"A gente torcia, mas existia algum temor, pela figura do Jango, de que a idéia estivesse certa mas a pessoa não fosse confiável".Eu torcia [pelo governo João Goulart]. Por exemplo, estava em discussão um projeto de reforma agrária na Câmara, do qual o Plínio era relator. A gente torcia, mas existia algum temor, pela figura do Jango, de que a idéia estivesse certa mas a pessoa não fosse confiável. Esse era o clima no meio em que eu vivia.

"A gente torcia, mas existia algum temor, pela figura do Jango, de que a idéia estivesse certa mas a pessoa não fosse confiável".Eu torcia [pelo governo João Goulart]. Por exemplo, estava em discussão um projeto de reforma agrária na Câmara, do qual o Plínio era relator. A gente torcia, mas existia algum temor, pela figura do Jango, de que a idéia estivesse certa mas a pessoa não fosse confiável. Esse era o clima no meio em que eu vivia. Até que o Carvalho Pinto se tornou ministro da Fazenda desse homem em quem nós não confiávamos – e ele era o nosso padrão de decência, de coerência etc. De certa maneira avalizou o governo Jango. Não só na nossa opinião, mas para muita gente conservadora.

Bom, os principais tópicos [do curso internacional de reforma agrária, feito em 1963 em Campinas] foram exatamente as experiências de reforma agrária de uma série de países, inclusive exposições ministradas por pessoas, técnicos, que participaram das reformas de países como Japão, Coréia, e um embasamento econômico bastante detalhado para que os participantes pudessem entender a influência da terra num processo de desenvolvimento econômico. Participaram 12 países latino-americanos. O Brasil tinha um grupo mais numeroso, composto por técnicos da Superintendência de Política de Reforma Agrária (Supra), que era o órgão encarregado da reforma agrária na época da Secretaria da Agricultura de São Paulo, principalmente da Assessoria de Revisão Agrária, do instituto gaúcho de reforma agrária, de alguns governos de estado como Goiás, que por meio da iniciativa dos kibutz de Mauro Borges tentava fazer alguma coisa na questão agrária e assim por diante. Os desdobramentos mais importantes foram, primeiro, a participação dos ex-alunos desse curso na elaboração do Estatuto da Terra. E, segundo, a semente da fundação da ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária). Sem se falar na realização do próprio curso, que, de alguma forma, legitimava, ou tecnificava, as idéias de revisão agrária que estavam no bojo das reformas de base do governo João Goulart.

[…] Nós, que tínhamos feito aquele curso, estávamos atentos porque, das reformas de base, a mais badalada era a reforma agrária. Havia o projeto do João Goulart na Câmara, cujo relator era o Plínio de Arruda Sampaio, mas se conhecia pouco sobre sua formulação técnica. Existia um projeto de lei que não chegou a ser explicitado porque dependia da mudança da Constituição para permitir o pagamento das desapropriações em títulos, já que a Constituição da época exigia o pagamento em dinheiro. Mas nós estávamos acompanhando. No dia 31 de março eu vi, me lembro muito bem, minha sala era na avenida Brasil, no prédio mais alto, os tanques descerem. Alguma coisa estava acontecendo. Então, houve um movimento militar no dia 1º, e no dia 9 saiu o primeiro comunicado da Junta, dizendo que a revolução tinha sido feita para acabar com a subversão e realizar as reformas democráticas. O Congresso continuou a funcionar, colocou em tramitação um projeto de reforma agrária chamado Projeto Badra, que era um horror, superconservador. Foi a nossa primeira reação. Nos juntamos para examiná-lo e mandar um telegrama aos generais, dizendo que era um absurdo, um retrocesso. Motivados por essa análise do projeto Badra nós começamos a nos reunir. Surgiu a idéia de preparar um projeto de reforma agrária e mandar para os generais de maneira a provocar ou testar, qualquer coisa. A partir de todo aquele ensinamento que nós tínhamos tido no curso e da experiência que nós tínhamos recolhido começamos a elaborar o projeto. Do grupo, eu era o único a conhecer a experiência de outros países. Viajei para Israel, Espanha, França e Itália; neste último, fiquei muito impressionado com os resultados concretos e políticos alcançados pela reforma agrária.

