Perseu Abramo: Os caminhos ínvios da educação nacional
Texto de Perseu Abramo publicado na seção de Educação do jornal Folha de S. Paulo em 31/03/74, fazendo balanço de dez anos do Golpe de 1964 na área da educação. Republicado no livro Um trabalhador da notícia – Textos de Perseu Abramo, organizado por Bia Abramo (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 105-121).
Texto de Perseu Abramo publicado na seção de Educação do jornal Folha de S. Paulo em 31/03/74, fazendo balanço de dez anos do Golpe de 1964 na área da educação. Republicado no livro Um trabalhador da notícia – Textos de Perseu Abramo, organizado por Bia Abramo (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 1997, p. 105-121).
Diversas modificações sofreu a educação brasileira no decurso dos últimos dez anos, e parece não haver dúvidas na constatação desse fato, mesmo entre os observadores mais desavisados. Todavia, são numerosas as divergências na interpretação da relevância, da profundidade, da direção e do significado dessas modificações.
Certamente essa divergências decorrem, em parte, das dificuldades que sempre surgem quando se tenta julgar um processo ainda em meio, e em que faltam ao observador as adequadas perspectivas históricas; e em parte decorrem dos diferentes pontos de vista doutrinários em que podem se colocar os observadores ao julgar processo tão complexo. Apesar dos percalços, porém, não parece inadmissível tentar o esforço de compreender o que ocorreu com a educação no decênio 1964/1974. Mesmo que tal esforço não consiga escapar à inevitável dose de subjetividade na seleção e na apreciação dos fatos considerados cruciais, nem ao inexorável risco de nunca se poder dispor inteiramente, a qualquer momento, da totalidade dos dados capazes de sustentar as conclusões – ele deve ser tentado.
O presente artigo não pretende senão ser mais uma dessas tentativas. Sem abrigarmos a ilusão de que seus defeitos possam assim ser atenuados, não podemos deixar de tornar explícitos alguns dos critérios de que nos utilizamos para sua elaboração.
Em primeiro lugar, procuramos colocar-nos de um ponto de vista sociológico na apreciação do processo educacional do último decênio, tanto na seleção quanto na apreciação de fatos. Não que os aspectos propriamente psicopedagógicos da educação não tenham a máxima importância, mas é que não só nos movemos mais à vontade naquela posição como também é sob aquele prisma que nos parece mais intrigante o processo no período considerado. Em segundo lugar, cuidamos para que os pontos de referência utilizados para o exame das modificações educacionais fossem não as intenções, supostas ou manifestas, de seus autores, propugnadores ou defensores, mas sim os sintomas observáveis daquilo que poderia ser considerado o conjunto de efeitos dessas modificações na vida social. Com isso, pretendemos ter minimizado um pouco o subjetivismo inerente a qualquer julgamento de fatos históricos.
Em terceiro lugar, procuramos, tanto quanto nos foi possível, detectar as relações que interligam o processo educacional aos demais processos que configuram a estrutura social brasileira no período dado. Esse reconhecimento de que o processo educacional é, fundamentalmente, um processo social, e portanto comprometido com a história, a economia, a política etc., de uma sociedade concreta, apesar de toda a sua obviedade nunca é demais repetir, e nos parece de primordial importância para a compreensão do tema do artigo. Aí, talvez, ainda resida a maior das dificuldades na apreciação dos fatos educacionais: é que as vinculações entre os fatos isolados dos diversos processos sociais não ocorrem de forma mecânica, nem flagrante, nem necessariamente consentânea no espaço e no tempo: o caráter aparentemente caótico da vida social, que é suscitado pelo próprio dinamismo que a caracteriza, torna sempre difícil estabelecer relações causais simplórias, ou mesmo divisar alguma espécie de paralelismo entre o que acontece na educação e o que acontece, digamos, na economia ou na política. Não obstante, a suposição de que tais correlações existam permeia esta tentativa de análise do processo educacional de 1964 a 1974.
Em quarto e último lugar, o presente artigo está longe de constituir o resultado final de uma pesquisa sistemática na área de educação. Ao contrário, ele se pretende um ponto de partida de uma determinada linha de investigações possíveis ou de reflexões cabíveis a serem retomadas por instrumentais melhor aparelhados. E isso lhe confere um caráter ensaístico, esquemático, simplificado, em que algumas hipóteses de trabalho – todas ainda por verificar com rigor e precisão – passam a ter menor desimportância que eventuais e casuais infe-rências conclusivas, de resto todas discutíveis.
Finalmente o próprio reconhecimento de que se está diante de um processo, isto é, de fatos que decorrem no tempo, leva, necessariamente, a não iniciar-lhe o exame pelos estritos limites temporais ditados pelo tema: para entender a educação no decênio 64/74 é preciso voltar um pouco atrás e tentar a configu-ração de um intervalo histórico mais amplo, em que antecedentes possam ligar-se a subseqüentes com uma relativa fluidez. Aqui, é inevitável uma grande dose de arbitrariedade, e nos pareceu aceitável tomar o século XX como pano de fundo e nele distinguir três períodos: o primeiro, de 1900 a 1945; o segundo, de 1945 a 1964; o terceiro, de 1964 a 1974.
O período que vai de 1900 a 1945 pode, do ponto de vista educacional, ser subdividido em dois subperíodos: 1900/1930 e 1930/1945.
