Humberto Pereira
Por alguns anos Carlito redigiu a coluna "Tempos Modernos" na Revista Imprensa onde acabou, em vida, virando nome de prêmio. Carlito Maia tinha o dom da indignação. Enxergava as injustiças, as malandragens e canalhices antes da gente. Indignava-se com paixão sem medidas. E aí vinha seu outro enorme dom: o da comunicação. Achava as palavras adequadas, mutantes, lindas para cada situação.
Por alguns anos Carlito redigiu a coluna "Tempos Modernos" na Revista Imprensa onde acabou, em vida, virando nome de prêmio. Carlito Maia tinha o dom da indignação. Enxergava as injustiças, as malandragens e canalhices antes da gente. Indignava-se com paixão sem medidas. E aí vinha seu outro enorme dom: o da comunicação. Achava as palavras adequadas, mutantes, lindas para cada situação. Criava encontros inéditos de sílabas, formava frases inesquecíveis em mensagens que nos despertavam para as indignações devidas. Era um poeta, um utópico que tinha na cabeça e no coração uma sociedade e um Brasil justos e generosos. Foi um grande frasista, sim. Foi contudo mais do que isso.
Conheci Carlito na década de sessenta fazendo uma palestra para jovens frades dominicanos entre os quais eu me encontrava. "Boa Noite. Meu nome é Carlos Maia de Souza, sou marxista, comunista…" Era muita diversidade e franqueza junto àquela comunidade monástica, literalmente de hábitos medievais. Falou de publicidade, de televisão, dos programas da TV Record, especialmente do "Jovem Guarda". Naquela noite Carlito Maia entrou na minha vida como, durante toda sua existência, entrou na vida de tanta gente, na história da publicidade e das comunicações do Brasil, na saga da resistência à ditadura militar.
Depois do primeiro encontro vi Carlito ajudando na divulgação da montagem de "Morte e Vida Severina" do TUCA. Vi Carlito bêbado cambaleando pelas ruas do centro de São Paulo, no começo dos anos setenta. Desesperado com as incertezas do destino da irmã militante antes da anistia. Eufórico porque conseguiu trazer a filha do Carlitos (o original) para o Brasil. Frustrado porque não conseguiu trazer a militante Jane Fonda. Virou carne e unha com o Henfil até a morte deste. Henfil tinha o Betinho no exílio, Carlito a Dulce, precisava mais identidade? Precisava. Henfil estava procurando alguém para ajudá-lo quando veio para São Paulo, um office-boy bem esperto que pudesse se desenvolver em assistente. Carlito apresentou seu filho Maurício (hoje jornalista que herdou o maior bem do pai, a indignação) adolescente de 15 anos.
Um dia em 76, fiquei desempregado. Procurei Carlito que estava na Globo. Foi ele que me deu o endereço da Praça Marechal onde fui recebido pelos companheiros Luiz Fernando Mercadante e Paulo Patarra. Desde então pude acompanhar o Carlito mais de perto. Trabalhamos inclusive na mesma casa por muitos anos, na Rua Dr. Gabriel dos Santos. Ele com sua equipe no térreo e nós do Globo Rural no andar de cima. Descobri o Carlito pobre, anos a fio com as mesmas roupas, o mesmo blazer xadrez. Suas vaidades eram mais sofisticadas de que a aparência.
Na Rede Globo teve papel e flores e xerox para mandar seus infinitos recados. Parecia que ele só fazia isso, o que não é verdade. Aqui ele bolou projetos memoráveis como o "Futeboys", o "SP 2000" e "O Corinthians vai ser campeão". Este é bom lembrar em detalhes. Era 77. O Corinthians estava 23 anos em jejum no campeonato paulista. Carlito (são-paulino de berço) imaginou uma competição onde entrassem só times chamados Corinthians. No final tinha de dar Corinthians. O campeonato não teve importância em si. Mas a Globo martelou, dia e noite, que "o Corinthians vai ser campeão!" Ao final do campeonato verdadeiro (quem não se lembra?) o Corinthians foi campeão com o gol de Basílio contra a Ponte Preta.
