MULHER, NEGRA E POBRE: A TRIPLA DISCRIMINAÇÃO – 1997

Benilda Paiva Regina de Brito

A luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e raça vem desenhando novos contornos para os movimentos feminista e anti-racista. Ao integrar a tradição de luta destes movimentos, afirma uma nova identidade política decorrente do ser mulher e negra.

Quando falamos em mulher negra no Brasil é importante traçarmos seu perfil para que possamos demarcar diferenças com as visões estereotipadas. [1]

Nós, as mulheres negras brasileiras, somos 25% da população. A maioria de nós é analfabeta ou semi-analfabeta. Nossa remuneração está em geral na faixa de um salário mínimo. Muitas de nós chefiam família em maior número que as brancas. Tal perfil demonstra que a maioria das mulheres negras vive em condição de pobreza.

O Brasil é o país de maior população negra fora da África; historicamente um país escravocrata onde ainda perduram as idéias racistas nas instituições governamentais e na sociedade em geral. Mesmo quando a pessoa negra ainda não adquiriu a consciência do racismo, ser negra em nosso país significa viver em condição de extrema desigualdade social e racial.

Considerando que a mulher no Brasil, até a Constituição de 1988, era legalmente cidadã de segunda categoria, ser mulher negra e pobre significava não ter os direitos mínimos de cidadania assegurados juridicamente.

É no contexto descrito que precisamos situar a denominada “questão da mulher negra”; como ela surgiu, se estabeleceu e chegou ao que hoje se convencionou chamar de Movimento de Mulheres Negras, a luta organizada contra a tripla discriminação.

Durante muitas décadas, o movimento feminista trabalhou com a idéia da “irmandade” das mulheres; que a opressão da mulher, ou, como se diz hoje, a opressão de gênero, atingia de forma igualitária e indiferenciada a todas as mulheres. Graças à presença e ao trabalho de feministas negras esta idéia está superada. Hoje, é ponto pacífico que, embora a opressão de gênero seja algo comum a todas as mulheres nas sociedades patriarcais, ela é sentida diferentemente porque entre nós, as mulheres, existem diferenças de classe e de raça. E o racismo só é comum às mulheres “não-brancas”.

Podemos aplicar a mesma análise aos homens negros, mais especificamente ao movimento negro. Durante muitos anos, as mulheres negras que se assumiam feministas foram acusadas de dividir a luta anti-racista, tão-somente porque diziam que era impossível a irmandade entre os negros porque, parafraseando Elizabeth Lobo [2], a população negra, assim como a classe operária, tem dois sexos e um deles era oprimido. Faltava ao Movimento Negro considerar as especificidades das mulheres negras. Hoje, cresce nele a compreensão de que é preciso considerar a perspectiva de gênero para fortalecer a luta anti-racista.

A síntese do papel desempenhado pelas feministas negras nos movimentos negro e feminista foi feita magistralmente por Suely Carneiro: “A luta das mulheres negras brasileiras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista. Este novo olhar feminista e anti-racista, ao integrar a tradição de luta do movimento negro e do feminista, afirma esta nova identidade política decorrente do ser mulher e negra.

O atual movimento de mulheres negras ao trazer para a cena política as contradições resultantes das variáveis raça, classe e gênero, promove a síntese das bandeiras de luta historicamente levantadas pelos movimentos negros e de mulheres do nosso país, enegrecendo, de um lado as reivindicações das mulheres e, por outro, promovendo a feminização das propostas e reivindicações do movimento negro.” [3]

Mulher negra em dados [4]

Trabalho

A maioria das análises históricas sobre trabalho feminino não se aplica às mulheres negras brasileiras, porque já chegamos no país na condição de trabalhadora escrava. Ser “dona-de-casa” é uma experiência que data de pouco mais de um século na vida das mulheres negras, que se juntou ao principal trabalho que estas vêm fazendo desde a época pós-abolição, ou seja ser empregada doméstica.

A pouca escolaridade e a falta de uma profissão considerada “qualificada” justificam o lugar que a mulher negra ocupa no mercado de trabalho: o mais desvalorizado socialmente e de pior remuneração. Considerando-se os rendimentos, conforme o Mapa do Mercado de Trabalho (IBGE, 1990), a média nacional em salários mínimos dos homens brancos era de 6,3 e a dos negros 2,9; as mulheres brancas ficavam com 3,6 e as negras com apenas 1,7.