Não obstante, as características a seguir apresentadas referem-se ao período todo da primeira metade do século, a Revolução de 30 aparecendo apenas como ponto de inflexão que marca a reação e a exceção, tornando ainda mais significativas as leis gerais do período.
A primeira metade do século teve, na educação, duas principais características. A mais fundamental delas foi a pequenez da faixa escolarizada da população. Somente os centros urbanos consideráveis possuíam escolas em número razoável para atender a uma pequena faixa das classes alta e média. Eram, na maioria, colégios particulares, religiosos ou não, internatos e semi-internatos. O estado e os municípios pouco contribuíam, e assim mesmo, na estreita faixa dos quatro primeiros anos fundamentais; em muitas regiões, as escolas isoladas, às vezes com uma classe e um único professor polivalente para várias matérias e várias séries, predominavam sobre os grupos escolares, mais estruturados e diversificados. O nível ginasial era predominantemente do ensino particular e, em cada capital, o Estado mantinha um ou dois cursos oficiais gratuitos, considerados padrão. O ensino particular também dominava o chamado ensino médio de nível técnico, com escolas de comércio e datilografia, principalmente, e algumas escolas industriais; posteriormente, a Confederação Nacional das Indústrias irá tomar a si o encargo do ensino industrial, com o Senai. As escolas superiores eram, quase sem exceção, faculdades de direito, de medicina e de engenharia, e destinadas apenas a uma pequena elite proveniente das camadas mais tradicionais da burguesia.
Se a rede era deplorável e deficiente, o ensino não o era menos. Marcado por intenso tradicionalismo, por excessivo formalismo, avesso a mudanças e inovações (apesar das numerosas “reformas” administrativas e pedagógicas), não conseguia ultrapassar o estágio de disseminador – melhor dito, “repetidor” – de cultura alheia. A produção própria de cultura, a pesquisa – que marca a diferença entre a educação subdesenvolvida e a que não o é -, constituía exceção, quase individual, quase confessional, em algumas escolas de medicina e de engenharia, ou em repartições governamentais ligadas à saúde.
Esse tradicionalismo do ensino da primeira metade do século tinha suas fontes em duas origens: o próprio Brasil Imperial, com seu arremedo de civilização e progresso para consumo das Cortes; e a influência, nem sempre positiva, de professores, livros, teorias e modelos estrangeiros, que por tanto tempo povoaram as nossas poucas escolas superiores e se espalharam, por ondas sucessivas, até o ensino médio e primário. Influência, primeiramente da França e da Alemanha, posteriormente dos Estados Unidos, que foi útil para permitir a alguns valores individuais brasileiros que se revelassem e projetassem, mas que refreou, por longo tempo, a procura de uma autêntica cultura universitária brasileira.
Exceção e reação
Nesse quadro que combina com uma rede escolar deficiente, com um ensino tradicionalista, surgem, depois de 1930, duas exceções significativas.
Uma é a criação, em 1934, de faculdades de filosofia, ciências e letras como núcleos centrais de universidades, a mais importante a de São Paulo. Trata-se de uma primeira tentativa de integração de estudos científicos em um organismo “universal” e de incentivo à formação de pesquisadores e professores qualificados. E são dessa época, também, outros organismos de pesquisa e cultura, ou que tentam “racionalizar” o trabalho científico e técnico.
A outra reação ao momento educacional foi o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. O lançamento do Manifesto, em 1932, foi o primeiro e mais significativo reflexo que a Revolução de 30 provocou no mundo da educação brasileira, dentro do quadro das manifestações culturais. Seus quatro principais autores – Anísio Teixeira, Almeida Júnior, Lourenço Filho e Fernando de Azevedo (só este ainda é vivo) – condenavam com veemência os principais defeitos da educação da época: o elitismo, o bacharelismo, o caráter meramente propedêutico de cursos que não formavam ninguém em coisa alguma e simplesmente impeliam o estudante para etapas posteriores, geralmente inexistentes; e, mais que tudo, a separação entre o ensino “acadêmico”, ou “intelectual”, e o ensino “profissional” ou “manual”. A ideologia do Manifesto reflete bem o caráter da Revolução: o gaguejante industrialismo brasileiro ensaiava seus passos desde o fim do século anterior, depois de permanecer contido durante as três primeiras décadas deste século pelos sólidos privilégios da oligarquia agrária e comercial que dominava politicamente o país. Mas agora iria explodir sadia e convenientemente sob a égide de um governo novo, anti-rural, urbano e racional, capaz de incorporar as aspirações das novas classes sociais emergentes e de fazer o país sair da beira do abismo e marchar para a frente, e fazia-se necessário adequar a educação às novas idéias, preparar o “homem de amanhã” que se supunha prestes a surgir.
Visão ilusória, como se perceberia nos anos seguintes. O ideal democrático, que bafejava todo o Manifesto, não iria se concretizar jamais. O governo de 1930, longe de significar um rompimento com uma estrutura econômica ultrapassada, limitou-se a fazer com que o poder político fosse compartilhado pelos interesses das burguesias agrária, comercial e industrial. E quando os setores de classe média começaram a despertar dos sonhos acalentados durante a derrubada da República Velha, e perceberam que continuavam explorados e sem direitos, o governo usa a clássica fórmula dos caudilhos latino-americanos: dissolve os parlamentos, impõe censura à imprensa, fecha os partidos, anula as eleições, dá o golpe, enfim, e implanta a ditadura. O manifesto dos Pioneiros da Educação Nova passa a ser um item das bibliotecas pedagógicas e é esquecido, a não ser pelos seus principais autores, que, cada um a seu modo, procuram continuar dando vigência a tantas e tão belas idéias.
