Por Antonio Candido.

Meus caros companheiros e amigos: começo agradecendo os organizadores deste evento pelo convite. Agradeço também à querida Heloisa Fernandes pelas suas palavras tocantes e manifesto o meu grande prazer pelo fato de me associar à inauguração da biblioteca desta escola, inclusive porque o meu tema é a importância do livro e da leitura, o que aliás já foi sugerido pelos companheiros que realizaram o lindo ato inicial, quando falaram da imaginação e da sua importância formadora.

Antes de abordar o tema, gostaria de reiterar alguns lugares comuns que venho repisando ao longo dos anos e que já tive a oportunidade de apresentar na inauguração desta escola. Refiro-me ao que penso a respeito da grande oportunidade e do grande significado histórico do MST, não apenas na realização das suas finalidades específicas, mas pelo papel que deve desempenhar na transformação democrática da sociedade brasileira. Para fixar as idéias, peço licença para me reportar ao ano de 1945, mais de 60 anos atrás.

Quando voltou a liberdade de manifestação, em fevereiro daquele ano, com a ditadura Vargas já declinando, eu fazia parte de um grupo político de luta contra ela, centrado, na Faculdade de Direito, na Frente de Resistência. Devido à abertura, os rapazes liberais foram para a União Democrática Nacional, UDN, e nós, socialistas, sob a inspiração e a liderança de Paulo Emílio Salles Gomes, fundamos a União Democrática Socialista, UDS. A nossa idéia era criar um movimento que não fosse estalinista nem trotskista, que se inspirasse no marxismo e se orientasse, não pela política soviética, mas pelos interesses sociais do Brasil, com destaque para aqueles que se poderiam considerar cruciais e requeriam transformações radicais, como o do negro e o do trabalhador rural.

Paulo Emílio tinha uma flama admirável. Havia fugido da prisão em 1937 e se exilado na França, onde desenvolveu uma atitude crítica, não contra o comunismo, mas contra a deformação a que este foi submetido na União Soviética. Sob esse aspecto, fomos um grupo precursor, que viu bem cedo, dentro da esquerda, coisas que esta só veria muito mais tarde. Mas tivemos pouquíssima repercussão. O manifesto da UDS foi escrito por Paulo e me parece até hoje um belo documento político.

Nele há um trecho que quero citar agora e que teve enorme influência nas minhas idéias. É o seguinte:

#“Na história do liberalismo e da pseudodemocracia do Brasil, os grandes fazendeiros, industriais, comerciantes e banqueiros já falaram muito. A classe média e o operariado disseram algumas palavras. Os trabalhadores da terra são a grande voz muda da história brasileira”.#

Nesse trecho, “falar” significa “poder manifestar-se politicamente” e, portanto, ter a possibilidade de atuar na vida política, econômica e social do país, – estando implícito que o progresso democrático depende da atuação de grupos cada vez mais numerosos da sociedade. O pressuposto do nosso manifesto era que só quando todos os setores da sociedade brasileira pudessem “falar” seria possível a democracia de todos, não de grupos privilegiados. Ora, nos anos de 1930, o trabalhador urbano e a pequena classe média começaram a ter iniciativa política efetiva, como se viu com surpresa nas eleições de 1945, quando mudou radicalmente o perfil dos eleitores para os órgãos legislativos.

Mas o trabalhador do campo continuava inteiramente manipulado, isto é, praticamente mudo, apesar da sua força potencial. Portanto, não era possível falar de democracia no Brasil antes que também ele assumisse a iniciativa política.

A nossa UDS durou pouco e logo nos incorporamos à Esquerda Democrática, fundada no Rio de Janeiro em meados de 1945 e denominada a partir de 1947, por proposta nossa, Partido Socialista Brasileiro, que não é o de agora, mas o que foi fechado pela ditadura militar em 1965.

Foi dentro desse partido que, se não me engano, foi dado o primeiro grande passo no sentido da atuação política consciente e correta do trabalhador rural, por iniciativa de um companheiro nosso, Francisco Julião, que fundou as Ligas Camponesas. Foi então que, para usar o conceito de Paulo Emílio, o trabalhador do campo começou a pronunciar algumas palavras.

