O CENTENÁRIO DA ANTIABOLIÇÃO – 1988

Florestan Fernandes

O Movimento Negro do PT pretende participar ativamente dos “festejos” do Centenário da Abolição. Mas irá participar de forma crítica e desmistificadora. O que significa abolir? Extinguir, acabar ou revogar. Doutrinariamente, a abolição deveria corresponder à consagração do abolicionismo, à redenção do agente do trabalho escravo. No entanto, ocorreram simultaneamente dois movimentos convergentes de caráter abolicionista. Um, que era expressão do liberalismo e do humanitarismo radicais dos brancos, com frequência nascidos na Casa Grande ou aliados dos interesses senhoriais, e que queriam libertar o Brasil da nódoa e do atraso da escravidão. Outro, que vinha da senzala e exprimia a luta do escravo para passar da condição de escravo para a condição de homem livre.

O primeiro movimento era pacífico e, em essência, libertava a sociedade dos entraves ao desenvolvimento capitalista, que resultavam da imobilização do capital e da inibição dos dinamismos do capitalismo comercial e industrial, que provinham da persistência do modo de produção escravista e do trabalho escravo. O segundo associava-se à violência, à fuga, ao aparecimento de quilombos e à fermentação de conflitos sociais nas fazendas, nas zonas de plantações e mesmo nas cidades. Joaquim Nabuco e José do Patrocínio representavam o primeiro tipo de movimento. Negros escravos e libertos anônimos eram os paladinos do segundo movimento, que ganha corpo aos poucos e, na última década do século XIX, leva a desorganização às fazendas e as inquietações sociais aos lares dos grandes proprietários.

Excepcionalmente, algum branco do estamento senhorial colaborava com essa modalidade de agitação abolicionista insurgente, como Antônio Bento e certos caifazes. Os brancos que davam maior apoio a essas lutas antiescravistas eram pobres, artesãos, operários ou pequenos comerciantes, segundo informações do próprio Antônio Bento, o mentor da redenção do negro (não da mera emancipação do escravo).

TRISTES EPISÓDIOS

O 13 de maio foi um ato de romantismo político (do ponto de vista da casa imperial) e jogou contra o trono a fúria dos últimos senhores de escravos. De fato, a escravidão esgotara-se como modo de produção e os novos centros de expansão da lavoura encerravam o ciclo da substituição maciça do trabalho escravo pelo trabalho livre. Os célebres contratos com os escravos, com cláusulas temporárias para a sua libertação definitiva, constituíam um ardil, através do qual os proprietários extorquiam dos escravos mais cinco, três ou dois anos de trabalho. No fim, era um artifício para prender o escravo até a realização das colheitas.

Os episódios que marcam essa época histórica e dão o sentido das ações dos senhores são os mais vergonhosos e vis, que se poderiam imaginar: eles desmascaram a natureza espoliativa da relação senhor-escravo até o último instante, prevaleceu o instinto predador e o espírito de lucros grosseiros, que dominaram o horizonte cultural senhorial. Retendo os escravos por “mais algum tempo” tornava-se possível atingir fins imediatos, ligados à produção, à colheita, à exportação; e conseguia-se tempo para buscar o substituto do escravo, no mercado em que se comprava (“contratava-se”) o imigrante com a sua família ou o morador nativo com sua família. O “trabalho livre” emergia como equivalente do trabalho escravo e o trabalhador livre como uma espécie de escravo temporário, não declarado.

FESTA ÀS MEIAS

Essa situação era o produto de uma evolução natural do regime de produção escravista e da impossibilidade de se tirar de dentro dele, como do regime de produção artesanal na Europa, o trabalhador qualificado e o pequeno ou médio empresário. Enquanto perdurou o medo de que a supressão do tráfico conduziria o Brasil a um beco sem saída, os senhores e os teóricos do escravismo desenharam utopias sobre a preparação e a educação do escravo para o trabalho livre.