Os sopros de mudança
O “milagre” industrialista que a retomada do poder político em 1930 não conseguira realizar, consegui-lo-á a Guerra de 1939, de certa maneira. A especulação e o aventureirismo aliam-se ao senso de oportunidade diante dos mercados desfalcados, e, quando, em 1945, rui na Europa todo um mundo, o Brasil também experimenta os ecos dessa comoção universal. A redemocratização política é acompanhada por aberturas em todos os campos econômicos, e começa então o verdadeiro surto industrialista que vai chegar a seu auge por volta de 1955-1960.
Quando os deputados constituintes de 1946 – provindos das mais diversas correntes políticas e ideológicas – encetam os debates para traçar a nova Constituição do Brasil, ferem logo, de forma direta e bem democrática para as circunstâncias, o problema da educação: ela deveria ser aberta a todos, dada de preferência pelo Estado e gratuita nas faixas fundamentais. Esses princípios universais, inspirados nos documentos das Nações Unidas, precisavam ser regulamentados, e se decidiu, então, elaborar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A lei é feita, discutida, engavetada, esquecida, rememorada, combatida, defendida, sabotada, e só 15 anos depois – em 1961 – é que será finalmente aprovada, quando, evidentemente, já estava fora do tempo e necessitada de reformulação. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 é a primeira das três principais reações à escassez da rede escolar e ao tradicionalismo do ensino que haviam caracterizado a educação brasileira da primeira metade do século. As duas outras principais reações – e que, com a primeira, vão constituir as três principais características do período 1945-1964 – são o movimento pela co-gestão estudantil e a criação da Universidade de Brasília.
As escolas superiores brasileiras sempre mantiveram, desde o Império, a tradição de uma certa vida acadêmica, que assumiu diversas e variadas formas, conforme o lugar e as circunstâncias. Mesmo sem citar a participação de estudantes de direito, de medicina e de engenharia nos movimentos abolicionista e republicano, a própria Revolução de 30, a Contra-Revolução Paulista de 1932 e outros movimentos políticos contaram com a presença de estudantes, mais ou menos organizados em clubes, grêmios, centros ou partidos acadêmicos. É bem verdade que nem sempre essa participação se mostrou coerente, e conta-se que, na década de 1920, os estudantes de direito do Largo de São Francisco ofereceram-se voluntariamente para conduzir bondes durante uma greve de motorneiros organizada pelos grupos anarco-sindicalistas de São Paulo. Mas estudantes foram às ruas e às praças, e foram presos e metralhados, quando o governo brasileiro não se decidia a declarar guerra ao Eixo Nazi-Fascista de Hitler e Mussolini. Durante todo o seu primeiro governo, Getúlio Vargas tentou – geralmente com êxito – explorar a fundo as contradições entre a elite burguesa que tinha acesso às escolas superiores e a massa assalariada, e conseguiu contrapor estudantes a outros setores da população. E sua queda em 1945 contou, se não com a participação, pelo menos com o júbilo de grande parte da mocidade universitária do país.
A partir desse momento, com a promessa de democracia que a derrubada da ditadura parecia oferecer, as organizações estudantis – por escola, por região, em nível estadual ou nacional – começam a pleitear maior peso nas decisões administrativas e pedagógicas das escolas e nas decisões políticas do país. O aumento da representação estudantil nos órgãos colegiados das escolas passa a ser uma bandeira agitada nos grandes centros urbanos, e, por trás dela, começa a desenvolver-se uma atitude extremamente crítica em relação à escola e ao ensino. Não se tratava mais, apenas, de fazer “política acadêmica”, mas sim de usar a política acadêmica para reformar a escola e a sociedade.
E, é claro, a esse movimento juntam-se numerosos professores. O aumento, diminuto mas perceptível, de escolas e cursos, que vinha se acentuando desde 1945, trouxe consigo o aumento do número de professores assistentes e auxiliares nas faculdades, bem como o de pesquisadores, monitores, instrutores, e diversas formas docentes paralelas: essa gente toda era recrutada em faixas privilegiadas da classe média, e, indo para a universidade, carregava inevitavelmente consigo os interesses e valores da classe média. Uma certa “democratização” de mentalidade começou a tomar forma no ambiente universitário, e já se contestavam os direitos quase hereditários dos eternos donos de cátedras. Procurando dar vigência concreta a seus valores, ou simplesmente à procura de novas oportunidades de emprego dentro da universidade, os jovens assistentes e auxiliares freqüentemente se aliavam aos estudantes nas críticas, nas contestações e nas reivindicações por uma escola reformada. E tudo isso se casava, naturalmente, com a explosão de pensamento reflexivo e crítico sobre a realidade brasileira, que começava a dominar os estreitos círculos intelectuais do país a partir da Redemocratização de 1945.
