Como imaginar, por exemplo, que o jornalismo possa ser concebido como um serviço social e público, se praticamente toda a atividade de comunicação, no Brasil, é monopolizada pelas empresas privadas?

Como imaginar, por exemplo, que o jornalismo possa ser concebido como um serviço social e público, se praticamente toda a atividade de comunicação, no Brasil, é monopolizada pelas empresas privadas?

A Ética do Jornalismo

Por Perseu Abramo

A distinção entre jornalistas e empresários da comunicação é real, na medida em que diferencia não apenas dois pólos opostos numa mesma relação econômica, mas também cidadãos inseridos em classes diferentes dentro de uma mesma estrutura social. A compreensão dessas diferenças e oposições é indispensável para a análise da natureza e do significado que a atuação da Imprensa assume na conjuntura. No entanto, freqüentemente essa análise pode ser prejudicada se se deixa perceber o caráter relativo da clássica oposição entre empregado e empregador da área de comunicação. E é exatamente no terreno da ética que a relatividade da oposição provoca os efeitos mais surpreendente e devastadores.

Não existe, de forma explícita ou consolidada, uma ética do jornalismo, enquanto atividade que engloba patrões e empregados, pelo menos não uma que seja universalmente reconhecida, aceita e acatada. Os jornalistas, após muitos anos de discussão, conseguiram formular um código explícito e formal de ética que – além da circunstância da sua incipiente vigência – contém duas falhas graves.

Uma é que está assentado sobre premissas no mínimo discutíveis. Como imaginar, por exemplo, que o jornalismo possa ser concebido como um serviço social e público, se praticamente toda a atividade de comunicação, no Brasil, é monopolizada pelas empresas privadas? Trata-se, evidentemente, muito mais de uma difusa e imprecisa aspiração conceitual do que a constatação, de uma realidade de fato.

A outra falha básica é que o código de ética é um instrumento de sanções que, embora feito por jornalistas, incide apenas na ação dos próprios jornalistas. A suposição implícita que está por trás dessa concepção é a de que o empregado da empresa jornalística tem, no processo de produção, controle sobre a natureza, a qualidade e o significado do produto final. Esse tipo de suposição talvez possa ter validade quando referida aos profissionais ditos liberais – médicos, advogados, arquitetos etc. – dos quais, historicamente nasceu a prática de elaborar e aplicar códigos de ética profissional. A situação é completamente diversa no caso de profissionais assalariados, submetidos à leis, às normas e às éticas das empresas em que estão empregados. O grau de controle que o jornalista tem sobre seu produto final é mais ou menos o mesmo que tem um metalúrgico sobre a decisão de fabricar um automóvel de luxo para benesse de minorias privilegiadas ou um ônibus para o transporte coletivo. O código de ética dos jornalistas, portanto, a priori e por exclusão, absolve os empresários de comunicação que, em última análise, são exatamente os autores e proprietários do produto final, isto é, da matéria jornalística.

Essa a contradição básica da ética do jornalismo, a questão que hoje em dia se coloca, contudo – e surgida principalmente, do exame, mesmo que perfunctório, de como a imprensa brasileira vem tratando um enorme conjunto de aspectos da realidade – é de saber até que ponto essa contradição é absoluta. Ou, em outras palavras, até que ponto a oposição empregado/empresário, na área de comunicação, vem se liqüefazendo e sendo substituída por uma identificação cada vez maior entre os dois pólos, consciente ou não, voluntária ou não? Em que medida os jornalistas vêm gradativamente introjetando a ética de suas empresas? Até que ponto os trabalhadores de comunicação vêm assumindo, por bem ou por mal, os valores ideológicos da classe social que é proprietária das empresas em que exercem sua atividade profissional? São questões que a própria categoria deve debater e responder.

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