Quando se descobriu que esta era uma alternativa hipotética e que existiam outras possibilidades mais baratas e menos complexas de transição, abandonaram-se tais idéias e largara-se o negro à sua sina. Por isso, o 13 de maio foi uma festa às meias. Tirava dos ombros do senhor o “fardo da raça branca” e engendrava-se o que os fazendeiros paulistas batizaram como “o homem livre na Pátria livre”. Só que o “homem livre”, por algum tempo, continuaria a ser recrutado nos estratos dominantes da “raça branca” (até que os trabalhadores criaram o trabalho livre, como categoria histórica) e o negro estava condenado a um destino trágico. O senhor não recebeu do Estado a indenização pelo juízo provocado pela perda da propriedade sobre o escravo. Mas obteve mais do que isso, indiretamente, através do financiamento de uma política oficial de imigração e de proteção à exportação, que resolvia seus problemas de mão-de-obra e de comercialização do café.

Em seguida, com a República, o fazendeiro tornava- se beneficiário de uma oligarquia perfeita, que unia seu poder local ao poder estatal, unificando seus interesses econômicos, sociais e políticos, em termos de uma política econômica fundada em sua situação de classe.

Desse ângulo, o 13 de maio brilhou como um sol que protegia unilateralmente os senhores, os seus objetivos e os desdobramentos destes a médio e a longo prazo. O negro e o liberto perderam em toda a linha. Na competição com os imigrantes, foram desalojados pelas preferências dos proprietários pelo “homem livre”, visto como mais apto e produtivo. Selecionados negativamente nas áreas em desenvolvimento econômico acelerado, viram-se também expostos a uma dura escolha. Os salários vis, que lhes ofereciam, enquadravam-se numa política geral de salários baixos. O ex-escravo e o ex-liberto viram-se na contingência de repudiar as ofertas de trabalho, pois enxergavam nela a continuidade da escravidão por outros meios. Tiveram de retrair-se, retomando os caminhos que os levava de volta às regiões de origem, submergindo na economia de subsistência, ou recorriam ao parasitismo sobre a mulher negra, ou tinham de submeter-se aos “trabalhos sujos”, literalmente, “trabalhos de negro”. O círculo se completara.

Egressos despreparados para o trabalho livre da crise final da economia escravista, não encontravam dentro do sistema de trabalho livre emergente oportunidades de acesso e de integração. Portanto, o 13 de maio dobra a última página de uma tragédia. O negro era expulso de uma economia, de uma sociedade e de uma cultura, cujas vigas ela forjara, e enceta por conta própria o penoso processo de transitar de escravo a cidadão.

Este seria um processo de longa duração, pouco rápido em toda a parte e fragílimo no Brasil como um todo. O 13 de maio não descerrava para o negro “novas oportunidades”. Extinguia as velhas ocupações sem engendrar outras novas. Então começa a pugna feroz do negro para “tornar-se gente”, para conquistar com suas mãos sua auto-emancipação coletiva.

O passo inicial consistia em penetrar no mundo da classe, de tornar-se assalariado e, por aí, assimilar a cultura do proletário e do morador da cidade. É nas cidades que os negros iriam multiplicar suas desgraças mas, ao mesmo tempo, forjar uma consciência social de rebelião coletiva.

RAÇA E CLASSE

Aparecem pequenos clubes, alguns jornais, escritores negros ou mulatos leais à raça. O passo seguinte envolveu a formação de movimentos sociais de auto-análise, de autocrítica e de demolição devastadora da hipocrisia do branco. O “negro emparedado” desmistifica-se e desmascara a ordem legal existente, demonstrando que ela se fechava para o negro, por causa do preconceito e da discriminação raciais.

Os movimentos sociais não encontram receptividade entre os brancos, que não os compreendem e os encaram como “racistas”, invertendo defensivamente a equação libertária do negro. Este exige cidadania completa, em todos os sentidos. No trabalho, no lar, no meio ambiente global. Torna-se o paladino da liberdade maior, da liberdade com igualdade, que somente os brancos revolucionários, vinculados ao socialismo e ao comunismo, deveriam entender (mas não entenderam: os movimentos sociais do meio negro atingem o apogeu na década de 30; os partidos socialistas e comunistas apenas depois da década de 60 começam a aprender que a classe não explicava tudo e que, com referência ao negro, era necessário combinar raça e classe para descrever e explicar as contradições da sociedade brasileira. Os sociólogos, porém, fizeram essa descoberta no início de 1950, sem serem devidamente ouvidos, mesmo pelos negros).