Mas os educadores tinham outras formas, também, de propor a sua escola nova. Almeida Júnior militava por modificações organizacionais e curriculares no ensino. Lourenço Filho e Fernando de Azevedo dedicavam-se à pesquisa e ensaios. O próprio Ministério da Educação, e numerosas Secretarias Estaduais de educação, ou escolas superiores de filosofia e ciências, criavam ou aperfeiçoavam núcleos de pesquisa e editavam publicações especializadas. Centenas de outros educadores menores seguiam seus passos, criticavam-nos, obedeciam-nos. Anísio Teixeira havia tentado, no Rio e na Bahia, implantar algumas de suas idéias. Quando se cria Brasília, no final da década de 1950, o sistema local da escola fundamental copia em grande parte as experiências inovadoras baianas, que traziam a marca do Manifesto de 1932; e Anísio Teixeira encontra no jovem antropólogo Darcy Ribeiro a inteligência, a disposição e o dinamismo necessários para tentar pôr em prática a idéia da nova universidade brasileira. Em 1962, na capital que Lúcio Costa e Oscar Niemeyer haviam feito brotar no cerrado goiano, começa suas atividades a Universidade de Brasília, fruto do descontentamento, da experiência e das aspirações de várias gerações de educadores de diversos pontos do país e resultado daquilo que pela primeira vez na história do Brasil parecia assumir a forma de um projeto nacional desenvolvimentista.
Novamente haurindo em fontes européias e norte-americanas sua estrutura fundamental – mas desta vez filtrada pela realidade nacional -, assentada em Institutos Básicos de Ciência montados sobre departamentos de professores de especialidade afins, e em faculdades ou escolas de caráter profissionalizante, a Universidade de Brasília tinha como novidade, mais que sua organização, um ideário a oferecer ao Brasil: o compromisso internacional com o rigor do método científico e o comprometimento com as aspirações mais sentidas da coletividade nacional. Os departamentos, os colegiados, as coordenadorias, os sistemas de créditos e de pré-requisitos, a graduação e a pós-graduação, o vestibular unificado e o ciclo básico, as disciplinas de formação e de complementação, o equipamento do campus e os laboratórios e bibliotecas – nada disso teria sentido, na Universidade de Brasília, se seus dirigentes, seus professores e seus estudantes não se sentissem, como de fato se sentiam, uns mais conscientemente que outros, dispostos a colocar os benefícios da ciência nas mãos de todo um povo que, percebiam, havia sido totalmente marginalizado dos processos e dos resultados da cultura, durante 400 anos.
No resto do país, o ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros) procurava rever a história do Brasil desde um ponto de vista crítico e original. Nas capitais, greves e reivindicações salariais combinavam-se com os movimentos mais sofisticados da cultura popular, as diversas ideologias de esquerda, centro e direita tentavam estruturar-se em organizações mais ou menos sólidas, mais ou menos agressivas; os intelectuais, dentro e fora das universidades, dos jornais ou das sociedades científicas, cansados de durante tantos anos ouvir descrever o país, tentavam agora pensar a nação; o próprio governo central, incapaz de manter-se imune às vozes de todos os matizes e de todos os cantos, e igualmente incapaz de escolher por conta própria o seu caminho, começava a admitir incoerentemente idéias de reformas de base e de manutenção de velhas estruturas.
O Brasil estava no limiar de uma nova jornada, que dependia da tomada de algumas decisões básicas, as quais, por sua vez, só poderiam ser tomadas por quem estivesse materialmente capacitado para fazê-lo. Tratava-se, basicamente, de prosseguir em marcha acelerada para uma abertura e uma participação cada vez maiores em direção a uma futura reformulação das bases econômicas e políticas; ou, ao contrário, de retomar um lento, mas seguro, caminho, que impedisse a todo custo qualquer alteração essencial no sistema econômico e político que caracterizava o Brasil desde a abolição da escravatura. Todos sentiam que algo insólito estava se passando, mas eram poucos os que percebiam que alguma coisa de muito importante estava para acontecer logo.
Os anos difíceis
No dia 31 de março de 1964 não aconteceu nada no campus da Universidade de Brasília. Professores e estudantes, bombardeados por notícias desencontradas e incoerentes, trataram de organizar o mínimo de sobrevivência: alguns víveres, um precário sistema de comunicação, a tentativa de entrar em contato com outros grupos, já a essa altura se liquefazendo ao calor dos boatos radiofônicos. Nos dias seguintes, o campus foi varrido pelos rumores de que alguns professores seriam presos e pela notícia de que havia sido dissolvida a comissão diretora da Universidade. E eis que na manhã de 9 de abril, enquanto no Palácio do Planalto se editava o Ato Institucional nº 1 , professores e estudantes que assistiam às Aulas Maiores na UnB (eram dadas das 7 às 9 horas) viram centenas de soldados armados aproximarem-se e cercarem o campus em toda a sua extensão. Era uma brigada da Polícia Militar de Minas Gerais realizando talvez uma das mais completas operações bélicas do movimento político-militar de 1964: não faltaram carros de assalto, caminhões de transportes de tropa, ônibus para condução de prisioneiros e ambulâncias; barracas, postos de comando e instalações de radiotelefonia; os soldados estavam armados com fuzis e metralhadoras, havia, também, metralhadoras pesadas assentadas sobre tripés que se fincavam no chão vermelho do planalto goiano; mapas e binóculos completavam a operação de cerco, invasão e conquista do campus da Universidade de Brasília. As tropas ocuparam os prédios da Reitoria, prenderam uma vintena de professores e estudantes, conduziram-nos ao Teatro Nacional, aí os entregaram ao Exército, que os levou depois para os quartéis; nas semanas seguintes, as tropas mineiras continuaram ocupando o campus em “estado de sítio”. Fecharam a biblioteca, vasculharam dependências escolares e pessoais à procura de armas e material subversivo.
