HISTÓRIA DE LUTA E DA MILITÂNCIA NEGRA – 2001

Carlos Porto

Flávio Jorge Rodrigues da Silva

Uma extensa programação de músicas, filmes, debates, minisséries, documentários, shows, programas especiais foi planejada pelo governo federal e pelas grandes empresas de comunicação, principalmente a Rede Globo, para comemorar os 500 anos de descobrimento do Brasil.

Uma programação que pretendia escamotear uma história perversa que começou com a chegada de Pedro Álvares Cabral e suas caravelas no extremo sul da Bahia, em 22 de abril de 1500.

O invasor, na certeza de sua pretensa superioridade étnica e cultural e em busca de meios que tornassem sua vida mais fácil, escravizou primeiro um povo, os indígenas, que já habitavam estas terras. Em seguida voltou seus olhos para os povos que habitavam um outro Continente, o africano; uma base territorial para o suprimento do trabalho escravo no Brasil. Esta dupla exploração expropriou e destruiu quase que totalmente grandes civilizações indígenas. De forma cruel e sistemática se utilizou da força de trabalho dos africanos escravizados. Garantiu ao invasor poder político e econômico que se estabeleceu em nosso país a partir de 1500 e influenciou não só o futuro dos povos indígenas e negros mas do Brasil, durante os 500 anos seguintes.

Procurando mostrar este outro lado da história do “descobrimento”, nos organizamos no Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil: Outros 500, para nos contrapormos a grande festa que estava sendo planejada.

A data maior da grande festa chegou: o dia 22 de abril de 2000, na cidade de Porto Seguro, no Estado da Bahia. Ela era para poucos! Organizados no Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular, mesmo com as dificuldades de se articular, por problemas financeiras e de convivência de diferentes movimentos, grupos e entidades, de vários Estados e cidades do país, jovens, mulheres, negros, indígenas, sindicalistas, sem tetos e sem terras, aos milhares, em caravanas também se dirigiram para Porto Seguro e Cabrália para, por meio de conferências, caminhadas e diversas proposições de atividades, questionarmos a comemoração oficial.

O que lá aconteceu foi contado pelos meios de comunicação que, talvez, envergonhados com o que viram, mostraram para o Brasil e o mundo os fatos ocorridos no sul da Bahia. A partir dos parâmetros de segurança estabelecidos pelo governo federal para as comemorações oficiais e executados pelo governo da Bahia, um forte esquema policial foi montado nas estradas para barrar as caravanas dos Estados.

Em Porto Seguro e Cabrália, índios, negros, jovens, sindicalistas, sem tetos, sem terras, parlamentares foram recebidos com cacetetes, bombas e muita violência da polícia baiana. Foram muitos os feridos e cerca de 140 pessoas foram presas. Nenhuma novidade: já vivenciamos fatos como esses durante os 500 anos que a oficialidade pretendia comemorar.

A festa dos milhões que o governo federal pretendia realizar foi um fracasso e a farsa dos 500 anos foi desmascarada!

Os militantes do Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular cansados mas orgulhosos voltaram para suas casas. Atingimos o nosso objetivo, como afirmou a nossa senadora Marina Silva em um brilhante pronunciamento no Senado, após os episódios no sul da Bahia: “… mostrar um outro Brasil. O Brasil por dentro. O Brasil de uma caravela que navega e que, um dia, chegará a um porto seguro. Não o porto seguro das oligarquias e das elites brasileiras; o porto seguro que os índios, os negros e os brancos, homens de boa vontade, hão de construir …”.

A participação da militância negra do PT Grande parte da militância negra que participou do Movimento de Resistência Indígena, Negra e Popular – Brasil: Outros 500 é filiada ou simpatizante do Partido dos Trabalhadores. É parte da história de um povo que tem demonstrado um vigor e uma capacidade heróica para desafiar e derrotar as políticas para seu extermínio implementadas pelas elites brancas.