Importa ressaltar duas coisas. Primeiro, é que o 13 de maio subsiste como uma data falsa, uma “data do milagre”, que teria redimido o escravo de um momento para o outro. Segundo, que foram os negros, pelos movimentos sociais e segundo suas próprias palavras, que montaram peça a peça a “nova Abolição”, a abolição da qual e pela qual eles se impunham como gente, como seres livres e iguais a todos os outros, partindo da raça para injetar seu ideal libertário e igualitário na classe social e na sociedade nacional.

O movimento negro sente-se, pois, como responsável por uma vertente do pensamento social revolucionário dentro do PT. Ao romper com o convencionalismo da interpretação oficial do 13 de maio, tenta convidar o PT a ser coerente com sua condição de partido que advoga o socialismo proletário. O trabalho lança suas raízes, no Brasil, no trabalho escravo. Por sua vez, a acumulação capitalista interna, como processo histórico específico, ganha impulso, depois da Independência, graças ao excedente econômico gerado pelo trabalho escravo.

Isso quer dizer que o “mundo moderno” iria aparecer aqui, de uma acumulação originária de capital sustentada sobre a espoliação do negro pelo branco. E, indo mais longe, a proletarização teve suas origens e seus limites não no “mundo que o português criou”, porém, no “mundo que o escravo produziu”. Essas origens e esses limites contêm a marca colonial e neocolonial; contudo, também são profundamente determinadas pelo modo escravista de produção, por seu agente humano e pela elaboração do trabalho assalariado como substituto e equivalente do trabalho escravo.

Os trabalhadores brancos, estrangeiros e nacionais, incumbiram-se da tarefa essencial de passar a limpo a noção de trabalho livre como categoria histórica. Agora, ela precisa abranger o negro, em todos os seus pressupostos ou determinações. Socialismo proletário, entre nós, implica raça e classe indissoluvelmente associadas de modo recíproco e dialético.

Mesmo no contexto da sociedade de classes vigente – capitalista e burguesa – deve-se contrapor a democracia vinculada à classe à democracia que resulta de uma amalgamação de raça e classe. Foi fácil, por exemplo, ao italiano ou ao alemão atravessar a linha de classe. O mesmo não acontece com o negro. Este precisa atravessar duas linhas de resistência, de integração e de dissolução: a da classe e a da raça. O proletário negro propõe ao PT o limite mais amplo da liberdade com igualdade, no seio da democracia burguesa ou numa futura sociedade socialista.

“NOVA ABOLIÇÃO”

Daí ser imperioso o desmascaramento da história – a começar pelo 13 de maio e pela realidade concreta de uma República que só é democrática para os de cima. A emancipação coletiva dos de baixo, no estágio atual, exige que o PT se volte para o passado e descubra qual era a essência do 13 de maio. Como outras manifestações históricas similares, o 13 de maio foi uma revolução social dos brancos, pelos brancos e para os brancos dos estratos sociais dominantes.

Ele dividiu os de baixo e compeliu os negros a rolar até os últimos degraus da exclusão, do desespero ou do trabalho que todos repeliam. Isso obrigou os negros a lançarem-se à conquista do seu 13 de maio, a uma nova Abolição, que passou ignorada, mas os colocou na condição de agentes históricos retardatários. Eles abriram para si as portas da sociedade de classes, penetraram no mercado pelas vias mais duras e começaram a classificar-se, através de um processo histórico lento, prolongado e oscilante, como trabalhadores livres no sentido pleno do conceito.

Hoje, seu movimento social conflui em várias direções, inclusive na do PT, e sua bandeira de rebelião social é outra. Eles formam, a um tempo, a vanguarda racial das forças sociais da revolução proletária e o fermento político de um socialismo revolucionário que se opõe contra os dois antigos regimes superpostos à existência da classe e da raça, como meios de exploração econômica, de dominação social e de subalternização cultural.

A “segunda Abolição” ainda não se completou. Todavia, o seu percurso é claro. Ele termina e atinge seu clímax em um movimento social que constrói dentro do PT seus vínculos mais fortes com o ideal proletário de edificação de uma sociedade nova, sem dominação de raça e sem dominação de classe.

Fonte: Boletim Nacional do PT, nº 35, maio de 1988, p. 08-09. Acervo: CSBH/FPA.

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