onde sejam abolidas todas as formas de exploração e opressão.

Fonte: Boletim Nacional do PT, nº 35, maio de 1988, p. 12. Acervo: CSBH/FPA.

Para visualizar o documento original, clique aqui.

`