Mas as Ligas foram uma semente, e só muito depois surgiu a grande força popular que é o MST, mostrando que o trabalhador do campo está de plena posse da capacidade de exprimir politicamente a sua posição e de reivindicar em escala nacional os seus direitos e a satisfação das suas necessidades. Com o MST, podemos dizer que a partir de agora todos os setores da sociedade brasileira estão em condições de se exprimir e de agir politicamente, de maneira que só com ele se completaram as condições para a realização de uma verdadeira democracia. A partir dele, a nação brasileira começa a estar completamente representada no plano político-social.

Um grande líder intelectual de esquerda, Caio Prado Júnior, me disse um dia: “O problema do Brasil é que só quem fala e atua somos nós, membros das classes que puderam se instruir e ter boa qualidade de vida, quer estejamos na direita, quer estejamos na esquerda.” Eu diria que, graças ao MST, isso começa a não ser exato, porque com ele todos os segmentos vivos da sociedade estão representados e, portanto, já se pode falar em encaminhamento para a verdadeira democracia.

Ora, o MST tem demonstrado uma atenção especial à instrução e ao livro, como demonstra esta biblioteca que vamos inaugurar hoje.

Ele não ignora que o saber é condição de consciência política e, portanto, da participação nos destinos do país. Falemos, então, do livro e da cultura intelectual, começando por um caso que me contou Paulo Emílio Salles Gomes. Certa vez, numa corrida de táxi, em conversa com o motorista, ouviu deste que “livro é muito bom, porque mata a fome da cabeça”.

A definição é admirável e completa, na sua singeleza. Não ter acesso ao livro é ser privado de um alimento fundamental, e nós sabemos que os regimes socialmente injustos, nos quais vivemos, timbram em restringir não apenas a satisfação da fome do corpo, mas também a da cabeça. O Brasil é um país grande e rico, mas tem prestado ao longo da sua história pouca atenção à instrução para todos, apesar de termos tido grandes educadores e grandes iniciativas na instrução para poucos.

Como disse um companheiro no ato inicial, o livro serve para a instrução e para a imaginação. Sob esse aspecto, uma das coisas diabólicas das sociedades baseadas na desigualdade é a barreira oposta ao cultivo da imaginação por parte dos menos favorecidos. Como fui durante muitos anos professor de Literatura, vou falar dela, porque quase nunca ela é reconhecida como algo cuja satisfação corresponde a necessidades fundamentais do ser humano. De fato, ninguém de boa fé põe em dúvida a necessidade da instrução, e todos sabem que é preciso ter acesso a livros de matemática para aprender matemática, e a livros de geografia para aprender geografia. Mas o cultivo da imaginação e o respeito pelos livros que a manifestam, como romances e poemas, serão importantes ou não passam de mera sobremesa? Será algo inútil que pode e mesmo deve ser dispensado?

O meu ponto de vista é que o direito ao exercício da imaginação é tão importante quanto o direito à instrução, porque corresponde a uma necessidade básica do ser humano. Este tem necessidade premente de exercer a imaginação e não consegue passar 24 horas sem fazê-lo. Se houvesse alguém capaz de dispensar a satisfação dessa necessidade poderosa, de noite sonha e a vida imaginária recupera os seus direitos…

Todas as pessoas precisam fugir intermitentemente da realidade, inclusive para enfrentá-la melhor, e o homem prático que diz não perder tempo com bobagens como literatura é o mesmo que faz projetos com lucros imaginários, conta aos amigos anedotas de papagaio ou mergulha nas telenovelas, que é uma das formas mais freqüentes de satisfazer a imaginação na sociedade contemporânea. Desde o devaneio no ônibus até a leitura de um conto ou uma ida ao cinema, todos têm necessidade de escapar da realidade para enfrentá-la melhor. Por isso, é possível dizer que todos têm direito à imaginação; inclusive sob a forma de literatura, que é como ela nos interessa agora devido à circunstância da inauguração de uma biblioteca.