O estudo do PNUD para o Brasil aponta que “o rendimento médio dos homens pretos e pardos correspondia em 1990, respectivamente, a 63% e 68% do rendimento dos homens brancos. A posição relativa da mulher preta e parda em relação à mulher branca é semelhante: seu rendimento correspondia a 68% da mulher branca.” [5]

Em 1980, apenas 1.757 mulheres negras ganhavam mais de 20 salários mínimos em uma População Economicamente Ativa de 4 milhões de mulheres negras.

O lugar da mulher negra no mercado de trabalho está demarcado no imaginário de chefias e profissionais de recursos humanos pelo estereótipo de beleza branca, a tão falada “boa aparência”. Em funções como vendedora, recepcionista e secretária são exigidos determinados atributos estéticos, considerados exclusividades das brancas. Estas e as amarelas estão representadas de quatro a cinco vezes mais que as negras, com respectivamente 8,9%, 11% e 2,2%.

Educação

Dados do censo de 1980 demostram que 80% das mulheres negras estão na faixa dos que têm até quatro anos de estudo, enquanto que as brancas, na mesma faixa, eram 67%. Dados da PNAD (1987) informam que 62,7% das negras não terminaram o antigo curso primário e que as negras analfabetas eram o dobro das brancas.

Segundo pesquisas de Piza (1994), “as mulheres negras analfabetas ou de baixo nível de instrução compõem um enorme contingente de empregadas domésticas ou empregadas em funções consideradas domésticas.

As mulheres negras com maior escolaridade (até o segundo grau) vão apresentar uma trajetória ocupacional bem diferenciada das mulheres brancas do mesmo nível educacional.

A escolaridade não parece ser a determinante do padrão salarial das mulheres negras: é a ocupação manual mais especializada e a jornada de trabalho mais extensa que parecem determinar maior rendimento.”

Violência

A violência contra a mulher historicamente é definida como espancamentos, estupro, assassinatos (violência doméstica e sexual). No caso das mulheres negras, a violência racial soma-se às outras faces, o que aprofunda as suas vivências em meio à violência, aqui iniciada com o tráfico de escravos negros. Este implicava a violência sexual perpetrada pelos senhores de escravos, seus familiares e agregados contra as mulheres negras, os estupros – considerados naturais, já que escravas não eram donas de seus corpos, além das lesões corporais do tronco e do pelourinho.

Atos violentos, como o machismo e o racismo atuais, visam desumanizar as mulheres, negar-lhes a condição de pessoas e transformá-las em “coisas”. Por isso, sobre nós, mulheres negras, recaem apelidos como “bicha fedorenta”, “macaca”, “gambá” etc. A despersonalização é comprovada pelo fato de que quando as mulheres procuram os órgãos de proteção, em geral, não possuem mais seus próprios documentos e nem os dos filhos, pois na maioria das vezes eles foram rasgados, queimados ou estão em poder dos seus algozes. Estando sem documentos, simbolicamente, é como se elas não existissem e os filhos não lhes pertencessem.

A violência doméstica (cometida em casa pelo pai, filho e principalmente marido/ companheiro) é uma dura realidade no caso das mulheres negras. Dados preliminares do Benvinda – Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, demonstram que, naquele município, 62% das mulheres que denunciam situação de violência são negras. Logo, cabe a este equipamento social ter especial atenção com o recorte racial da violência doméstica.

Banalizar a violência e suas decorrências tem sido a saída encontrada por agressores racistas e machistas para a busca de aliados sociais que possam comungar destes atos. Arnaldo Xavier, poeta negro de São Paulo, afirma que o único espaço de cumplicidade efetiva entre o homem negro e o branco é o machismo. Eles estariam de acordo e seriam cúmplices no direito que ambos se dão de oprimir, discriminar e desumanizar as mulheres brancas ou negras.

