Gevanilda Gomes dos Santos
A revista Raça vem tendo grande sucesso editorial. Ela abre caminho no Brasil para a via do black is beautiful, ou seja, para a via da ascensão social para negros de classe média, que se expressa no plano do consumo.
Muito se fala da chamada invisibilidade do negro nos meios de comunicação de massa da sociedade brasileira. Mas, o que se quer ver e o que não se quer ver a respeito das relações sócio-raciais brasileiras?
Essa resposta pode revelar o alto grau da miopia nacional diante do racismo que vem atingindo sucessivas gerações de negro(a)s. No Brasil, não se quer ver o negro na situação de pobreza e miséria; se quer vê-lo bem-sucedido, à imagem e semelhança do branco. Na sociologia dos anos 50, tal comportamento recebia o nome de ideologia de embranquecimento ou mito da democracia racial. Tudo estava articulado no plano das idéias para que a imagem do negro, ou seja, sua representação social, emitisse uma mensagem de bem-estar, alegria e satisfação com o contato pluriracial.
Às vezes, o espetáculo da cordialidade não saia a contento, principalmente quando o Brasil se fazia representar no exterior. Ele era reconhecido lá fora por uma imagem impregnada de exotismo que, na maioria das vezes, se confundia com uma representação estereotipada da cultura brasileira. Geralmente isso ocorria quando era apresentado qualquer aspecto da cultura afro-brasileira, como o carnaval, a mulata exportação, o ritmo dos tambores etc. Nos EUA, as contradições sócio-raciais são abertas, conflitantes e declaradas. Por isso, a nossa mensagem de cordialidade sócio-racial parecia falsa.
O padrão internacional de cultura, destacando-se o norte-americano, sempre teve forte predominância no gosto e na estética nacional. Tal influência atinge a todos os grupos e classes sociais. O maior impacto ocorre com os que estão em ascensão social, pertencentes às chamadas classes médias. Estariam os negros imunes a essa influência na medida em que o racismo atua como mecanismo de exclusão e desigualdade sociais? Há alguma influência da imagem do negro norte-americano sobre o brasileiro?
As relações sócio-raciais também são afetadas por esses processos de influência e dependência. O lançamento bombástico da revista Raça Brasil exemplifica esse contexto ao evidenciar dois fatos importantes. Primeiro, que o sucesso do lançamento de uma revista afro-brasileira depende de grande investimento financeiro. O sucesso da revista Raça superou as expectativas e confortou as frustrações de inúmeras tentativas da imprensa negra, tanto no passado como no presente. Existem duas revistas cariocas, a Azzeviche e a Black People, e duas revistas paulistanas, a Swing Arte e Cia e a Agito Geral. Todas no mesmo estilo editorial, embora com investimento financeiro de pequeno porte. Segundo, o lançamento, além de significar uma abertura no mercado editorial, abriu também uma via política de integração sócio-racial dentro da dinâmica do consumismo. A Raça Brasil, como afirmou Octavio Ianni em debate na Unicamp diante dos próprios articuladores da revista, se insere no movimento negro brasileiro abrindo caminho para a via política do black is beautiful. Uma via individual de ascensão social para negros da classe média, que se realiza no plano do consumo. Via de regra, tal proposta política evita fazer críticas ao racismo e supervaloriza o embranquecimento e a mestiçagem física e cultural. Nessa proposta, o próprio negro viabiliza a distribuição capitalista dos seus bens culturais. A dinâmica da dependência cultural também tem se alterado no decorrer das últimas décadas em decorrência das mudanças globais.
