RACISMO NO MUNDO: A CAIXA DE PANDORA – 2001

Edna Maria Santos Roland

Apesar de avanços no combate ao racismo, as teorias, políticas e práticas racistas não somente continuam a existir, mas têm ganhado terreno ou adquirido novas formas, como as políticas de “limpeza étnica”.

Segundo Michael Banton, a Convenção Internacional para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (Icerd) foi aprovada em um momento que o colonialismo, a segregação e a discriminação encontravam-se no centro dos debates e esperava-se a eliminação rápida da discriminação racial como resultado de uma ação dos Estados partes da ONU.

Mudanças dramáticas ocorreram no mundo desde que a Icerd foi aprovada em 1965: as Nações Unidas podem justificadamente comemorar o fim do apartheid e do colonialismo, todavia o mundo tem testemunhado o surgimento de muitos conflitos étnicos e raciais sangrentos que chamaram a atenção da mídia internacional na década de 90, especialmente na Europa e na África.

Por outro lado, as dificuldades que envolveram o processo de realização da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata demonstraram que as feridas produzidas pelo colonialismo, escravidão e tráfico de escravos permanecem abertas. Evidenciou-se também que os conflitos envolvendo o Oriente Médio e a ausência da constituição do Estado Palestino quase colocaram em risco os resultados de dois anos de preparação, envolvendo 170 países. Ao lado destes dois focos candentes, o debate acerca de outros fatores de discriminação, que produzem o que foi denominado discriminação múltipla ou agravada, demonstrou que temas relacionados à sexualidade e à diferenciação entre os sexos enquanto fenômenos da cultura permanecem sendo tabus, e de mãos dadas, se encontram cristãos católicos e muçulmanos.

A explosão das torres gêmeas de Nova York, apenas três dias após o término da III Conferência Mundial, da qual retiraram-se da mesa de negociações os Estados Unidos e Israel, e os acontecimentos que se seguiram, ratificam a certeza da centralidade do racismo na constituição do mundo de hoje.

Ao lado de fatores históricos e estruturais que se corporificaram nas guerras de conquista, no tráfico de escravos, na escravidão, nas cruzadas contra os povos árabes, há manifestações recentes de racismo no bojo dos processos da globalização, propiciadas por novas facilidades de comunicação e transporte.Banton considera que o preâmbulo da Icerd apresenta a discriminação racial como uma doença social, enquanto o Artigo 26 da Convenção Internacional pelos Direitos Civis e Políticos (ICCPR) apresenta-a como uma conduta ilegal, pela qual um ou mais indivíduos são responsáveis e devem prestar contas. O preâmbulo da Icerd, numa frase basilar, afirma que a doutrina da superioridade baseada em diferenças raciais é cientificamente falsa, moralmente condenável, socialmente injusta e perigosa.

Em um artigo recente, Rüdiger Wolfrum faz uma interessante revisão dos instrumentos internacionais que proíbem a discriminação racial, com ênfase para a Icerd. Este autor afirma que apesar das tentativas para se abolir as políticas e práticas baseadas ou promotoras de manifestações xenófobas e racistas e para se contrapor às teorias que se baseiam ou endossam tais práticas, estas teorias, políticas e práticas não somente continuam a existir, mas têm ganhado terreno ou adquirido novas formas: as chamadas políticas de “limpeza étnica” seriam uma das novas formas de racismo.

A realização da III Conferência Mundial contra o Racismo fez parte de uma série de iniciativas da ONU para fazer frente ao crescimento de formas contemporâneas de racismo e discriminação racial, com o crescimento de incidentes dirigidos contra negros, árabes, muçulmanos, judeus, trabalhadores migrantes.

