"Um dia após o golpe tentaram incendiar a minha casa, mas não me encontraram, porque estava em Galiléia, fazendo aquele filme, Cabra marcado para morrer. De lá, conseguimos fugir para dentro das matas e, no dia seguinte, conseguimos chegar até Recife".O assassinato de João Pedro aconteceu no dia 2 de abril [de 1962], às 5h40min da tarde, numa segunda-feira. Eu tomei conhecimento só no dia seguinte, na parte da manhã…

"Um dia após o golpe tentaram incendiar a minha casa, mas não me encontraram, porque estava em Galiléia, fazendo aquele filme, Cabra marcado para morrer. De lá, conseguimos fugir para dentro das matas e, no dia seguinte, conseguimos chegar até Recife".O assassinato de João Pedro aconteceu no dia 2 de abril [de 1962], às 5h40min da tarde, numa segunda-feira. Eu tomei conhecimento só no dia seguinte, na parte da manhã… Depois de um mês da morte de João Pedro, recebi um convite de João Goulart, presidente da república, para depor na Comissão Parlamentar de Inquérito, em Brasília. Antes, fui ao Rio de Janeiro e fiquei hospedada na casa da doutora Regina Albuquerque, em Copacabana. Ali participei de manifestações do 1º de maio, um grande movimento no qual os estudantes me receberam, todos em pé, com a faixa vermelha, simbolizando o sangue de João Pedro. Os operários também fizeram passeata, com faixas de protesto contra o assassinato de João Pedro. O maior protesto aconteceu no Sindicato dos Bancários. No dia 2, cheguei em Brasília, depus na CPI e o presidente João Goulart me disse: "Elizabeth, assuma o lugar de João Pedro, em protesto contra o assassinato. Para a manutenção dos seus filhos, vamos dar uma bolsa de estudo para o seu filho mais velho, o Abrahão Teixeira, que já fez a 4ª série, e vou a João Pessoa ser o padrinho de sua menina mais nova, que tem três meses." Ele veio a João Pessoa mas não foi possível cumprir a promessa, porque houve um encontro de latifundiários, de usineiros e a situação ficou muito delicada. Voltando, assumi o lugar de João Pedro para o que desse e viesse. Estava disposta a morrer. Várias vezes fui presa, e aquele coronel Luiz de Barros, da Polícia Militar, dizia: " Tenha vergonha, Elizabeth, vai tomar conta de seus filhos", e eu respondia: "Olhe, eu não pedi para estar hoje nesse lugar, não. Foram vocês que me deram esse lugar quando atiraram no peito do meu marido." Ele mandava dar um salva de tiros no meu pé. Um dia, apareceram duas caminhonetes da polícia em casa, deram uma salva de tiros nos meus pés. Fizeram dois pelotões de polícia e mandaram eu passar no meio. Quando passei, atiraram só na terra. Mandaram eu entrar na cabine de uma caminhonete com três policiais: um tenente, um sargento e um soldado. Eu ainda disse para o tenente: "Deixe de ser covarde e bandido. O senhor acha que eu vou me assentar ali…" Mas acabaram me levando para João Pessoa. O advogado já estava me esperando e protestando. Quando havia qualquer conflito de terras…

[…] Também me ofereciam dinheiro para eu mudar, abandonar a luta. Enquanto passava no meio do pelotão atirando, o usineiro Luis Ribeiro Coutinho, apertando minha mão, arroxeando minha mão, no meio dos policiais, dizia: "Muda e vamos já para o escritório, muda, Elizabeth", eu disse: "Para o escritório o quê? O senhor tem terra para os homens que estão despejados?" Na minha casa tinha uns dez ou doze despejados. Todos com foice e enxada, se eles me matassem, morriam também. Foram embora. Eu preferiria não ter nada para comer, até o suicídio, do que receber dinheiro. Um dia após o golpe tentaram incendiar a minha casa, mas não me encontraram, porque estava em Galiléia, fazendo aquele filme, Cabra marcado para morrer. De lá, conseguimos fugir para dentro das matas e, no dia seguinte, conseguimos chegar até Recife. Depois, em João Pessoa, procurei notícias dos meus filhos, mas acabei sendo presa. Passei três meses e 24 dias na prisão, no Agrupamento de Engenharia. O major queria me enquadrar, perguntava sobre caminhonetes que supostamente chegavam em casa à meia-noite, cheia de armas que vinham de Recife. Eu dizia que aquilo era uma injustiça, porque desde a morte de meu marido eu fechava a porta e não abria para ninguém. Armas que tem são eles, que mataram João Pedro. E não só ele, mas também o companheiro Alfredo Nascimento, que foi assassinado barbaramente pelo capa de aço da usina Santa Helena. Antes de João Pedro Teixeira, o companheiro Nezinho da fazenda Caruçu. Antes de João Pedro, outros companheiros já tinham sido assassinados e muitos com o golpe militar. Ele não conseguiu me enquadrar e fui liberada.