O que acontecera com a Universidade de Brasília era um símbolo premonitório que, estranhamente, muitos educadores e professores de outras universidades do país se recusaram a compreender no momento adequado e, quando mais tarde vieram a senti-lo, não mais como símbolo, mas como realidade na própria carne, já então era muito tarde.
O período que vai de 1964 a 1974 pode ser visto, sob o aspecto educacional, como um período único, com características que o marcam como um continuum e que se acentuam a cada ano que passa. Só há uma exceção: o controle, que aumenta rigorosamente de intensidade a partir de 1969. E quais são essas características gerais do período?
Expansão da rede
Em primeiro lugar, lenta, mas seguramente, vai aumentando a faixa escolarizada da população. Vinte milhões de pessoas, em cem milhões, é o cálculo otimista das autoridades educacionais para 1974; mais alguns poucos milhões se forem incluídas todas as formas de vínculo com o ensino, do Mobral aos cursos de pós-graduação, passando pelos cursos supletivos, pelo rádio e televisão etc… É o Estado, agora, interessadíssimo em controlar, senão em fornecer, a educação de massa, de que pode resultar o efeito mais geral do controle social das massas.
A rede escolar, quantitativamente, cresce, sem sombra de dúvida. Cresce em todos os níveis e em todos os graus: do primário ao curso ginasial, do colegial ao curso superior; crescem também as formas paralelas de escola: cursos profissionais, técnicos e “preparatórios” para exames de conclusão de cursos básico e médio ou de entrada para o superior.
Mas esse crescimento tem uma característica fundamental: ele não é ordenado, não é uniforme, não é disciplinado. A “educação” não aumenta: simplesmente a rede escolar expande-se. Abrem-se novas escolas primárias e secundárias, mas, ao mesmo tempo, o Estado limita a criação de novos quadros efetivos de professores e baseia sua expansão escolar na utilização – eticamente discutível – de professores admitidos a título temporário e sem regalias trabalhistas, os chamados “precários”: montam-se, às pressas, barracões provisórios de madeira ao lado de construções de alvenaria, mas os equipamentos escolares continuam os mesmos. Os diretores das escolas estaduais queixam-se de que não têm verbas para comprar papel higiênico ou giz, e os pais de alunos são incentivados a fornecer esses materiais através das Associações de Pais e Mestres, que perdem qualquer característica associativa e comunitária, para limitarem-se a servir de fonte de arrecadação de receita adicional. As escolas não conseguem substituir ou contratar funcionários administrativos e os professores são forçados a exercer funções burocráticas, como preencher formulários ou passar quadros a limpo, roubando tempo e energia à preparação das aulas ou à correção dos trabalhos dos alunos. No ensino superior, o fenômeno é semelhante: autorizam-se novas vagas, novos cursos, novas escolas, novas faculdades – mais de 60% particulares – em municípios em que não há, às vezes, sequer escolas médias suficientes. Os estabelecimentos particulares que vão proliferando preferem as áreas acadêmicas mais baratas, em que todo o equipamento científico se limite a um professor de voz potente e um quadro-negro – comunicações, estudos sociais, pedagogia, letras, administração – e o resultado é que a explosão de “escolas superiores” sem gabarito leva novamente os estudantes a procurarem as escolas oficiais e de prestígio – nas quais, durante os vestibulares, 500 candidatos chegam a disputar 50 vagas. Nessas, também, o aumento quantitativo se traduz em inchaço: as salas de aula incham, passam a admitir 50, 100, 300 alunos, diante do quais um professor tenta transmitir, no mais obsoleto e puro estilo acadêmico, uma exposição oral de duas horas.
Novos professores só são contratados com muita dificuldade, as bibliotecas passam anos sem adquirir livros novos; muitas escolas não têm mimeógrafo para distribuir textos para estudo; os laboratórios permanecem precários. A política de contenção salarial geral não deixa de atingir também os professores que se desdobram em atividades, multiplicam seus empregos, pulam de uma cidade para outra. A escola cresce, mas a educação não aumenta nem de intensidade nem de qualidade.
Leis e decretos
A segunda característica do período é a “das reformas”. Na realidade, muito pouco mudou, em essência, na educação brasileira, desde que em 1932 os pioneiros da Educação Nova apontaram os seus defeitos principais: ela continua elitista, antidemocrática, bacharelesca e acadêmica, e mantendo a nítida separação entre “trabalho intelectual” e “trabalho manual”, que, de resto, não foi ela que inventou, e nem pode por ela ser responsabilizada.
Todavia, as três administrações federais que se sucederam desde 1964 tratam de impor ao setor educacional um novo arcabouço administrativo e jurídico que, segundo as expectativas oficiais, deveria conter uma nova realidade que se supunha estar sendo construída.