Enquanto a I e a II Conferências Mundiais trataram fundamentalmente do apartheid na África do Sul, o contexto da III Conferência foi totalmente diferente: abriu-se a caixa de Pandora, na medida que se teve que lidar com os mais diversos problemas de todos os Estados-partes das Nações Unidas. A discriminação racial nesta conferência deixou de ser um assunto de política externa, um problema da África do Sul, para se tornar um problema central de todos. Segundo Theodor van Boven, a luta contra o apartheid funcionou como um tipo de navio quebra-gelo, que abriu novas formas de luta contra as violações dos direitos humanos. A dificuldade das negociações foi resultado das contradições entre os diferentes interesses em jogo, especialmente das diversas regiões.

Uma questão que tem dificultado a compreensão do racismo, especialmente no Brasil, tem sido a relação entre racismo e pobreza. Freqüentemente a esquerda brasileira tende a subestimar a importância do racismo, considerando que no Brasil o que temos é um problema de pobreza. Podemos considerar pelo menos duas linhas de interpretação na explicação do racismo: uma considera que o racismo e a discriminação racial resultam da distribuição desigual do poder político e econômico nas sociedades. Outra visão considera que o racismo desenvolveu-se como uma justificativa da expropriação da terra e dos meios de produção. De acordo com esta teoria, a persistência e a mutação do racismo é relacionada direta e indiretamente ao fato de que é negado aos grupos discriminados o acesso aos meios essenciais de sobrevivência, tais como a terra, os empregos, habitação, educação, serviços de saúde e planejamento familiar. Nesta visão, a pobreza dos grupos discriminados resulta do racismo, o qual é, por sua vez, relacionado à distribuição dos recursos. A exclusão social é, assim, uma das faces contemporâneas do racismo. Assim, para combater a pobreza, é necessário combater o racismo. Qualquer que seja a vertente interpretativa adotada, contudo, não há como combater um dos vilões – racismo ou pobreza – sem combater o outro. Tal compreensão da centralidade da necessidade do combate à pobreza para se combater o racismo não implica, absolutamente, o não reconhecimento da necessidade de ações que, para além da pobreza, combatam as idéias e ideologias racistas, sem as quais o racismo não existiria.

Principais pontos

A III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata se constituiu numa extraordinária oportunidade para colocar o racismo na ordem do dia, no centro dos debates da contemporaneidade. A Declaração e o Programa de Ação se constituem em documentos bastante amplos, que sem dúvida nos oferecerão instrumentos significativos na luta contra o racismo, passando por diferentes áreas: escravidão e reparações, ações afirmativas, educação, gênero, saúde, trabalho, terra, justiça, violência, segurança, religião, comunicação, ocupação estrangeira, povos indígenas, ciganos etc. Dentre os principais pontos para os afrodescendentes podemos destacar:

-Institucionalizou-se o conceito de afrodescendentes, que se refere aos descendentes dos africanos escravizados, especialmente nas Américas. Dessa forma o conceito não tem apenas uma referência geográfica, mas contém um sentido político que se liga à proposta das reparações.

-As ações afirmativas foram reconhecidas como um meio preferencial de combate às desigualdades raciais. Além das áreas tradicionais, educação e mercado de trabalho, o Programa de Ação de Durban inova propondo investimentos preferenciais nas áreas de saúde, habitação, saneamento, água potável e controle ambiental nas regiões habitadas pelos afrodescendentes.

-Foi reconhecido que discriminação racial se corporifica de modo diferenciado para homens e mulheres, propondo-se que todos os programas de combate ao racismo devem ter uma perspectiva de gênero.

-Escravidão e tráfico de escravos foram declarados crimes contra a humanidade, principais fontes e manifestações do racismo e da discriminação racial.

-A Conferência apela aos Estados envolvidos com a escravidão e tráfico de escravos a honrar a memória das vítimas e que contribuam para restaurar a dignidade das vítimas.

-Foi reconhecido que as conseqüências passadas e contemporâneas do racismo colocam sérios desafios à paz e segurança global, à dignidade humana e à realização dos direitos humanos e liberdades fundamentais.

-Foi enfatizado que lembrar os crimes e erros do passado, condenar as tragédias racistas e contar a verdade sobre a história são elementos essenciais para a reconciliação internacional e a criação de sociedades baseadas na justiça, na igualdade e na solidariedade.