Uma história na qual foram utilizados inúmeros instrumentos e formas de luta e hoje, como continuidade da tradição de rebeldia e insubmissão iniciadas nos quilombos, volta a emergir como sujeito político, rompendo o véu e destruindo a invisibilidade que as elites brasileiras tentaram inutilmente impor ao povo negro.

No Partido dos Trabalhadores, a partir da compreensão de que o racismo não é unicamente um problema dos negros e negras mas sim de toda a sociedade brasileira, desde sua fundação começamos a olhar a prática partidária como mais um caminho na luta anti-racismo.

Nestes 21 anos de PT, além dos 500 anos, em vários outros momentos nossa intervenção foi marcante. Em 1988, por ocasião do Centenário da Abolição, o sempre presente mestre e companheiro Florestan Fernandes afirmava que “… No PT não podemos manter as posturas das comemorações oficiais. Porém, também não podemos fazer a celebração proletária da abolição. Esta implica em transcender à ordem existente, destruí- la, criar uma nova ordem social, libertária e igualitária. Não é suficiente, pois, dizer não às comemorações oficiais, desmascará-las. É necessário refletir a fundo sobre a realidade atual e propor ao PT que ele dê as mãos aos negros e a todos que exigem uma abolição que se atrasou historicamente e deve ser feita dentro do capitalismo, contra ele, ainda na era atual”.

Esta afirmação faz parte de um texto publicado por Florestan Fernandes na revista Teoria & Debate, número 2, março/1988. Contribuiu para uma reflexão sobre a importância da intervenção da militância negra naquela data, que teve como conseqüência uma ampliação da nossa organização e mobilização; interferiu no debate proposto pela oficialidade e pela academia; obrigou o PT a se posicionar sobre o centenário, na forma proposta por Florestan e pelo movimento negro brasileiro.

Em 1995, a festa foi nossa! Com a comemoração do tricentenário da imortalidade de Zumbi dos Palmares, destacou-se um vigoroso ingresso da temática racial no espaço público nacional e internacional. Nunca se discutiu tanto a questão racial. Realizamos uma das mais importantes atividades do movimento negro contemporâneo: a Marcha contra o Racismo, pela Igualdade e pela Vida, que reuniu em Brasília, no dia 20 de novembro, cerca de 30 mil militantes de todo o país.

O PT conferiu ao seu 10° Encontro Nacional o caráter de homenagem aos 300 anos da imortalidade de Zumbi dos Palmares. Neste ano conseguimos aprovar a criação da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo do PT.

Para além destes momentos, no cotidiano de nossa presença partidária, temos procurado ao longo destes 21 anos comprometer o Partido dos Trabalhadores com a transformação das condições de trabalho e de vida da população negra e com o fortalecimento da luta contra o racismo, em nosso país e em todo o mundo.

Temos a compreensão de que os êxitos conseguidos são mais por conta da capacidade de intervenção e articulação dos negros e negras do PT, do que pelo entendimento do conjunto da militância partidária de que a questão racial negra é fundamental para a compreensão e transformação da sociedade brasileira.

Superar esta compreensão é o principal desafio do PT daqui para a frente. É necessário que o PT por inteiro, e não apenas a sua militância negra, entenda a absoluta impossibilidade de transformações estruturais na sociedade brasileira sem o tratamento devido da questão racial. Que é impossível a construção da cidadania do povo negro nos limites da sociedade atual. E que o combate ao racismo é estratégico seja na construção de um novo modelo de desenvolvimento, como para pensarmos uma sociedade futura, um outro Brasil, multirracial, plural, democrático e socialista.

Parabéns a militância negra, aos companheiros e companheiras do PT, pelos nossos 21 anos de luta!

Carlos Porto, secretário nacional de Combate ao Racismo do PT.

Flávio Jorge R. da Silva, membro do Coletivo da Secretaria Nacional de Combate ao Racismo e Coordenador de Mobilização do Diretório Nacional do PT.

Fonte: PT Notícias, nº 100, fevereiro de 2001, p.15. Acervo: CSBH/FPA.

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