O governo não se precipitou em fazer essas reformas na área de educação; dedicou seus primeiros anos ao que lhe pareceu mais importante, isto é, os setores econômico e político.
Assegurado o controle sobre as escolas que conseguiram resistir ao vendaval de 1964, passaram-se quatro anos – pintalgados de decretos sem maior importância – antes que, em 1968, surgisse a primeira lei a que se deu o sonoro nome de “reforma universitária”: a Lei 5.540, à qual se seguiram numerosos decretos e regulamentos, todos dentro do mesmo espírito. Ilogicamente, mas compreensivelmente, o governo começou a reforma educacional pelo ensino superior. E o que fez não foi muito mais que se utilizar do organograma básico da Universidade de Brasília para depois impô-lo a todas as organizações universitárias do país. Mas, prudente e coerentemente, não lhe copiou nem os propósitos nem os compromissos éticos. Esvaziou a Universidade de Brasília (que sintetizava as aspirações de reforma universitária de antes de 1964) de seu conteúdo programático, ficando com seu esqueleto organizacional.
Em outras palavras: o governo, demonstrando sábia habilidade política, tomou para si a bandeira de seus opositores, virou-a de cabeça para baixo, esvaziou-a de seu conteúdo político e a apresentou como a “sua” reforma universitária. Com isso, deixou muitos de seus opositores num dilema de que ainda não conseguiram sair até hoje: criticar a reforma universitária do governo é criticar o governo ou é defender a velha estrutura universitária arcaica e obsoleta que se queria realmente reformar?
Em seguida, o governo cuidou de modificar o ensino básico e o médio. Com a Lei 5.692, de 1971, substituiu a antiga Lei de Diretrizes e Bases de 1961 e apresentou a nova escola de primeiro e segundo graus, abrangendo a faixa etária dos 7 aos 17 anos (o primeiro grau contém oito séries e o segundo grau três séries). Um dos princípios fundamentais da lei é o da “terminalidade”, isto é, um ensino suficientemente fluente e integrado de tal maneira que o aluno que o tivesse de deixar no fim do segundo grau, ou mesmo do primeiro, o pudesse fazer sem que se considerasse um indivíduo sem qualificações para o trabalho; para tanto, a lei junta, na letra e no papel, o ensino “intelectual” e o “manual”, isto é, o “acadêmico” e o “profissionalizante”. A idéia básica é a de que, se o aluno quiser, terá condições de prosseguir até a Universidade, mas, se não quiser ou não puder, poderá arranjar razoáveis empregos quando sair do “antigo ginásio” ou do “antigo colégio”.
A Lei 5.692 ainda está nos primórdios de implantação nos diversos estados da Federação, e talvez seja cedo demais para saber até que ponto as autoridades tenham se convencido das dificuldades práticas de dar vigência a tais idéias teóricas.
Enquanto não se completa a “terminalidade” (as primeiras provas práticas da lei, na verdade, só se darão em 1988, isto é, 17 anos após o início de sua vigência), as autoridades educacionais vão tentando outras experiências: com o ensino supletivo, destinado a dar certificados escolares a quem não teve escola, com o Mobral, que anualmente diploma milhares de brasileiros que não estão preparados para enfrentar o mercado de trabalho.
As tendências
A terceira característica do decênio 64/74 reside no significado que resulta dessas reformas organizacionais e jurídicas e de experiências muitas vezes erráticas. Na realidade, nenhuma das leis de reforma alterou essencialmente o conteúdo do ensino que vinha se praticando no Brasil; há, inclusive, respeitáveis cursos e respeitáveis professores que vêm ensinando exatamente o que ensinavam 20 anos atrás e da mesma maneira, provavelmente com menor eficácia. Não obstante, notam-se algumas tendências que vão marcando iniciativas oficiais no campo do ensino.
A mais notável é a ênfase na chamada “profissionalização” – ênfase que se nota tanto nos discursos oficiais, nas promessas dos novos tecnocratas educacionais e nas alterações regimentais que vão sendo operadas nas escolas. Essa tendência, naturalmente, não é alheia ao que ocorre no resto da cultura brasileira dos últimos dez anos: trata-se de preparar bons empregados para o crescente empresariado que vem assumindo o controle econômico do país. A preocupação com a “profissionalização” é tão grande que constitui um dos destaques na formulação do programa do novo governo.
Mas os estabelecimentos oficiais de ensino dificilmente poderão dispor de laboratórios, oficinas e equipamentos que lhes permitam oferecer um adequado ensino “profissionalizante” ou “paraprofissional”, e esse fato suscitou um sopro de ânimo nas escolas particulares, eternas lamuriosas que vivem a queixar-se da falta de amparo oficial; não apenas as escolas particulares anunciam nos jornais as excelências de suas virtudes profissionalizantes, como também está em exame, no Conselho Federal de Educação, proposta do representante dos estabelecimentos particulares, concedendo privilégios, no vestibular, aos candidatos que pudessem exibir certificados de terem feito cursos dessa natureza.