A literatura é veiculada pelo livro, por meio do qual ela tem uma extraordinária força humanizadora, tanto em sua ação no nível consciente, quanto em sua ação no nível do inconsciente. A primeira é, por exemplo, a percepção do enredo de um conto, ou das sugestões de um poema. Mas tão importante quanto isso é o que vai para o inconsciente, o que penetra nas camadas profundas da nossa mente, e contribui para organizá-la.

O nosso espírito é um caos de idéias, sentimentos, impulsos que a necessidade de agir e pensar precisa pôr em ordem. Um ato definido e um modo de organizar a nossa conduta, um pensamento formulado é um modo de organizar as nossas idéias. A literatura, desde as suas formas mais humildes até as suas criações mais altas, funciona também como fator de ordem no caos. Quando o povo diz: “Água mole em pedra dura tanto bate até que ate fura”, está ordenando um mundo de intuições, experiências, vagos sentimentos, sugestões que se ordenam num conceito, e este ajuda a entender a vida, ensinando que a tenacidade acaba por obter o que queremos. Os ditados populares são formulações precisas duma porção de noções vagas, como o soneto e a formulação rigorosa de sentimentos ou idéias que passam da confusão do inexpresso à ordenação das coisas que encontraram expressão. Portanto, a literatura organiza a nossa mente por meio do que diz explicitamente de forma atraente e adequada, e também por meio daquilo que infiltra no inconsciente de todos nós como estruturação mental e afetiva. Todas as vezes que sistematizamos os nossos pontos de vista, os nossos sentimentos, as nossas aspirações, estamos pondo ordem na mente. Portanto, estamos aumentando o nosso coeficiente de racionalidade ou a nossa capacidade de sentir, isto é, estamos nos humanizando. Vale a pena sonhar é o título de um livro do nosso saudoso companheiro Apolônio de Carvalho, militante socialista durante toda a vida, herói da Guerra da Espanha, homem mergulhado na realidade da luta, que no entanto valoriza o embalo da imaginação.

É por isso que certos pensadores de esquerda chamam a atenção para os aspectos ideais de uma sociedade socialista, inclusive o lazer construtivo, aplicado à conversa, ao esporte, à instrução, à leitura, à arte, de tal modo que a média mental do ser humano subiria extraordinariamente. Todos trabalhariam um mínimo e aplicariam um máximo de tempo ao seu aperfeiçoamento, de modo que o trabalho deixaria de ser carga absorvente de uma parte da população para ser ocupação parcial de todos, servindo de base para as atividades da inteligência e da sensibilidade.

Nessa visão utópica, o livro e a leitura passariam a ser um bem comum, um humanizador geral. Essas visões mostram que a humanização do homem se dá partir do trabalho, mas é coroada pelas atividades de lazer construtivo.

Voltando à realidade, é preciso entender que o trabalho é o grande fator de humanização. Na A ideologia alemã, Marx mostra como o homem se destaca da natureza por meio dele, seu agente transformador. Quando tem a idéia de jogar um tronco de árvore sobre um regato, o homem está transformando a natureza, impondo a ela a sua vontade criadora e, portanto, começando a se libertar dela. O regato com a sua ponte tosca não é mais apenas natureza, é alguma coisa a mais, criada pelo trabalho humano: civilização.

Portanto, o trabalho é positivo. O que pode ser negativo é a sua organização. Como ele serve de critério para dividir a sociedade em classes, fazendo as de cima explorarem as de baixo, isso pode levar a uma deformação ideológica de seu significado, apresentando-o como uma espécie de atividade absorvente e exclusiva, que deve ocupar todo o tempo dos que são votados a ele. Os sistemas baseados no trabalho escravo ou servil, e também o capitalismo, parecem querer transformá-lo numa espécie de obrigação moral absoluta, porque ele produz o lucro e o lucro é o objetivo dos sistemas baseados na desigualdade. Sabemos que, no começo do capitalismo moderno, os operários trabalhavam freqüentemente o dobro do horário de hoje, chegando a dormir em baixo das máquinas para não perder tempo. Nesses casos, o operário é equiparado à máquina, como se fosse um instrumento material destinado à atividade sem pausa.