-Foi proposto que os países em desenvolvimento enfrentem os desafios da pobreza, marginalização etc., por meio de iniciativas como a New African Initiative e outros mecanismos inovadores tais como o Fundo Mundial de Solidariedade para a Erradicação da Pobreza, e que os países desenvolvidos, as Nações Unidas e suas agências especializadas, como também instituições financeiras internacionais, ofereçam através dos seus programas operacionais novos e adicionais recursos financeiros para apoiar tais iniciativas.

-Foi reconhecido que escravidão, tráfico de escravos e colonialismo contribuíram inegavelmente para a pobreza, subdesenvolvimento, marginalização, exclusão social, disparidades econômicas, instabilidade e insegurança que afetam muitos povos de diferentes partes do mundo. A Conferência reconheceu a necessidade de programas para o desenvolvimento social e econômico destas sociedades e na Diáspora em diversas áreas: redução da dívida, erradicação da pobreza, construir ou fortalecer instituições democráticas, promoção do investimento estrangeiro, acesso a mercado, e outras mais.

-Propõe-se a criação de locais de trabalho livres de discriminação por meio de uma estratégia multifacetada que inclui cumprimento dos direitos civis, educação pública e comunicação no local de trabalho.

-Insta-se os Estados a resolver problemas de propriedade de terras ancestrais habitadas por gerações de afrodescendentes e a promover a utilização produtiva da terra e o desenvolvimento compreensivo destas comunidades.

-É solicitado aos Estados concentrar positivamente os investimentos nos sistemas de saúde, educação, eletricidade, água potável, controle ambiental, como também outras ações afirmativas ou positivas em comunidades primariamente de afrodescendentes.

-Insta-se os Estados a produzir e publicar dados estatísticos confiáveis e tomar todas as medidas necessárias para avaliar regularmente a situação dos indivíduos e grupos que são vítimas de racismo e discriminação.

-Insta-se os Estados a tomar medidas para realizar o direito de todos ao gozo do mais alto padrão de saúde física e mental, com o objetivo de eliminar disparidades na condição de saúde que possam resultar do racismo e da discriminação.

-É solicitado que a Comissão de Direitos Humanos considere estabelecer um grupo de trabalho ou outro mecanismo das Nações Unidas para estudar os problemas de discriminação racial enfrentados pelos afrodescendentes.

-Apela-se às Nações Unidas, às instituições internacionais financeiras e de desenvolvimento a desenvolver programas de capacitação para africanos e afrodescendentes.

O racismo no Brasil

A Conferência criou, sem dúvida, um espaço extremamente favorável para a discussão de políticas específicas para as populações negra e indígena no Brasil. É necessário que não desperdicemos o espaço criado: é preciso saber o que é prioritário e avançarmos decididamente em direção aos nossos objetivos.

Durante a maior parte do século XX as elites brancas brasileiras foram capazes de afirmar a não existência de discriminação racial no país.

Se as desigualdades entre negros e brancos são tão evidentes, por que o poder explicativo da variável “raça” tem sido sistematicamente negado no Brasil?

A desqualificação da variável “raça” é operada atribuindo-se todo o poder explicativo à variável classe, que é apresentada como um fato social simples, natural e evidente.  Supostamente, os negros são discriminados porque são pobres e não o contrário.

A negação tem sido um elemento central para fazer o mito da democracia racial funcionar. O Brasil foi o país que importou o maior número de africanos escravizados entre os séculos XVI e XIX. Este número é estimado em 3,5 a 3,6 milhões, representando 38% de todos os escravos trazidos da África para as Américas. O Brasil foi também o último país do mundo a abolir o trabalho escravo. A abolição foi finalizada em 1888 após uma longa discussão das elites brancas sobre a inadequação dos negros para se tornarem trabalhadores livres.