Ao lado da profissionalização, e completando-a harmonicamente, a outra tendência significativa das sub-reptícias alterações do significado do ensino que vem sendo ministrado é um relativo esvaziamento crítico, que atinge tanto a escola de graus básico e médio, quanto a escola superior. Uma das manifestações mais flagrantes desse esvaziamento crítico é a substituição, nos currículos de primeiro e segundo graus, de disciplinas tradicionais como história, geografia, sociologia, antropologia, filosofia, pela “área de estudos sociais” a cargo de um professor “polivalente”. A idéia é altamente atraente do ponto de vista da economia contábil das escolas, sejam particulares ou oficiais, mas acarreta, de imediato, alguns efeitos: em primeiro lugar, o esvaziamento dos cursos superiores de história, geografia, filosofia, ciências sociais etc. Nos últimos vestibulares de São Paulo sobraram 1.500 vagas em cursos dessas áreas em faculdades do interior e da capital. O outro efeito é o da despolitização da cultura das novas gerações escolares, acostumadas a ver a realidade social através de disciplinas normativas como educação moral e cívica, sem o correspondente contrapeso das disciplinas de conteúdo crítico.
Esse esvaziamento faz-se sentir no próprio curso superior; em outras áreas e em alguns casos a despolitização da educação é feita através de meios mais diretos como o afastamento de professores e estudantes, a censura à bibliografia, o fechamento de cursos e escolas ou a sua descaracterização.
A tecnoburocracia
A quarta característica é a preponderância, no processo educacional e escolar, de procedimentos tecnoburocráticos, sobre a racionalidade provinda de outras fontes intelectuais – os professores, os organismos colegiados, os estudantes organizados, a comunidade. No ensino de primeiro e segundo graus há modelos para tudo, que devem ser seguidos pelas escolas: os modelos vão desde a organização escolar até o elenco de disciplinas optativas, bem como o conteúdo programático de cada uma delas. E são elaborados nos gabinetes ministeriais ou das secretarias estaduais, sem que haja efetiva indução do processo a partir da sala de aula até os escalões superiores. As “reuniões de planejamento e avaliação” que se fazem nas escolas são, na grande parte das vezes, meros rituais administrativos em que não infreqüentemente os próprios relatórios são forjados. No ensino superior, somente as universidades economicamente e politicamente mais poderosas – como a de São Paulo, por exemplo – conseguem conservar alguns departamentos em que se pode tentar a discussão dos currículos e dos programas. A maior parte do ensino superior brasileiro é ministrado atualmente em pequenas escolas particulares isoladas, com um ou dois cursos, em que não existe departamento, não existe pesquisa, não existe discussão: o professor é contratado para permanecer na escola apenas as estritas horas do dia, não se lhe pede – e às vezes nem se lhe permite – que se dedique mais à pesquisa ou ao magistério. E sobre essa rarefação cultural, toda uma literatura burocratizada emana continuamente dos ministérios e das secretarias, dizendo o que deve ser ensinado, como, por quem, a quem.
Poderosa auxiliar na despolitização educacional, a preponderância tecnoburocrática no processo decisório educacional ajuda, inclusive, a mascarar os defeitos do sistema aos próprios olhos das autoridades aos quais tudo é apresentado sempre da maneira mais cor-de-rosa possível.
Controle social
Finalmente caracteriza-se o período 64/74 pelo severo controle social das escolas, controle a que são submetidos professores e alunos. O controle, acompanhado de graus mais ou menos intensos de repressão, caracterizou o decênio desde os primeiros momentos, e não deixou de manifestar-se nunca, ora afastando professores por meios administrativos, jurídicos, legais, como dispensas e aposentadorias; ora impedindo-os de lecionar em determinadas escolas ou determinadas matérias. A evasão de talentos para outros países e para outros continentes – ou o seu confinamento a atividades não escolares – foi uma constante durante todo o período.
Aos estudantes a repressão se fez de forma mais espetaculosa, mais sistemática, mais geral. Começou-se por colocar fora da lei as organizações estudantis – a União Nacional dos Estudantes, as uniões estaduais e os centros e grêmios acadêmicos. Em seu lugar, as autoridades tentaram criar os diretórios acadêmicos, vinculados à estrutura da escola e sob seu controle mais ou menos direto. Reuniões, congressos, simpósios, encontros foram desencorajados, dificultados, interrompidos, impedidos. Líderes estudantis – como, de resto, professores – foram presos, sofreram pressões insuportáveis, e foram assim aniquilados da vida acadêmica. Autoridades sempre afirmaram que jamais alguém foi punido por ser líder estudantil, mas pela prática de atividades políticas consideradas subversivas, uma distinção que perde muito de sua força quando tem de enfrentar uma Justiça desaparelhada de alguns dos instrumentos básicos para a apuração da verdade e para a preservação do direito de defesa. O Decreto-lei 477 , o instrumento legal de controle escolar, é, na maior parte das vezes, utilizado inabilmente como argumento de defesa ou de crítica, tanto por parte das autoridades quanto de seus opositores: a verdadeira repressão sempre se fez à margem, além e acima do Decreto 477.
Mas se bem que tenha sempre existido desde 1964, houve um momento, em 68/69, que a repressão sofreu um ligeiro refluxo, o que levou os estudantes novamente às ruas, em comícios e passeatas que tentavam reeditar os dias de antes de 1964. A ilusão durou pouco, como seria de esperar, e, a partir de então, o controle tornou-se mais duro, mais sistemático, mais eficaz, mais rigoroso. Hoje em dia, a maior parte das escolas superiores não conta com organizações estudantis consideradas legais, e as poucas existentes não conseguem mais do que promover ciclos de palestras, ou shows de música popular, ou editar com dificuldade alguns boletins que contenham prudentes denúncias. Toda contestação é pronta e exemplarmente punida e se chega, assim, a uma Educação Apocalíptica.