Pode haver, portanto, uma espécie de divinização ideológica do trabalho que exprime no fundo uma terrível má fé, e esta deve ser combatida, porque o capitalismo quer ser dono do tempo, quer confiscá-lo em seu proveito, concebendo-o apenas como fator da produção econômica. Sob esse aspecto, chega a ser sinistro o famoso aforismo atribuído à Benjamin Franklin, um dos pais da independência estadunidense: “Tempo é dinheiro”. Isso é monstruoso, porque na verdade o tempo é o tecido da nossa vida, uma coisa preciosa, mesmo porque nos transforma a cada minuto, sendo certo que daqui a meia hora nós aqui presentes não seremos os mesmos. Portanto, é preciso prever formas mais altas de ocupação do tempo. 

No tipo de sociedade que é a nossa, faz parte da luta do trabalhador instruir-se e cultivar-se, usando o mais que for possível as escassas margens de tempo que lhe sobram. Na medida em que se instrui, ele transforma o tempo em enriquecimento e se prepara para não ser uma máquina destinada a produzir mais-valia. Se juntar a isso o cultivo da imaginação pelas artes e pela literatura estará subindo a níveis mais altos de realização humana e ajudando a preparar, ao lado das lutas políticas, a marcha para a democracia de todos, que estabelecerá o direito ao tempo – tempo para estar com a família, para amar, para se divertir, para conviver com os amigos, para ler Machado de Assis ou Carlos Drummond de Andrade. Portanto, a luta pela justiça social é em parte uma reivindicação do tempo, uma conquista do direito de usá-lo para além do trabalho.

Muitos pensam que ao trabalhador basta um pouco de instrução e de conhecimentos profissionais, pois arte e literatura são coisas para as outras classes. E há casos extremos em que a própria instrução lhe é negada. Lembro que, no meu tempo de menino e adolescente no interior de Minas, havia fazendeiros que não permitiam a abertura de escolas rurais em suas propriedades, porque, diziam, sabendo ler, escrever e fazer as quatro operações os empregados começariam a discutir as contas… Isso mostra que de fato saber é poder e mostra a força libertadora da instrução, que leva os detentores dos meios de produção a limitá-la freqüentemente em relação aos seus dependentes, porque querem confiná-los ao universo puro do trabalho, apenas do trabalho.

No entanto, quando tem oportunidade, o povo trabalhador recebe as mensagens da arte e do saber com sofreguidão, inclusive em suas formas precárias, como é em parte a televisão dos nossos dias. O ideal seria que pudesse fruir as modalidades mais elevadas de cultura.

A propósito: a professora Maria Vitória Benevides me contou que há alguns anos a prefeitura de Milão resolveu exigir que os industriais dessem algumas horas livres cada semana para os operários poderem se instruir, certa de que cada setor escolheria o aperfeiçoamento nas técnicas da sua profissão. No entanto, a maioria absoluta pediu cursos de língua italiana e a leitura explicada do grande poema de Dante Alighieri A divina comédia, uma das obras supremas da inteligência humana. Na Itália há milhares de pessoas de todas as classes que sabem de cor partes dele, o que verifiquei quando menino na minha cidade de Poços de Caldas. Havia lá um velho sapateiro florentino, Crispino Caponi, que memorizara toda a primeira parte do poema, “O inferno”, constituído por 34 cantos num total de mais ou menos 5 mil versos. A oficina dele era na praça central e ele passava o dia batendo as suas solas perto da porta. As pessoas lhe pediam para recitar o canto número tal e, se estivesse de bom humor (o que não era freqüente), ele o dizia com a pureza toscana de Dante, florentino como ele.

Para mim, o velho e rabugento Crispino ficou sendo um exemplo de como a mais alta literatura pode ser apreciada pelo trabalhador e como este pode usar bem o seu tempo além da tirania das tarefas.

Por tudo isso, caros companheiros e amigos, parabéns pela inauguração desta biblioteca da Escola Florestan Fernandes, porque a leitura nos refina e nos liberta de muitas servidões.

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