Tal debate parece ser atualizado hoje quando vemos nas páginas dos jornais do país a preocupação com a ameaça da possibilidade da entrada de negros nas universidades a partir de políticas de cotas: teme-se pela queda da qualidade do ensino. Inadequados para o trabalho livre no passado, inadequados para as luzes do conhecimento hoje. Mais uma vez, num momento decisivo da nossa história, parte das elites brasileiras parecem considerar o povo negro inadequado e não valer a pena investir para mudar as condições precárias às quais foi submetido.

As cotas, temidas e denunciadas como mera manobra diversionista neoliberal, são na verdade um caso particular de ação afirmativa, já previsto na Convenção Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, que afirma:

Não serão consideradas discriminação racial as medidas especiais tomadas com o único objetivo de assegurar o progresso adequado de certos grupos raciais ou étnicos ou de indivíduos que necessitem da proteção que possa ser necessária para proporcionar a tais grupos ou indivíduos igual gozo ou exercício de direitos humanos e liberdades fundamentais….

É evidente que as cotas em si não são suficientes para operar a mudança profunda de que necessitamos. Mas a grita retrógrada, com aparência progressista, não pede mais: limita-se a denunciar a precariedade da educação no país, são listados todos os problemas que nos afligem desde a pré-escola e ponto. Pede-se aos negros que aguardem, sentados, as transformações estruturais que ocorrerão algum dia num futuro distante, envolto nas brumas da incerteza. Traduzindo em bom economês delfiniano: pede-se aos negros que esperem o bolo crescer para poderem ter direito ao seu pedaço.

Uma cota inicial é um ponto de partida. Deve ser seguida de um plano detalhado para ampliação progressiva da participação negra: bolsa-escola, para que os estudantes negros possam ter dedicação exclusiva aos estudos, programas de tutoria, programas de combate ao racismo no interior das universidades e na sociedade em geral por meio de campanhas massivas nos meios de comunicação de massa. Para que as elites brancas, de esquerda e de direita, possam se libertar dos estereótipos racistas que os aprisionam e impedem de ver os indivíduos negros a partir do Artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo….

Bibliografia

Roland, Edna M.S. “The Condition of persons of African descent in the Americas: Marginalization on the basis of Race and Poverty, Attitudes towards Cultural Identity” in United to Combat Racism – Selected articles and standard-setting instruments, Paris, Unesco, 2001.

São Paulo (Estado). Procuradoria Geral do Estado. Instrumentos Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos, São Paulo, Centro de Estudos da Procuradoria Geral do Estado, 1997.

Wolfrum, Rüdiger. “The Elimination of Racial Discrimination: Achievements and Challenges” in United to Combat Racism – Selected articles and standard-setting instruments, Paris, Unesco, 2001.

Trabalho de referência preparado por Theodor van Boven, membro do Committee on the Elimination of Racial Discrimination, E/CN.4/1999/WG.1/BP.7, 26 February 1999.

Trabalho submetido por Paulo Sérgio Pinheiro, membro da Sub-Commission on the Promotion and Protection of Human Rights, A/CONF.189/PC.1/13/Add.1, 6 March 2000.

International Working and Advisory Group da Comparative Human Relations Initiative, Beyond Racism – Embracing an Interdependent Future, Overview Report, Atlanta, Southern Education Foundation.

The Persistence and Mutation of Racism, The International Council on Human Rights Policy, report of a meeting on 3-4 December 1999, Genebra.

World Conference Against Racism, Racial Discrimination, Xenophobia and Related Intolerance, Declaration and Program of Action, Durban, 31 August-8 September 2001, (Unedited Version).

Roland, Edna M.S. The economics of racism: people of african descent in Brazil, International Council on Human Rights Policy, 2001.

Katia Q. Mattoso. Ser Escravo no Brasil, São Paulo: Brasiliense, 1982.

Edna Maria Santos Roland é presidente da “Fala Preta!” Organização de Mulheres Negras, e relatora-geral da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata.

Fonte: Teoria e Debate, nº 49, 06 de dezembro de 2001. Acervo: CSBH/FPA.

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