O futuro incógnito
Se os efeitos últimos das tendências observáveis no terreno da educação poderão conduzir a nação para um estágio em que uma imensa massa de obedientes e apáticos viva uma cultura apolítica e inteiramente dirigida do alto, não se pode dizer agora.
Nestes últimos dez anos muitos foram os jovens, mesmo saídos de bancos escolares, que procuraram escapar ao domínio de um Estado poderoso – um Leviatã orwelliano – pelos meios os mais diversos. Muitos refugiaram-se no escapismo das drogas e dos entorpecentes. Outros imbuíram-se de uma circunspecta decisão de “ganhar a própria vida e deixar o barco correr”.
Outros encontraram na música popular, no teatro ou no cinema formas de expressão e protesto que o resto do sistema não lhes permitia. Muitos, ainda, tentaram organizar-se politicamente, tentaram adquirir às pressas e nas circunstâncias as mais adversas possíveis uma “cultura política” que nunca foi hábito nem tradição da maior parte dos brasileiros; e alguns, com irresponsabilidade ou convicção, aventuraram-se por trilhas mais radicais e mais perigosas, geralmente fatais.
Para espanto e ira dos ideólogos, tanto dos esquemas e modelos oficiais, quanto dos antioficiais, porém, a realidade concreta nunca é tão lisa e plana que se adapte perfeitamente aos manuais e roteiros preestabelecidos: ela é rugosa e eriçada de contradições que tornam falsas as visões extremamente simplificadas que a procuram conter em dialéticas meramente aristotélicas. Assim, se o movimento geral do decênio foi a despolitização, a alienação, a massificação, algumas exceções à regra se tornaram extremamente significativas. A própria severidade dos fatos políticos sacudindo aceleradamente a história dos últimos dez anos – a tomada do poder, as cassações, a dissolução dos parlamentos e partidos, o fechamento das organizações estudantis e sindicais, as prisões e as punições mais drásticas, o estado de sítio de fato, a censura, a contenção salarial e o aumento do custo de vida – tudo isso foi violentamente posto sob os olhos e os narizes das pessoas, muitas das quais não conseguem mais se recusar a vê-lo e cheirá-lo. E esse fato despertou, em muitos professores e muitos estudantes – que talvez de outra forma jamais tivessem saído de suas eternas preocupações individualistas -, a curiosidade, primeiro, e a percepção, depois, para os fenômenos sociais e políticos. Certos temas amenos, da história, da antropologia, da sociologia, que antes faziam as delícias e as glórias das carreiras bem-comportadas, foram substituídos por tentativas mais ou menos sérias, mais ou menos exitosas de compreender, de justificar ou de condenar os acontecimentos vigentes; não em todas, mas em muitas universidades a preocupação dos economistas em corrigir, negar, contestar ou apoiar o “milagre brasileiro” levou jovens assistentes e estudantes a descobrir em fontes insuspeitas teorias tidas como esquecidas. Estudantes de engenharia e de medicina, em encontros realizados a duras penas, reclamam a inclusão de temas sociológicos, filosóficos ou históricos em seus currículos escolares. As contradições entre as palavras oficiais e os fatos da vida cotidiana têm sido às vezes brutais demais para passarem despercebidas: alguns não ficam indiferentes quando sabem que dos 60 mil candidatos aos principais vestibulares unificados, a maioria está excluída de antemão; alguns protestam quando o “ensino oficial gratuito” começa a ser pago de fato através de emolumentos; alguns se sensibilizam quando, de repente, percebem que um professor ou um colega de classe não é mais visto pelo campus nem em casa.
Muitos encaram com olhos infundadamente otimistas ou pessimistas o futuro; mas muitos tentam ver com realismo. A grande maioria das escolas superiores brasileiras de hoje em dia não tem professores em tempo integral ou semi-integral, não tem departamentos funcionando a contento, não sabe o que é a pesquisa ou a produção intelectual própria e se limita a dar formalmente cursos para fornecer um diploma ao cabo de quatro ou dois anos. Isto é, a grande massa universitária brasileira que está sendo forjada sairá, certamente, malformada, com apenas alguma pouca qualificação profissional, desinformada e apática, destituída dos instrumentos intelectuais de análise crítica. Novamente, poderá ser uma minoria privilegiada que terá o encargo de retomar a tradição crítica das ciências do homem, de esposar o ideal de reformas sociais, econômicas e políticas necessárias para assegurar a continuidade histórica da nação. Te-lo-á de fazer num meio que não lhe é propício, contando com restrições impostas pela autocensura, os riscos da repressão e a incompreensão da maioria, o desacesso às informações primárias e secundárias, combatendo contra a cultura de massa pronta para o consumo imediato e contra a inércia individual. Mas certamente não partirá da estaca zero. Muitas coisas aconteceram – e não em vão – desde a Revolução de 30, desde que em 1945 as gerações de então tomaram a si o encargo da redemocratização. Muito foi destruído ou substituído, mas algumas sementes permaneceram, e provavelmente frutificarão se devida e convenientemente cultivadas.