HISTÓRICA RECENTE – DEZ ANOS DO MOVIMENTO NEGRO – 1988

Hamilton Cardoso

O ano de 1978 foi um divisor de águas para o movimento negro porque revelou à sociedade um novo negro. É, portanto, divisor de águas também para a sociedade.

Lutas de Classes Internas

Foi uma data memorável, o dia 13 de Maio de 1978. O presidente do Clube 28 de Setembro, Frederico Penteado, começou a suar quando faixas e cartazes, questionando a abolição da escravatura em São Paulo e denunciando a brutalidade policial, foram erguidas no Largo do Paissandu diante da estátua da Mãe Preta.

A solenidade com autoridades visava comemorar o dia 13 de Maio. O inusitado da situação tomou autoridades e policiais incompetentes para impedir a leitura da primeira carta aberta à população, fazendo um balanço dos mortos pela Rota e denunciando a violência policial. O governo da época era de Paulo Maluf.

No mesmo período, os movimentos negros perderam uma batalha, nas plenárias do Comitê Brasileiro de Anistia. A palavra de ordem “Anistia Total, Ampla e Irrestrita e revisão das penas dos presos comuns” foi cortada pela metade. À sociedade restou apenas refletir sobre as confissões sob torturas realizadas pelo DOPS. As delegacias de bairros e seus torturadores continuaram impunes.

Casa Grande e Senzala

O ingresso de negros militantes no mundo dos brancos militantes não foi um mero fenômeno sociológico. Nem foi determinado pela subjetividade das táticas políticas. Foi conseqüência do real. Do ponto de vista das grandes massas populares, a lógica do gueto é esdrúxula enquanto instrumento da política. Elas movem-se para frente; procuram expandir-se no espaço, enquanto são comprimidas pela opressão e a exploração, opõem se ao gueto.

Não é à toa que as elites brasileiras comemoram, neste ano, o centenário da abolição, que não foi fruto do arbítrio pura e simplesmente, mas também resultou das pressões do escravo que ajudou a inviabilizar o escravismo. A luta travada pelo escravo contra a escravidão transformou-se em luta por cidadania, quando livre. Por isso não é correto pensar nos movimentos negros a partir do momento em que o opressor, homem ou mulher branca ou o explorador burguês, o reconheceu como fato político. Inviabilizado pela alienação branca, já existiam praticando a luta da política do possível.

Podemos identificar duas grandes tendências de movimentos negros na história: o de massas e o de elites. O primeiro prosperou nas senzalas; o segundo na Casa Grande. Na senzala contestava a chibata e o trabalho forçado; na Casa Grande visualizava o poder. Os heróis negros mais reconhecidos pelo mundo branco prosperaram nas Casas Grandes, muitos deles mestiços genéticos ou culturais, como Xica da Silva, Luiz Mahin, André Rebouças, José do Patrocínio. Suas lutas políticas só ganharam vigor quando se inspiraram nas culturas políticas, inclusive das senzalas. Quando simplesmente racializaram a luta foram submetidos ao isolamento ou perderam a expectativa de poder. Sem conexão com as senzalas, porém, suas histórias perderam-se no processo de branqueamento da sociedade brasileira.

Os heróis das senzalas, no entanto, só ganharam força quando buscaram dar ao vigor das culturas negras uma nova noção de política e poder na sociedade. Negros ou mestiços, e até brancos, foram enterrados na história e pela história dos seus protagonistas brancos, quando não aderiram a lógica da Casa Grande. É o caso de Zumbi ou Preto Cosme, os Malês, ao contrário de Henrique Dias ou Ganga Zumba. De qualquer forma os heróis da senzala sempre tiveram, em algum momento, a contingência de negociar o poder, ainda que das suas vidas ou morte na sociedade.

Sua maior insuficiência era, quase sempre, em relação à manipulação das contradições da sociedade colonial controlada pelos brancos em expansão. Sua grande contribuição, no entanto, é o fato de jamais terem cedido às teses racistas de se criar um país negro ou a partir desta ótica. Em Palmares foram encontradas estatuetas cristãs e os Malês combatiam os cristãos, fossem brancos ou negros. Os negros das senzalas atuaram em todas as revoltas populares do país e mesmo como soldados nas guerras das elites. Sempre incluíram brancos nas suas lutas por liberdade: como soldados e como generais. Antônio Bento e os Caifazes foram alguns deles. Assim é, até hoje, seja nas escolas de samba, no candomblé ou nas greves do ABC.

Movimento Real

É verdade que os movimentos negros vistos da Casa Grande foram pouco vigorosos neste século, no Brasil. O iceberg negro apresentou duas pontas principais e outros pontos que marcaram esta história. As duas faces principais foram a Frente Negra Brasileira e o Movimento Negro Unificado.

Outras delas foram o Teatro Experimental do Negro, a imprensa negra do início do século e muitas entidades negras criadas no decorrer dos últimos cem anos. Em geral estes movimentos eram formados a partir de negros que deixavam a senzala e ingressavam no mundo dos brancos, tanto do ponto de vista econômico como cultural. São movimentos de reação ao racismo.

Há outros movimentos tão reais e muito mais vigorosos, que, na verdade, pressionavam a Casa Grande gerando a ideologia negra contestatória. São movimentos culturais negros de massa que incluem desde as Casas de Minas do Maranhão, os candomblés da Bahia, as escolas de samba do Rio Janeiro e São Paulo, as congadas, moçambiques e outros agrupamentos negros que sempre comemoram a libertação dos escravos mas que, hoje, por meio dos pagodes, blocos baianos ou carnaval de rua, verbalizam críticas à situação social brasileira.

Eles jamais voltaram às suas origens culturais exatamente porque são os produtores da cultura popular: é o movimento dos trabalhadores negros. Jamais viverão a contradição teórica raça e classe porque são o que são: a alma, o espírito e a matéria-prima do proletariado.

Este movimento real inclui mocinhos e bandidos das classes trabalhadoras e é formado por migrantes que vão do campo para a cidade ou do Norte e Nordeste para o Sul. Ou então negros que, com muitos esforços ingressam na classe operária, são trabalhadores. Seus integrantes não têm vergonha de trabalhar na Casa Grande, onde, ao limpar banheiros ou aparar jardins, conspiram contra as culturas das elites. Nas madrugadas. Este movimento definiu o perfil cultural do país do futebol, do samba e da cachaça: um país negro, chamado Brasil.

Este mesmo movimento, afinal, com seus operários e operárias deu à luz ao movimento negro pós 1978, que, de certa forma, começou a combinar o vigor da luta cultural e impor novas noções de política à sociedade. Ele, neste momento, se encontra e procura criar uma nova síntese ao lado de milhares de lideranças brancas com noções mais universalizadas do país e que se defrontam com a mesma indagação dos movimentos negros de 78: o que fazer no dia 13 de Maio, quando se comemora a abolição da escravatura no Brasil? Agora, o centenário da abolição.

Certamente esta indagação precisa ser respondida pelo PT e seus integrantes. Afinal há petistas hoje capazes de verbalizar noções de política para a Casa Grande e outros que as verbalizam para as senzalas. Tudo é uma questão de opção. Mesmo porque há uma nova conspiração em movimento. Axé.

Hamilton Cardoso é jornalista. Milita no Movimento Negro Unificado (MNU) e é filiado ao PT.

Fonte: Teoria e Debate, nº 02, 15 de março de 1988. Acervo: CSBH/FPA.

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