E o bom humor? E as brincadeiras? Uma vez estávamos em Belo Horizonte e resolvemos ir jantar em Ouro Preto. Lá pelas 2 da madrugada entramos de volta no hotel onde morava o zagueiro Djalma Dias, então atuando no futebol mineiro. Carlito, sacana, pegou sua chave e deu o seguinte recado para o porteiro. "Olha, o Djalma Dias pediu para chamar ele às quinze para as cinco porque o treino vai começar cedo, anote aí." Outra vez, numa festa em que estávamos, entrou uma moça bonita e muito chata, reclamando de dores pra todo lado. Carlito anunciou que tinha um chá excelente para esses casos: o chá de minhápica. A risada foi geral. A moça, acho que não entendeu até hoje. Outra de festa (eu não vi, foi ele que me contou e faz muito, muito tempo). Era aniversário da Marta Suplicy e ela fez uma reunião para algumas pessoas. Carlito, muito amigo da família, foi convidado. Lá pelas tantas ele telefonou para a aniversariante. "Olha, vou chegar atrasado porque ainda estou numa reunião aqui no sindicato de São Bernardo. Aliás, o pessoal quando soube que era seu aniversário resolveu ir também e já estão providenciando 2 ônibus." Por alguns anos Carlito redigiu a coluna "Tempos Modernos" na Revista Imprensa onde acabou, em vida, virando nome de prêmio. A um dos artigos (junho de 91) deu um título estupendo (nos anos de chumbo teria sido censurado para dizer o mínimo): "Matei um general e não gostei". Falava do general progressista Miguel Costa, principal comandante da coluna Prestes. Carlito levou o homem a um programa de TV onde foi tão elogiado que não suportou a emoção e teve um infarto fulminante. Acho que Carlito nunca fez ou disse algo sem graça, mesmo as mais dramáticas.
O Carlito e a saúde pública dá um livro. Quando a aids começou a se espalhar ele foi ousado para o tempo. Pegou a figura do nosso conhecido passaralho (desenhado pelo Henfil) e criou a palavra: "Cuidaids!" No pé da página as frases variavam. Repetir algumas delas neste ano em que a ONU anuncia 70 milhões de mortos vítimas da doença nos próximos 20 anos é uma homenagem a Carlito: "Meta o pau na camisinha"; "Moita é Morte"; "A picada do fim"; "O melhor preservativo: comidinha caseira"; "Amai-vos uns aos outros (com camisinha)"; "Abaixo o apartAids!".
A história de sua saúde pessoal, ele que era um pau-de-virar-tripa de tão magro, mostra o gigante que foi ao abandonar definitivamente o álcool. Ele comemorava a data todo ano mandando bilhetes aos amigos. Carlito não deixou o álcool por causa do processo de auto-destruição em que estava se perdendo. Sua razão estava nos outros: "Percebi o mal que estava fazendo exatamente para as pessoas que eu mais amo: minha mulher, meus filhos e meus amigos." Verdade. Por mais que soubesse pensar e viver o social, tinha o apego aos parentes. O pai, Seu Petico, os 5 filhos, a primeira neta, Olívia, e depois os outros netos. Com mulheres foi de muita sorte, em momentos diferentes. Teve Santa Maria Helena, mãe dos filhos, e teve Santa Teresa. Dizem que houve uma certa Gilda, nos tempos da II Guerra, quando era jovem sargento da aeronáutica servindo contra o nazi-facismo, em Natal…
É Carlito que tem de terminar este texto. Num manifesto ao (e para o) grupo de teatro "Athos", ele escreveu este parágrafo: "Dentre as "famosas últimas palavras" ditas por gente ilustre, evidentemente antes de bater com as dez, gosto muito da de Prometheu, que se despediu com um lacônico "Resisto".
* Humberto Pereira é jornalista
Publicado no Jornal Unidade (Sindicato dos Jornalistas de SP)