Chegava na casa-aparelho da rua Cubatão ou da Rua dos Otonis com a alegria transbordante de não se sabe donde. Queria experimentar a perna de cordeiro assada e não dispensava um gole. Educado, brincalhão, generoso, espirituoso, como se dizia antigamente. Seria esse o homem da revolução?

Grandeza

Uma das alegorias do comunismo é a aurora. O sol subindo, a luz, o nascimento de um dia cheio de cores e promessas. Vem aí um mundo novo. Numa dessas auroras, no Rio de Janeiro, em 1968, eu caminhava à beira-mar com um comunista heróico e muito otimista que me surpreendeu com uma conversa bem amena sobre o presente e o futuro. Quem chegasse perto ia ouvir o velho Lima falar de estratégia e tática junto com histórias engraçadas da revolução e de revolucionários. Não deixou em paz o senhor peitudinho que passou correndo por nós – um militar de pijama tentando manter a forma. O que você achou de Terra em Transe? E a redação da Última Hora, como é? Falou dos filhos, da França, da nossa base operária em Niterói. Tudo o que dizia dava sempre a sensação de que tinha sido de alguma forma vivido por ele. Foi o tempo de ir de Botafogo ao Santos Dumont e de clarear totalmente o céu. Simpática demais essa aurora para esquecer.

Eu tive a sorte de conhecer o Lima, aliás, o Apolonio de Carvalho naquele ano, pouco depois de ter tido a sorte de conhecer “Carlos” Mário Alves, “Sabino” Jacob Gorender, Sônia Irene, Valdizar do Carmo, Aytan e Helenita Sipahi, Adilson Citelli, entre outras pessoas legais que construíam, na moita, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário, o PCBR. Apesar do convívio, eu só saberia que ele era ele, aquele herói todo, quase um ano mais tarde, porque o Valdizar não agüentou minha ignorância.

Mas desde o começo saquei que era um grande homem. Chegava na casa-aparelho da rua Cubatão ou da Rua dos Otonis com a alegria transbordante de não se sabe donde. Queria experimentar a perna de cordeiro assada e não dispensava um gole. Educado, brincalhão, generoso, espirituoso, como se dizia antigamente. Seria esse o homem da revolução?

Apesar de seus méritos militares na Espanha e na França, ele nunca considerou um mérito especial ser militar, fazer a guerra e, especialmente, matar. Em meio aos debates sobre a luta armada em nosso partido, foi sempre firme contra as ações isoladas e ataques de desespero. A resistência com as armas era apenas uma contingência e deveria ser feita pelo povo – nunca por um grupo de revolucionários iluminados, cujo isolamento era a receita certa para o autoritarismo. Antes que meu filho lhe perguntasse se havia matado muita gente nas guerras, eu pensava que era muito fácil e natural eliminar fascistas e nazistas em batalhas e escaramuças, como a gente vê nos filmes. Surpreendi-me com suas descrições detalhadas da luta e de seu sofrimento no momento decisivo de acabar com o inimigo. Não é fácil matar.

Para ele é fácil ouvir. Apolonio tem uma atitude básica de abertura para ver e ouvir coisas novas. Nesses mais de 30 anos, nunca o vi dar um tropeço preconceituoso. Nem sobre o tropicalismo da época, nem sobre Cinema Novo, nem sobre todas aquelas extravagâncias da juventude dos anos 60. Isso não é pouco. Abria-se então um grande fosso entre o que nós e nossos pais pensávamos, queríamos, sentíamos, gostávamos, a ponto de tornar a convivência quase impossível. Os velhos comunistas tinham tanta idade quanto nossos pais, eram também eles pais de família e vinham de uma tradição bastante moralista do Partidão. Sobre as novidades demasiado diferentes, ele chegava com cuidado e perguntava com curiosidade. Mais tarde, já nos anos 80, perguntou muito sobre as pinturas abstratas e monocromáticas que eu fazia. Não discutia os fundamentos – comentava apenas que aquilo fazia parte do mundo da liberdade. Ele a sua companheira Renée foram muitas vezes as primeiras pessoas a chegar nas minhas exposições.

Para os velhos e jovens comunistas, tão forte quanto o choque dos costumes, foi o nascimento de um partido de massas não marxista, sem centralismo democrático, cheio das tendências. Como Apolonio se saiu com essa? A família Carvalho ainda estava exilada em Paris, em 1978, quando encontrei Apolonio ansioso por informações sobre o movimento sindical no ABC paulista. Era a época das primeiras grandes greves nas montadoras de veículos e, depois, em toda a indústria metalúrgica, que ajudaram a liquidar a ditadura no Brasil. Enquanto boa parte da esquerda ainda olhava as chamadas lideranças autênticas (ou o novo sindicalismo) com muita desconfiança – porque não havia saído das chamadas “oposições sindicais”, mais ligadas à Igreja progressista e ao que restou dos partidos marxistas – Apolonio pedia mais e mais detalhes. Ele se animava, sorria e parecia se deliciar com minha confirmação de que dali de São Bernardo do Campo saíam coisas verdadeiras. Quando voltou ao Brasil, já anistiado, das primeiras coisas que pediu foi para ser apresentado ao Lula. Fomos lá nos metalúrgicos. Era visível a emoção do Lula ao encontrá-lo. Para escândalo de muitos antigos e novos militantes (inclusive trostskistas) guiados pela concepção de partido leninista, cheia de regras e de cadeias pouco democráticas de comando, eis que Apolonio de Carvalho ajuda a construir, como um militante comum, o Partido dos Trabalhadores. Tal como já o havia feito Mário Pedrosa.

Algumas dessas coisas estão no seu livro de memórias Vale a Pena Sonhar (Editora Rocco. Rio de Janeiro, 1997). Leia. Você vai ver, como bem o disse Diogo Rosas Gugish, em uma resenha, que Apolonio escreve como se tivesse passado a vida a empunhar uma pena e não uma arma. E com uma modéstia do tamanho de sua grandeza.


* Sérgio Sister é jornalista e fundador do Partido dos Trabalhadores.

`