[…] O alto moral dos presos políticos era algo confortador e envolvente. Nada nos abatia, nem os magros e fétidos colchões, nem a visão dantesca dos marinheiros saídos da tortura.

Dois exemplos:

1936 – Apolonio é preso por suas atividades na ANL. Ele conta:

“[..] Ao chegarmos, Cunha Mello e eu à casa de Detenção, na rua Frei Caneca, centro do Rio, já encontramos um ambiente de funda esperança na continuidade da luta. Mais: movidos por tal espírito combativo, as centenas de presos políticos tornamo-nos donos dos dois pavilhões em que se dividia o presídio – o dos intelectuais, oficiais e sargentos, e o dos cabos, soldados e marinheiros, ditos dos “primários”. À noite, punham-nos em grupos de três ou quatro em cubículos, no primeiro andar do prédio, mas das 7 às 19h tínhamos trânsito livre, Além disso, assenhoreávamo-nos do salão térreo da ala dos “primários”, de uns 40m X25m, batizamo-lo Praça Vermelha.

Nela alfabetizavam alguns soldados.

Nela nos aplicávamos em exercícios físicos.

Nela nos instruíamos na arte militar, que grande era o número de oficiais detidos (uns 40 haviam sido expulsos das Forças Armadas).

Nela tínhamos cursos de política, debates sobre a realidade brasileira, palestras sobre os levantes militares, conferências sobre a conjuntura internacional.

Nela, em comemoração a datas históricas, organizavam-se manifestações, desfiles militares, discursos em palanques improvisados, as récitas do poeta Colbert Malheiros.

Nela protestávamos contra as más condições de vida no presídio, o que levou a algumas conquistas como o banho de sol.

Nela entoávamos paródias de marchinhas e sambas carnavalescos, ora de tom jocoso, como este mote de operários presos na Casa de Detenção, mas logo transferidos para o cárcere flutuante da época, o navio Pedro I:

“Quarenta dias eu passei na Detenção,
sem cama e sem comida, sem comunicação.
Cansado de sofrer tanta miséria eu estou
e ainda dizem que eu recebi o ouro de Moscou”

[…] O alto moral dos presos políticos era algo confortador e envolvente. Nada nos abatia, nem os magros e fétidos colchões, nem a visão dantesca dos marinheiros saídos da tortura, e não nos sentíamos isolados – quando dos banhos de sol no telhado, por exemplo, falávamos aos transeuntes como de um palanque. Empolgávamo-nos a perspectiva de iminentes ações insurrecionais, produto das visões irreais do PC, para cuja direção a nova onda revolucionária já se fazia sentir. […]


2º exemplo:

Em 1970, cumprindo tarefas do PCBR, Apolonio teria um encontro com um companheiro, Romeu Bertoldi, que devia entregar-lhe cópias de um informe importante para uma reunião. Este não aparece. Segue o relato:

“A prudência e as regras de segurança prescrevem esperar pela repetição do ponto, no dia seguinte. É a forma de saber se algo aconteceu. Já estamos, porém, no dia 13 – e a reunião será três dias depois. E sou eu quem a organiza.

Atravessei incólume, anos a fio, vários períodos de clandestinidade. No Brasil e na França. Respeitava religiosamente as regras de segurança sugeridas pela experiência militante. Agora, sob a pressão do novo impasse do PCBR – joga-se dentro de dois dias a continuidade ou o racha da organização – vou infringir regras costumeiras.

Conheço o endereço de Romeu na Vila da Penha. Se houver algum problema terão deixado no pequeno jardim da entrada um sinal combinado, uma espécie de advertência. Nenhum sinal à vista, bato à porta e abro. Dois canos de revólver apontam em minha direção. A casa está ocupada pela polícia.

Sou preso. Quando me encaminham para a porta, para enfiar-me num carro, golpeio rápido, no baixo-ventre, o policial que me acompanha. Enquanto ele se dobra de dor, saio correndo. Atiram-me de frente e dos lados. A casa está cercada. As balas raspam meus ombros. Ainda assim, chego à esquina mais próxima. A rua, no entanto, está barrada de policiais. Sou novamente preso.

Desta vez conseguem fazer-me entrar num carro. Curiosamente não me algemam. Pelos tiros que silvavam atrás de mim, presumo o que me espera. Trago, é claro, o sentimento de culpa pelo erro cometido.

«A queda de companheiros dói muito na gente. Em certos casos abala as esperanças» dir-me-ia Alcir na prisão, meses depois. Ao mesmo tempo procuro meios de resgatar-me. Rememoro por alto o que, a propósito, aprendi em minha militância. Lembro em particular exemplos de companheiros presos nos tempos da Resistência francesa. E o lema que nos guiava: «Se tiver que morrer, levo alguns dos inimigos comigo».

Estou sentado atrás do motorista, e uma idéia me acode: talvez agarrando-o pelas costas e desgovernando o carro, possa fazê-lo arrebentar-se num paredão. Acaricio a idéia, espero a oportunidade. O efeito será tanto maior, penso, quanto maior a velocidade. Espero. Os altos paredões sucedem-se ao longo da via.

Mais um pouco, e sinto que o motorista acelera. Quando o momento parece favorável, atiro-me sobre ele; e torço com todas as forças a direção do veículo, que se choca com o paredão ao lado.

O impacto, no entanto não é tão violento quanto esperava. Pouco a pouco volto a mim mesmo. Estava desmaiado pelas coronhadas.

Depois é a chegada ao quartel da polícia do exército, na rua Barão de Mesquita. Com discursos e banda de música – saberia mais tarde – ali se inaugurara o DOI-CODI.

Identifico-me. E acrescento que luto numa organização que participa da ação armada contra o regime existente. Põem-me um capuz. Há um entra-e-sai apressado. Compreendo que reúnem os oficiais, inclusive o comandante.

Logo começa o interrogatório. Respondo com calma e firmeza. Quando aludo à justeza do nosso protesto armado contra a ditadura, um dos oficiais dá-me uma bofetada por sobre o capuz. Além de insulto, trata-se de suprema covardia. Desvencilho-me do capuz e jogo-me contra eles. Por pouco tempo. Segundos depois, já por terra, desmaiado, volto pouco a pouco a mim. Agora estou algemado nos pulsos e tornozelos.

Não sei quantos dias passei sob tortura. Sei que foi implacável, feita de ódio e sadismo. Só deixei de ser torturado quando o coração ficou por um fio e literalmente apaguei.

Se, por acaso, eu tivera ilusões sobre o tratamento que me dispensariam no quartel, conheceria naquela mesma noite quanto estava enganado: o exército estava atrelado à tarefa degradante da tortura. Como estivera o exército francês na Argélia. Como, por então, o norte-americano no Vietnã.

Nos cinco meses de prisão, passei por vários quartéis. […]

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