Suas pequenas gotas de literatura carregavam os piores venenos. Por isso mesmo, nem sempre ganhava o aplauso de leitoras e leitores.

Suas pequenas gotas de literatura carregavam os piores venenos. Por isso mesmo, nem sempre ganhava o aplauso de leitoras e leitores.

A língua franca de Carlito Maia

Carlito Maia foi um mestre dos aforismos. Anjo torto da política, cultivou a arte de falar numa única frase o que uma legião de autores não consegue dizer em um livro.

Encontrei-o pela primeira vez no PT, partido que amou de paixão. Nunca tive com ele uma relação maior de amizade. Ouvia dizer que era frágil de saúde. Nunca acreditei. Talvez enganado pela destreza de sua língua, sempre o vi como um forte. Energizado. Sofisticado. Mesmo quando fincava seu verso nas fronteiras de um vulgar jogo de palavras.

O Linha Direta começou a publicar pequenas frases de Carlito a partir do número 35, em abril de 1991. Não falhou uma edição. Marcou as páginas do boletim com sua capacidade de portar-se como um espelho, côncavo e convexo, ao mesmo tempo.

Ligou o passado ao futuro como na resposta ao enigma: “Brasil? Fraude explica”. Foi duradouro: “Breve, polícia pós-Tuma”. Libertário: “Eles dão voz de prisão. Nós de liberdade: teje livre”. Abusado, prenunciou um dos chutes mais fortes da nossa história: “Faça Collor dar um passo à frente: dê um pé na bunda dele”. Sem se preocupar em aumentar o nervosismo dos mercados, cutucava sem pudor: “Confusão na economia? Eles são bancos, que se entendam”.

O poder era como um bibelô a ser derrubado. Juntamente com a estante, claro: “No jogo de xadrez, torço para que o peão coma a rainha, derrube o rei e proclame a monarquia”. Em suas travessuras, nunca pediu licença nem desculpas, pois ininteligível era o mau humor. Absurdo era não rir do politicamente correto. Ou, pelo menos, de sua pretensão de não provocar o riso.

Carlito parecia divertir-se com isso. Como em junho de 1992, no Linha Direta 91, quando disparou um artigo sobre a Tereza Collor, aquela que “era um caso de tesão nacional urgente”. O boletim recebeu e publicou cartas ácidas, recheadas de insultos.

Nas conversas que tive com ele, transpirou surpresa: “são infiltrados, não podem ser do PT”, disse-me repetidamente. Estava errado. Seus críticos eram feitos da mesma matéria que ele, Carlito Maia, petista de corpo e alma.

Contra-atacou, então, com mais poesia. O que sorria para a vida, agora gargalhava para as ideologias: “O PT é composto por seres humanos, com todos os defeitos e virtudes: xiitas e xaatos, xiiques e xuucros, xaaropes e xeeretas”.

Suas pequenas gotas de literatura carregavam os piores venenos. Por isso mesmo, nem sempre ganhava o aplauso de leitoras e leitores.

Instigou-nos, porém, a buscar os ângulos inesperados para se olhar o mundo. E, antes de tudo, com sua língua franca, ensinou-nos que o humor é corrosivo, traiçoeiro, debochado, infiel e, fundamentalmente, suprapartidário.

*Glauco Arbix é ex-editor do boletim Linha Direta (1990-1992), professor do departamento de sociologia da USP.
 

Publicado no Jornal PT em Movimento, edição 117º / cultura