[…] O golpe no campo foi o maior terror, porque muitas famílias foram jogadas para fora das propriedades e migraram para São Paulo, para o Rio de Janeiro e até mesmo para as cidades do Nordeste. A maior contribuição do golpe foi para a miséria do campo. Onde está o homem do campo? Na cidade, na periferia, os filhos comendo lixo, morrendo de fome, marginalizados. […] Depois do golpe, os fazendeiros, os latifundiários perseguiram os camponeses e os sócios da Liga Camponesa, muitos estão desaparecidos. Quando fui presa, chegaram dois latifundiários armados para me matar. Papai fugiu de casa, ficaram a mamãe e a empregada. Eles disseram para mim: "Fale agora aí, comunista sem-vergonha, não pense que vai ficar assim, não", com a arma na mão. Minha mãe tomou a frente, pediu pelo amor de Deus para não me matarem, porque um era compadre dela. Eu disse que a dor que eu sentia, ali, naquele momento, era estar desarmada, porque se eu estivesse armada… Eles perguntaram o que eu faria, e eu respondi: "Matava, já tinha matado, covarde, porque vocês são covardes. Se vocês querem me matar atirem e me matem, não vai dizer palavra mais comigo, porque isso prova que vocês são covardes, me chamando de comunista, sem-vergonha". Isso aconteceu com muitos companheiros, muitos desapareceram.

[…] No momento que houve o golpe eu fugi para o Rio Grande do Norte. Lá fiquei com a identidade falsa, com o nome de Marta Maria da Costa. Fui viver lavando roupa na cidade de São Rafael e adoeci. Apanhei uma infecção, fiquei muito doente, e fui parar no hospital. Quando saí, fui alfabetizar crianças. […] Logo no início da década de 1970, entrei em contato com o presidente do Sindicato Rural e fui logo convidada para assumir a presidência. Mas participei de apenas das reuniões … […] Porque ninguém sabia que eu era a viúva de João Pedro Teixeira. Só o companheiro presidente do sindicato, que tinha o apelido de Nenê. […] Saí da clandestinidade em 1981, quando o cineasta Eduardo Coutinho foi para João Pessoa, procurar por mim. Conhecia dois estudantes do Rio Grande do Norte, de São Rafael, que todos os finais de ano iam para João Pessoa. Por intermédio deles consegui localizar meu filho Abrahão, que trabalhava como jornalista em Patos, na Paraíba. Assim, o menino que tinha fugido comigo para o Rio Grande do Norte, Carlos Teixeira, foi até Patos conhecer o irmão. Então eu disse para levar o meu retrato, senão o irmão ficaria desconfiado. Quando chegou no escritório dele, Abrahão disse: "Não estou acreditando que esta mulher está viva, porque as notícias que se têm é que foi morta e carbonizada." Aí, ele mostrou o retrato. No dia seguinte, chegou Eduardo Coutinho na casa do Abrahão e os dois vieram me procurar. Foi uma emoção tão grande. Abrahão logo me convidou para morar com ele. Resolvi tudo com os pais das crianças que eu alfabetizava, e depois de uma semana já estava morando em Patos.


Trechos extraídos de entrevista a Alípio Freire e Hamilton Pereira na Revista Teoria e Debate, n° 30,(4° trimestre de 1995). Clique aqui para ler a entrevista na íntegra.