Saúde

Os estudos sobre saúde da população negra no Brasil são muito recentes e ainda poucos, portanto os dados são quase inexistentes. O documento final da Mesa Redonda sobre a Saúde da População Negra, promovida pelo Ministério da Saúde (1996) publicou um quadro sobre as doenças das populações afro-brasileiras, elaborado pelo prof. Dr. Marco Antônio Zago (1996):

Nosologias das populações afro-brasileiras

Condições geneticamente determinadas, dependentes de elevadas frequências de gene(s) responsável pela doença ou a ela associada Anemia falciforme, hipertensão arterial, diabete melito, deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase

Condições adquiridas, derivadas de condições sócio-econômicas e educacionais desfavoráveis e intensa pressão social Alcoolismo, toxicomania, desnutrição, mortalidade infantil elevada, abortos sépticos, anemia ferropriva, DST/Aids.

Doenças cuja evolução é agravada ou o tratamento é dificultado pelas condições ambientais indicadas Hipertensão arterial, diabete melito, coronariopatias, insuficiência renal crônica, cânceres, miomas.

Condições fisiológicas que sofrem interferência das condições ambientais citadas, contribuindo para sua evolução para doenças crescimento, gravidez, parto, envelhecimento.

Diante do quadro mencionado, é enorme a importância do “quesito cor” nos dados de identificação pessoal, sobretudo nos serviços de saúde. Nesse sentido, é de grande valor o decreto do Ministério da Saúde, de março de 1996, que dispõe sobre a padronização de informações sobre raça e cor dos cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país. [6]

Segundo Fátima Oliveira, as principais doenças com interfaces definidas com a saúde reprodutiva da mulher negra são: diabetes tipo II, miomas, hipertensão arterial e a anemia falciforme.

Hoje sabemos que a diabetes tipo I (infanto-juvenil/insulino-dependente) é mais comum em brancos e a diabetes tipo II (ou adulta/não-insulino-dependente) é prevalente em negros.

Os miomas uterinos são os tumores que mais acometem as mulheres, em geral entre a primeira menstruação e a menopausa. Quase sempre são benignos (menos de 1% dos miomas se tornam malignos). Pesquisa realizada por Souza (1995) concluiu que são altas incidência e reincidência de miomas nas mulheres negras pesquisadas e que a taxa de histerectomias (extração cirúrgica total do útero) nas negras foi de quase cinco vezes maior que nas brancas. [7]

A hipertensão arterial é responsável por 12 a 14% das causas de todos os óbitos de adultos no Brasil. Sabe-se que a pressão arterial é mais alta nos homens e é prevalente em negros, de ambos os sexos. Em negros aparece mais cedo, é mais grave e mais complicada. A primeira causa de morte materna no Brasil é por toxemia gravídica, uma conseqüência da hipertensão arterial não controlada durante a gravidez. Donde podemos concluir que é muito provável que as mulheres negras sejam as mais atingidas pela mortalidade materna no Brasil.

A anemia falciforme é hereditária e é a doença genética mais comum da população negra no mundo. Segundo dados de Zago (1996), nasciam no Brasil cerca de 700/mil pessoas com doenças falciformes e existiam pelo menos 8 mil pessoas falcêmicas (possuem dois genes para anemia falciforme) e 2 milhões de pessoas com um gene da anemia falciforme.

Alves (1996) informa que foi de 2.387 o número total de óbitos declarados, de 1979 a 1995, cuja causa foi a anemia falciforme. Apesar de sabermos que este dado não é o retrato da realidade – sobretudo porque se o diagnóstico de anemia falciforme em geral não é feito, declarar anemia falciforme como causa de morte é uma raridade e um feito heróico –, o estudo citado conclui que “quase 80% dos doentes de anemia falciforme não completaram 30 anos de idade, enquanto 88% das pessoas que morreram em decorrência da doença não tiveram o registro correto de sua causa de morte”. [8]

Para Alves, “a primeira observação (grande mortalidade nos primeiros anos de vida) reflete a gravidade da doença; a segunda é muito mais preocupante, pois reflete, principalmente, a incapacidade do sistema de atenção à saúde (aí incluídos os profissionais médicos) de detectar a moléstia. A deficiência na detecção da doença tem, provavelmente, três causas fundamentais: a) falta de um programa de detecção sistemática da doença; b) falha da educação do pessoal de saúde para diagnosticar; c) morte de grande número de pacientes como conseqüência de complicações da doença sem assistência médica.” [9]

Diante desta realidade, a elaboração de diretrizes nacionais para a abordagem da doença é bem-vinda. O Programa de Anemia Falciforme (PAF) do Ministério da Saúde (1996) é visto como um sinal de boa vontade, de enfim dar uma atenção integral e digna às pessoas acometidas pela doença, além do que representa o atendimento de uma antiga reivindicação do Movimento Negro.

