Por Kau Rocha

“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas”
(Carlos Drummond de Andrade)

 

Entrávamos no século 21 e, até aquele momento, tudo parecia continuar como antes: com grande influência no governo FHC, o baiano Antônio Carlos Magalhães detinha a hegemonia no Congresso Nacional e controlava as ações do então governador do Estado, César Borges; da Assembleia Legislativa, do Poder Judiciário e da mídia da Bahia.

Mas ACM achava que também podia dominar o mundo e, um ano antes, encomendara ao colega senador José Roberto Arruda, a violação do painel do Senado em votação secreta que cassou Luiz Estevão.

O escândalo veio à tona dias após o ato criminoso. A Comissão de Ética do Senado foi convocada para investigar a grave denúncia, as sessões da comissão ganharam grande repercussão popular e foram transmitidas ao vivo pela TV Senado, que bateu recordes de audiência.

O mês de maio de 2001 tornou-se emblemático para os brasileiros, em especial para os baianos. A sequência dos fatos em Brasília, o tamanho do escândalo e a obscenidade dos atos dos parlamentares levou os baianos a reagirem. A UNE e outras organizações estudantis secundaristas organizaram protestos que tiveram a adesão de milhares de estudantes, muitos deles participavam dos atos de forma independente, e ocuparam as ruas do centro de Salvador. O primeiro movimento de rua, no dia 10 de maio, teve repercussão nacional e um saldo de dezena de feridos.

A ação policial foi desproporcional e mexeu nos ânimos de Salvador e da Bahia. O autoritarismo estampado nas ações policiais e políticas causou indignação imediata e contagiou o desejo de mudança latente na sociedade.

“Eu não passei procuração, eu acho que a minha classe também não passou, eu acho que o povo aqui não passou procuração pra Gal Costa representar o povo baiano perante a defesa de Antônio Carlos Magalhães”, afirmou uma professora durante uma passeata e eu registrei.

Choque

Estávamos todos ali, no coração da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no viaduto do Vale do Canela. Havia muita gente: estudantes secundaristas, universitários, sindicalistas, artistas, parlamentares, professores, advogados, procuradores. Vê-se a multidão “sedenta de ética e justiça”, como diz o poema recitado no carro de som naquele fatídico 16 de maio.

Recém-formado, lá estava eu no campus da UFBA, onde havia estudado. Com uma câmera de mão, discreta, circulei por todo lugar, pronto a registrar o desenrolar daquela passeata que seguia para a Graça, bairro onde residia ACM.

O campus universitário estava em ebulição, com a sociedade baiana exercendo sua cidadania de forma livre, numa passeata colorida e alto astral, coalhada de meninos e meninas, adolescentes de colégios públicos e privados…

Ainda me lembro daquele plano geral que registrei: o campus da UFBA invadido pela Polícia Militar da Bahia.

Naquele momento, o juiz federal Márcio Leal expediu habeas corpus em resposta ao pedido do corpo docente da UFBA e afirmou em seu despacho: “diante da narrativa apresentada, verifico que há abuso do poder de polícia na manutenção da ordem pública”. Apesar do salvo conduto e da chegada da Polícia Federal ao campus para seu cumprimento, a PM e a Tropa de Choque iniciaram o ataque frenético com bombas de gás, bombas de pimenta, causando pânico e resultando em muitos feridos e pisoteados.

A massa gritava: “Polícia é pra ladrão, pra estudante não”. “Corpos fardados!”. E na sequência, os estrondos… bum, bum. “Eita porra, olha a bomba aí”, “corre, corre”. “Sai de perto do vidro”.

A passeata pacífica foi acuada, violentada, espancada. Tudo acompanhado de perto pelo alto escalão da PM, rasgando, na cara da sociedade baiana, diante do busto do catedrático Orlando Gomes e da PF, a Constituição Federal. Não adiantou ordem de juiz federal, a presença de deputados federais, procurador, prefeito do campus, professores e estudantes.

A Polícia Militar, mais uma vez, assumiu a prática antidemocrática. Violou, em plena luz do dia, na universidade pública federal, a Carta Magna. Enfim, uma instituição militar sob o comando de um governador subordinado ao acusado de crime no Senado, age em interesse próprio e coloca em risco a vida de milhares de cidadãos.

Os policiais, em sua notória maioria, estavam sem identificação. A invasão do campus da universidade federal pela PM era uma operação “flagrantemente ilegal”, como disse o jurista e professor da UFBA, Arx Tourinho, diante da minha câmera.

Cachorros, cavalos, escudos, homens fardados, P2, bombas e muita truculência foi o que se viu, diante das câmeras de TV, diante dos jornalistas que também corriam dos ataques. Se diante das lentes, na presença de parlamentares, procuradores e professores universitários, tratando de manifestantes em grande parte filho da classe média, assiste-se a tamanho massacre, o que dizer sobre as atitudes do braço armado do Estado nas periferias e nos becos e vielas Brasil afora?

Sem dúvida, rememorar estes fatos é não deixar cair no esquecimento nossas lutas de combate ao autoritarismo e de afirmação do Estado Democrático de Direito.

As imagens que realizei se transformaram, em menos de quinze dias, no documentário “Choque”, que teve ampla divulgação com lançamento realizado na sede da ABI (Associação Baiana de Imprensa). Finalizo com a frase de abertura de “Choque”, que produzi junto com os parceiros da Grifo.doc e que, ainda no período, foi um importante veículo de formação e informação:

“Se a possibilidade de produzir informação fica sob o poder quase absoluto de um monopólio, há o risco de alguém pretender ditar de que lado está a ‘verdade’.”

Kau Rocha é jornalista e documentarista

 

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