Vlado se fez homem de esquerda já homem feito. Foi um percurso demorado e pessoal que o levou a crer no socialismo numa fase da vida em muitos socialistas já começavam a descrer.

Um subversivo
Em 1975, quando Vlado foi morto, tanto quanto a ditadura precisava provar que ele tinha se suicidado, nós outros, seu amigos, colegas e companheiros jornalistas, precisávamos mostrar que os serviços de segurança haviam assassinado um cidadão de bem, pai de família, com endereço certo e sabido e sem vida clandestina — em suma, alguém que nada tinha a temer das autoridades porque nada lhes devia.

Era necessário que os brasileiros compreendessem imediatamente que a versão do suicídio era absurda; portanto, apresentar Vlado como pessoa “normal” equivalia a dizer que em hipótese alguma ele poderia ter se suicidado e que a ditadura matara um cidadão igual aos outros — como se, caso Vlado não fosse um cidadão igual aos outros, o regime pudesse ser absolvido de sua morte, indefeso, numa repartição do Exército.

Com isso, virtualmente excluiu-se da persona pública de Vlado uma dimensão fundamental: a política. Pois Vlado fazia política e tinha consciência do que fazia. Fazia política como jornalista e no jornalismo. Como homem de esquerda, possuía em 1975 mais dúvidas ideológicas do que seriam capazes de conceber os seus algozes. No entanto, possuía também algumas convicções límpidas — sendo a principal delas a de que, como jornalista, seu teatro de operações se localizava no território da informação.

Para ele, lutar contra a ditadura significava opor às mentiras fabricadas pelos aparelhos de propaganda do regime a verdade dos fatos — e das idéias —, de modo que alcançassem o maior número de pessoas. Isso trazia embutido, e ele não o ignorava, um critério predominantemente político na escolha e na maneira de tratar o material jornalístico.

Àquela altura de sua vida, num país submetido pela força, Vlado não cultivava ilusões sobre a “neutralidade” do jornalismo; tampouco se sentia tentado a buscar refúgio e consolo na técnica da profissão. Ele não trapaceava com a verdade nem subestimava a importância dos cuidados com a aparência da profissão. Mas a “isenção” do jornalista e o apreço à forma pela forma, Vlado os percebia, naquelas circunstâncias precisas, como desserviço ao país e à busca da liberdade.

Já em 1971, como editor cultural da revista Visão, havia realizado com Zuenir Ventura a reportagem de capa “O que é que há com a cultura brasileira”, a mais circunstanciada exposição da miséria a que a supressão da liberdade havia reduzido a arte e o pensamento do país. Na mesma época, sob o seu estímulo entusiasmado, fizemos a quatro mãos a primeira reportagem reveladora do programa de alfabetização do regime, o Mobral. Depois, na TV Cultura, sua atuação política se exprimia na preocupação de abrir espaço à presença do povo nos noticiários.

Outra convicção de Vlado era a de que a resistência democrática seria inócua se ato solitário, mera objeção de consciência. E que não poderia ser excludente, confinando-se a essa ou aquela família política. Por temperamento, formação e experiência, desacreditava das verdades dogmáticas. E aprendera que seria impossível mudar as coisas sem fazer concessões.

Vlado se fez homem de esquerda já homem feito. Foi um percurso demorado e pessoal que o levou a crer no socialismo numa fase da vida em muitos socialistas já começavam a descrer. Colegas de escola, ele possivelmente se entediava com a minha insistência em falar de política. Além disso, o Vlado de 16, 17 anos, magro, orelhas de abano, olhos tímidos mas inteligentes, não concordava que as injustiças sociais e o atraso do Brasil fossem conseqüência da “espoliação internacional”. Bobagem, ele dizia, o Brasil é o que é por causa da corrupção dos governos.

Cinema, literatura, música e, em especial, teatro — disso é que ele realmente gostava. Vlado gostava de falar de arte e cultura com o nosso professor de filosofia no Colégio Estadual de São Paulo Mário Leônidas Casanova, jornalista ele próprio, nos levou (e a mais dois colegas, Alexandre Gambirasio e José Chasin) ao chefe de reportagem de O Estado de S.Paulo, Perseu Abramo. Depois de duas semanas de experiência, fomos chamados para trabalhar na reportagem geral do jornal, em abril de 1959.

Vlado, já primeironista de filosofia, queria era escrever reportagens na seção de artes e artigos no Suplemento Literário do Estado. Em menos tempo do que faria supor o seu temperamento retraído, fez-se amigo dos maiores nomes do jornal na área de cultura, Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi e Delmiro Gonçalves — todos, não por acaso, ligados ao teatro. Mas, ainda que viesse a colaborar na “página de arte” e no suplemento, continuaria repórter de assuntos gerais.

O Estado era, então, algo único na imprensa paulista: um centro de política, cultura e inteligência. Nesse ambiente, nem sequer o mais verde repórter podia manter-se alheio ao cheiro político que ali se respirava. Ainda assim, Vlado continuava a manter com a política uma relação distante. Mas, no dia 1º de janeiro de 1959, tomando batida de maracujá e comendo camarão frito numa praia em Ubatuba, Vlado não ficaria menos emocionado do que os seus amigos “politizados”, ao ouvir no rádio que Fidel acabara de entrar em Havana.