Um panorama da lutas

Enquanto mulheres negras em luta, estamos nós mesmas assumindo e traçando nosso destino histórico nessa nova sociedade que pretendemos construir: sem discriminação de qualquer natureza, seja sexual, social, racial ou de classe.

De 1988 até 1997 o movimento brasileiro de mulheres negras realizou sete eventos de caráter nacional [10]. O último foi a Reunião Nacional de Mulheres Negras, em Belo Horizonte, em setembro de 1997, com 69 participantes de dez estados mais o Distrito Federal, cujas resoluções demonstram o “estado da arte” do movimento, suas definições e aspirações. Elas representam um guia para a ação e acenam com a possibilidade de modificar efetivamente o cenário racista e machista do nosso país.

Benilda Regina Paiva de Brito é militante do Nzinga-Coletivo de Mulheres Negras e coordenadora do Benvinda-Centro de Apoio à Mulher da Prefeitura de Belo Horizonte e da Regional Brasil na Rede de Mulheres Afrocaribenhas e Afrolatinas.

Notas

[1] Agradeço a Fátima Oliveira pela leitura atenciosa, dados e sugestões.

[2] LOBO, Elizabeth Souza. “A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e resistência”. Editora Brasiliense, SP, 1991.

[3] CARNEIRO, Suely. “A perspectiva da mulher negra”. O Estado de Minas. Opinião. 08 de setembro de 1997, pág. 4.

[4] OLIVEIRA, Fátima et alli. “A Mulher Negra na década: a busca da autonomia”. Cadernos Geledés 5. SP, 1995; BENTO, Maria Aparecida Silva. “A Mulher Negra no Mercado de Trabalho”.Estudos Feministas, Vol.3, N.2/95,RJ; PIZA, Edith. “A educação da mulher negra”. Que cara tem a mulher brasileira/Seminário Gênero, Classe e raça. Instituto Cajamar,SP, 1994.

[5] Citado em SANTANA, Vânia. “Desenvolvimento Humano e População Afro-descendente no Brasil: uma questão de raça”. Proposta, Nº 73, junho/agosto de 1997

[6] Art.º”Os documentos civis e militares que terão a inclusão obrigatória do quesito raça/cor, com seus desdobramentos são: a) declaração de nascido vivo;b) certidão de nascimento; c) carteira de identificação civil e militar; d) autorização de internação hospitalar (AIH); e) prontuário médico; f) certidão de casamento; g)certidão de reservista; h) título eleitoral; i) boletim de ocorrência policial; j) declaração de óbito; l) certidão de óbito”. Relatório de Atuação do Grupo de Trabalho Interministerial para Valorização da População Negra (GTI).

[7] SOUZA, Vera Cristina de. Mulher Negra e Miomas: uma incursão na área da saúde, raça/etnia. Dissertação de mestrado, SP. PUC, 1995.

[8] ALVES, Amaro Luiz. “Estudo da mortalidade por anemia falciforme”. Informe Epidemiológico do SUS (Brasil). Ano V, Nº 4, out. a dez./ 1996, pág, 45 a 53.

[9] Idem.

[10] I Encontro Nacional de Mulheres Negras (Valença/RJ, 1988, 450 participantes, 17 estados), ao qual se seguiu o II Encontro Nacional de Mulheres Negras (Salvador/BA, 1991, 430 participantes, 17 estados); o Seminário Nacional Políticas e Direitos Reprodutivos das Mulheres Negras (Itapecerica da Serra/SP, 1994, 55 participantes, 14 estados) preparatório para a Conferência sobre População e Desenvolvimento, Cairo/95; o I Seminário Nacional de Mulheres Negras (Atibaia/SP, 1993, 48 participantes, nove estados) e o II Seminário Nacional de Mulheres Negras (Salvador/BA, 1994, 67 participantes). Reunião Nacional, Campinas, 18 e 19 de abril de 1997, 58 participantes, 13 estados.

Fonte: Teoria e Debate, nº 36, 01 de outubro de 1997. Acervo: CSBH/FPA.

Para visualizar o documento original, clique aqui.