Hoje, as novas tecnologias e o consumo são fatores vitais para a expansão de uma economia globalizada. Industrializar a cultura e conquistar um mercado até então inexplorado é uma receita de sucesso. Às portas do século XXI aquelas distorções estereotipadas sobre traços da cultura negra já não fazem mais sentido. Estamos vivendo a etapa da globalização da economia e da mundialização da cultura, como afirma Renato Ortiz (1994). Agora, o que interessa ao grande capital é a produção, distribuição e consumo de bens e serviços em escala mundial, mas para tanto é necessário romper algumas barreiras ideológicas ou morais que têm a ver com a diversidade da cultura. Tudo isso tem que estar na dinâmica do consumo capitalista. Os bens simbólicos representativos da questão da mulher, do negro, do homossexual também podem ser vendidos a quem quiser consumi-los. A possibilidade mercadológica para o black is beautiful foi construída a partir das décadas de 60 e 70. Fatores emergentes apontavam as contradições do sistema capitalista no tocante à exclusão do negro através do racismo. A política racial brasileira, norte-americana e sul-africana apontavam uma certa universalidade. Apesar da especificidade de cada modelo sócio-racial, o negro estava excluído socialmente. A partir deste período, vários fatores concorreram para mudar a representação do negro diante da sociedade e dos meios de comunicação de massa. Estamos falando da luta por direitos civis de Luther King, do movimento dos Panteras Negras e da liderança política de Malcolm X. Todos foram utilizados como estratégias diferenciadas de mudança no quadro segregacionista norte-americano. Estamos falando da ação política do movimento negro brasileiro para quebrar a ideologia do mito da democracia racial e revelar a sutileza do racismo a la brasileira, que esconde contradições de raça e classe. Estamos falando do crescimento da hegemonia política das forças que estiveram ao lado de Nelson Mandela contra o regime do apartheid. Tanto lá fora como aqui, ocorreu movimentação pela reconstrução da identidade social, política e cultural do negro.
A produção política de uma nova simbologia de caráter estético e comportamental foi rapidamente esvaziada em seu sentido crítico e substituída por uma produção mercadológica que abriu demanda para o mercado de bens simbólicos da cultura afro-americana e afro-brasileira, principalmente para o mercado da comunicação de massa, ou global, para usar um conceito mais atual. Só para citar alguns exemplos: o ritmo dos tambores, dos bailarinos, das cores e cantores do Olodum faz propaganda de banco, os esportistas do basquete norte-americano vendem inúmeras marcas de tênis e congêneres. Além do universo propagandístico, a cultura negra vende no mercado musical e cinematográfico. Nesse campo, temos sinais de grande visibilidade. Cabe verificar o quanto a nova imagem do negro norte-americano tem fortalecido a luta da identidade estética e política do negro brasileiro. Este fio condutor encontrou muita facilidade na relação de dependência cultural Brasil-EUA, principalmente quando o agente da mudança é o mercado.
A revista Raça surge com uma visão mercadológica de representação simbólica de uma nova imagem do negro(a), muito mais próxima da dos norte-americanos do que dos dados desconcertantes sobre a situação de negros(as) apresentados pelo IBGE. A revista Raça sugere com muita força a seu leitor, e mais enfaticamente à sua leitora, que é possível uma integração social sem conflito, na medida em que houver pouca visão crítica sobre a capacidade de integração do negro na sociedade de classe.
A publicação convida especialmente a mulher negra a embarcar no imaginário consumista da estética negra e à compra por poucos reais da mensagem ficcional de ocupar plenamente o espaço social. Quando os dados estatísticos estão revelando que a mulher negra ocupa a última posição social quando se classifica a população por sexo e raça. O chamado mercado de produtos étnicos, uma linha de cosméticos e embelezamento, vende recursos para se atingir a beleza negra americanizada. A busca e controle de novos mercados rentáveis provoca a quebra da censura moral que apontava o racismo como a grande barreira inibidora de investimentos econômicos na área da publicidade. Isso não significa que a sociedade tenha deixado de apresentar contradições sócio-raciais. Apenas confirma que a lógica do capital está investindo em áreas antes desprezadas. O que não podemos esquecer é que a vocação ao consumo é parcialmente realizada em uma sociedade em que a pobreza se alarga a cada dia. É importante relembrar que a maioria da população negra está fora dessa faixa de consumo. Essa parcela da população ninguém quer ver, ela sim está invisível para os meios de comunicação. Tudo o que é invisível é irreal. Portanto, enquanto não se demonstrar as desigualdades sócio-raciais não se admitirá o racismo. Admiti-lo é condição necessária para a sua desconstrução no plano privado e público.
Gevanilda Gomes dos Santos é socióloga, especializada nas relações sócio-raciais brasileiras e militante da Soweto – Organização Negra.
Fonte: Teoria e Debate, nº 35, julho de 1997. Acervo: CSBH/FPA.
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