Em abril de 1960, Vlado fazia parte da equipe destacada para cobrir a inauguração de Brasília, sob o comando de Perseu Abramo. E foi em Brasília, na excitação do novo e na embriaguez da esperança, em meio à poeira vermelha levantada pelos caminhões de candangos, que Vlado Herzog, iugoslavo de nascimento e italiano de coração, começou a virar brasileiro — e a atentar para os políticos com quem esbarrávamos a toda hora.

Atentava também para o confronto das forças que se preparavam para disputar a presidência nas eleições de outubro daquele ano, de um lado, com o marechal Henrique Lott, pelo PSD-PTB, de outro, com o ex-governador Jânio Quadros, pela UDN. Mas o extremo rigor crítico de sua personalidade não lhe permitia tomar partido com a paixão ainda juvenil de muitos de seus colegas.

O esquerdismo de fachada dos políticos do PTB irritava-o não menos do que furor lacerdista dos conservadores. Via em Jânio um demagogo de ameaçadoras feições fascistas, mas lhe era difícil aceitar a trôpega sintaxe de boa parte da esquerda de então — e, mais ainda, acreditar que Lott estivesse preparado para fazer as reformas sociais que ele, Vlado, por espírito compassivo, achava inadiáveis. A compaixão, a capacidade de indignar-se e o rigor de seus julgamentos o acompanhariam até a morte.

Mas nesse mesmo ano de 1960 um acontecimento faria estalar para sempre o ceticismo com que Vlado se punha perante o mundo: a vinda ao Brasil do pensador francês Jean-Paul Sartre, que já estivera em Cuba e dali sairia ardoroso defensor da revolução. Como repórter e estudante, Vlado acompanhou todos os eventos da estada de Sartre — e, ao ouvi-lo falar, com exuberância, precisão e paixão, descobriu o engajamento.

Não que tivesse ido filiar-se ao partido de esquerda mais próximo. O que fez foi aproximar-se dos movimentos culturais voltados para o Brasil real: o teatro de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Viana Filho, o cinema novo de Nelson Pereira dos Santos. Fazer cinema, e cinema documental, tinha se tornado a sua principal aspiração. Descobrira e se apaixonara pelos documentários da chamada Escola de Santa Fé, na Argentina, dirigida por Fernando Birri, especialmente por Tire Die, o filme sobre as crianças das favelas que corriam atrás dos trens pedindo aos passageiros que lhe atirassem 10 centavos. Por aí se vê a que temas — e a que fração da humanidade — Vlado se ligara.

O golpe de 64 tornou irrespirável para ele o ar do Brasil. Recém-casado com Clarice Ribeiro Chaves, obteve em 1965 um emprego no Serviço Brasileiro da BBC, em Londres, onde já trabalhavam dois outros ex-colegas do Estado, Fernando Pacheco Jordão e Nemércio Nogueira. Ali, Vlado completaria o seu amadurecimento profissional, político e cultural; por influência de Jordão, transferiu seu interesse imediato do cinema documental para a TV. No começo, ele ainda tentava deixar o futuro pessoal entre parênteses. Mas, em fins de 1968, resolveu o dilema íntimo do qual não pudera se furtar — que fazer da vida? — e voltou ao Brasil.

Naquele terrível começo da década de 70, ele mais de uma vez se confessaria arrependido da decisão. O Brasil da tortura e do “milagre” cobrava de Vlado, no dia-a-dia, um preço que nem sempre ele tinha como pagar. Ainda assim, o Vlado daqueles anos era um temperamento que em nada lembrava o moço tímido, ar de judeuzinho perseguido, que tinha sido meu colega de colégio. Dizia que “não devemos ter medo das próprias emoções” — e com certeza não as temia. Temia, isso sim, como falava, que “de tanto ficar no meio da merda a gente se acostume com seu cheiro”.

Ele, pelo menos, nunca se acostumou. Aproximou-se do Partido Comunista para vacinar-se contra a solidão política. Embora eventualmente simpatizasse com pessoas que haviam escolhido a luta armada, não se identificava nem com os meios nem com os propósitos de mais longe alcance dos movimentos a que pertenciam. Vlado via no PCB a alternativa política mais adequada para o momento — e o momento, entendia ele, exigia manter vivas e integrar as organizações da sociedade ao esforço pela reconquista da liberdade.

As vitórias da oposição na eleição de 1974 pareciam acelerar a distensão proposta pela ala moderada do regime. E, embora já estivesse em curso o novo e brutal ciclo repressivo desencadeado pela linha-dura, dessa vez contra o “Partidão”, Vlado aceitou com otimismo o convite para dirigir o jornalismo da TV Cultura. Ele não acreditava no retrocesso — e não poderia imaginar que o retrocesso só seria detido com a sua morte.

Morto Vlado, tentaram pintar Vlado ora como agente da KGB, que teria se suicidado para prestar um derradeiro serviço à causa comunista, ora como uma figura inexpressiva, que se matara por alguma misteriosa “razão íntima”. Vlado, obviamente, não era uma coisa nem outra, mas uma daquelas pessoas que as ditaduras jamais conseguem dobrar. Sua coragem diante dos algozes não se provinha de alguma ideologia granítica. O que lhe deu alento até para insultar seus torturadores, já no limite do martírio, era a força do livre espírito humano. Por isso, Vlado Herzog era um subversivo.


* Luiz Weiz é jornalista.
Extraído e adaptado de Vlado — Retrato da Morte de um Homem e de uma Época, Paulo Markun (organizador), Brasiliense, São Paulo, 1985, páginas 36 a 52.