[…] Eu sei que fizemos um texto, um esboço de projeto de reforma agrária. Um rapaz muito brilhante, que tinha sido orador do Centro Acadêmico lá em Piracicaba, o José Drummond Gonçalves, rapaz católico, ligado a esse movimento de Igreja, se incorporou ao grupo. Ele era muito ligado ao pessoal da Consultec, a firma de consultoria do Roberto Campos. Uma tarde tocou o telefone e ele foi atender. Voltou e disse que era o Roberto Campos e que ele queria falar comigo. Ele me disse que estava encarregado de coordenar as reformas, inclusive a reforma agrária, e tinha tomado conhecimento de que nós estávamos com um anteprojeto. Convidou o grupo para se juntar ao grupo dele no Rio. Ninguém queria ir. Eu sugeri que escolhêssemos uma pessoa para ir e ficar como elemento de ligação. Eu fui o escolhido. O Ministério do Planejamento era no predião do Ministério da Fazenda. A primeira reunião aconteceu num domingo. Roberto Campos chegou de boné de marinheiro. Ele estava dando uma volta de iate na baía de Guanabara, parou ali na Praça XV, desceu e foi abrir a reunião do grupo de reforma agrária. Um mau começo. […] O grupo do Rio era um grupo de altíssimo nível. Tinha Garrido Torres, que foi presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e o Paulo de Assis Ribeiro, uma figura muito polêmica, mas de grande capacidade de trabalho, um gênio. Era o pé-de-boi da Consultec. O secretário era um sobrinho do Castelo, Julio Vianna, que tinha acesso ao tio, ia na casa dele a qualquer hora, ia ao Palácio. O fato é que apresentaram o primeiro projeto de lei no Congresso, uma bomba. No dia em que foi apresentado, o presidente da Sociedade Rural Brasileira declarou, em São Paulo, que tinham traído a revolução.

[…] O governo sofreu muito, houve brigas terríveis. Eu nunca me esqueço de quando De Gaulle veio visitar o Brasil. A residência oficial do presidente da República no Rio era o Palácio das Laranjeiras. Quando De Gaulle chegou, Castelo cedeu o palácio para ele. Tiveram de fazer uma cama especial. O presidente foi para o Copacabana Palace. Foi a primeira vez que dormi naquele hotel. Ele disse que o grupo não se dissolveria, e que continuaríamos a trabalhar. "Peguem um apartamento do meu lado, qualquer coisa estou ali." Diversas vezes ele saiu do apartamento dele e foi ao nosso discutir um caso qualquer. Um dia ele disse: "Está bem, vamos desapropriar os latifúndios, mas e o meu compadre do Ceará?" "Mas, presidente, que história é essa de compadre do Ceará?", perguntamos. O compadre do Ceará era uma figura que ele imaginou, uma pessoa que tem um latifúndio mas quer transformá-lo em empresa. No Estatuto da Terra havia quatro tipos de módulos: o latifúndio por dimensão, latifúndio por exploração, a empresa e o minifúndio. A empresa, que resultou, hoje, na figura da propriedade produtiva, está fora da desapropriação. O compadre queria recuperar o latifúndio dele, o que ele poderia fazer? Era um problema novo. O cara quer ser bonzinho, quer se converter, o jeito é dar um pedaço, uma parte. No Estatuto da Terra tem um artigo para o cara que quer fazer isso.

[…] Eu não acredito que [o compromisso do Castelo com] a reforma explique [o golpe dentro do golpe], muito embora ele tivesse tido atritos muito sérios devido à reforma com os principais articuladores do golpe, Carlos Lacerda, Bilac Pinto. Ele também teve problemas de família. O Castelo era um apaixonado pela mulher. São famosas as cartas que ele escrevia para a mulher, da Itália. Era dona Argentina Vianna, de Belo Horizonte. Os Vianna, na ocasião, eram os maiores industriais de adubo, em São Paulo, proprietários da firma Arthur Vianna. Toda grande firma de adubo tem uma grande clientela de fazendeiros. Por intermédio da família de dona Argentina esse pessoal pressionava muito o Castelo contra a reforma agrária. A ponto de terem obtido um compromisso de que o Estatuto não seria mandado para o Congresso antes de haver uma reunião em Minas Gerais, para discuti-lo. A reunião foi em Viçosa, que, naquele tempo, era uma cidade inacessível, sem telefone, estrada, nada. Foi uma arapuca. Nos botaram lá, cercados por latifundiários furiosos por todos os lados, para discutir uma coisa que já estava discutida. Ele resistiu, mas depois falhou na parte de execução.


Trechos extraídos de entrevista a Renato Simões na Revista Teoria e Debate nº 21 (2º trimestre de 1993). Clique para ler a entrevista na íntegra.