Por Ademário Costa

“Repressão lembra ditadura” foi a chamada usada para estampar, em um belo cartaz, imagens da brutalidade policial do dia 10 de maio. Produzido na gráfica do Sindicato do ramo Químico e Petroleiro, o material também tinha a função de convocar os estudantes da UFBA para um ato na reitoria. A proposta dos estudantes foi imediatamente incorporada pelo DCE-UNEB, UNE, MST, CUT e UBES. Convocamos o ato estudantil sem muita certeza do tamanho da adesão. Foi no dia 11 de maio, sexta-feira, que decidimos convocar a manifestação do dia 16. Tivemos até a terça, dia 15, para passar em sala e convocar os estudantes. Nesses dois dias pude sentir um clima tenso nas faculdades e nas ruas, era como se a cidade estivesse se preparando para o pior. Na manhã de quarta, dia 16, li o jornal A Tarde, que ajudou a convocar a passeata. Na matéria sobre a passeata dos partidos de oposição, realizada no dia anterior, usaram a minha fala para dizer que iríamos repetir a tentativa de chegar à casa de ACM.

Eu morava em São Lázaro, ali ao lado da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Acordei cedinho, passei na FFCH. Puxamos a nossa passeata de lá até a reitoria. Para minha grata surpresa, lá chegando, encontramos várias outras passeatas, vindas da UFBA, de escolas secundaristas públicas e particulares, que mais uma vez encontravam-se nas ruas. À massa estudantil, somavam-se com muita força, os sindicatos combativos da Bahia. Comerciários, construção civil, bancários, professores, metalúrgicos, químicos, trabalhadores da UFBA, médicos e outros que eu não consigo lembrar. Muitos dirigentes partidários, todo mundo da oposição, deputados estaduais e federais, vereadores.

Unificávamos ali na rua, uma verdadeira frente popular de massas. Saímos da reitoria. Muita festa, muitas palavras de ordem. Fizemos todo o percurso definido pela comissão de segurança sem dizer qual era o caminho. A turma de cinco a seis mil pessoas seguia na confiança de que era uma medida necessária para não vazar a informação, pois acreditávamos que existiam agentes infiltrados pela polícia na passeata.

Seguimos pela “João das Botas”, quebramos pela “Juraci Tavares Lyra”, descemos pela “Araújo Pinho”, entramos pela “Marechal Floriano” e desembocamos na Faculdade de Odontologia da UFBA. Ali entramos na UFBA, passamos pela Escola de Música, depois pela escola de Biblioteconomia e Arquivologia, e chegamos no Viaduto do Canela, que faz a conexão entre os dois lados da UFBA.

O viaduto já estava interditado. A subida do estacionamento da Faculdade de Direito estava apinhada de policiais do Batalhão de Choque. Todos fortemente armados com equipamentos de dispersão e controle de multidões. Paramos o carro de som no começo do viaduto enquanto parlamentares e professores tentavam, em vão, dissuadir os comandantes da operação policial a sair do campus. O tempo foi passando e mais gente foi chegando, muitos universitários e muitos mais secundaristas. A cada minuto íamos perdendo a capacidade de organizar as pessoas. Muita raiva, indignação e impaciência. O viaduto foi se transformando em uma panela de pressão, uma tensão muito forte e o calor abrasivo aumentava a temperatura da situação.

Enquanto estávamos encurralados, o professor de Direito, Wilson Alves, impetrou o pedido de habeas corpus para que pudéssemos passar pela faculdade. Mais tarde, finalmente, chegou a Policia Federal com o habeas corpus, entusiasticamente comemorado. Mas nem mesmo isso foi suficiente para demover os comandantes da operação policial de impedir o nosso trajeto. Liberdade cerceada, Constituição rasgada, cidadania obliterada. Impossível para a juventude, lá presente, aceitar.

De repente, os estudantes resolveram subir o morro da Faculdade de Direito, para chegar ao estacionamento e atravessar o prédio, com o objetivo de driblar o cerco policial. Quando já éramos muitos lá em cima, a polícia fez uma barreira para impedir a subida de centenas de bravos e bravas, que ignorando o medo reorganizavam-se para dentro da faculdade.

Foi ai que eles atiraram. Vi, nitidamente o bombardeio, a turma secundarista rolando morro abaixo sob a pressão das bombas, dos cavalos, dos cassetetes, da total repressão. Divididos pela barreira policial, parte de nós subiu pela faculdade que foi também bombardeada.

Fumaça, fardas cinzas e capacetes. Camisas brancas, gente correndo e medo. Vidraças inteiras da faculdade caiam como papel. A estrutura física do prédio produzia um eco estrondoso do barulho das bombas, ao mesmo tempo em que colhia toda a fumaça do gás lacrimogêneo, potencializando todos os efeitos das armas de guerra.

Minutos depois, fui chamado na sala da congregação com o diretor, alguém da polícia e a Polícia Federal, para negociar a nossa saída e a das tropas. Este policial me disse algo mais ou menos assim: “Agora que vocês já conseguiram o que queriam, vamos acabar com essa situação”.  Acordamos, portanto, a saída dos estudantes e da tropa de choque. Ao sair para o estacionamento inferior da faculdade, apresentei a situação para as lideranças presentes que concordaram, tentando a partir disso disseminar a informação de reagrupar na reitoria.

Descemos para o Vale do Canela, em todos os lugares havia fumaça e estudantes. Em todos os pontos, Odontologia, Enfermagem, Direito, Administração, Medicina. Em todas as ruas do Vale, havia uma chuva de paus e pedras sobre os policiais. Havia barricadas de troncos de árvore, pedras grandes e latas de lixo pegando fogo. E parte da tropa de choque estava tentando se proteger atrás de um ônibus que eles haviam parado. Esta ofensiva era liderada pela turma do DCE-UNEB. Falei com eles sobre o acordo com o comando da polícia e tentamos em vão explicar o mesmo aos policiais que resolveram continuar atacando. Não conseguiram nos enfrentar. Tiveram que recuar e sair da UFBA, ao som de “Marcha Soldado”.

Mais tarde, uma multidão se reuniu na reitoria, saindo em passeata até a praça municipal. Lá ficamos sabendo que o reitor da UFBA havia convocado o Conselho Universitário extraordinário por causa da invasão. Nós voltamos, havia outra multidão na reitoria esperando a reunião do conselho. Fizemos a reunião aberta ao público, todos os diretores de faculdade e institutos, pró-reitores e conselheiros estudantis estavam presentes. Deliberamos entre outras coisas por convocar a assembleia universitária para o dia 17 de maio às nove horas. Naquele momento, começávamos a articular a resposta da universidade e de toda a sociedade baiana… “1, 2,3 ACM no xadrez!”

Ademário Costa é presidente do diretório do PT de Salvador. Graduado em Ciências Sociais pela UFBA, foi do DA (Diretório Acadêmico) de Ciências Sociais, do DCE (Diretório Central dos Estudantes) da UFBA (gestão Declare Guerra/1999-2001), diretor de Combate ao Racismo (gestão 1999-2001), vice-presidente da UNE de 2001 a 2003.

 

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