"O golpe de 1964 pegou o partido completamente desprevinido. Havia a euforia do comício do dia 13 de março, parecia que Jango tinha base sólida nas Forças Armadas". O golpe de 1964 pegou o partido completamente desprevenido. Havia a euforia do comício do dia 13 de março, parecia que Jango tinha base sólida nas Forças Armadas – o famoso dispositivo militar do general Assis Brasil – e contava com grande apoio dos sindicatos, das forças políticas, da Frente Parlamentar Nacionalista. Mas a conspiração interrompeu tudo isso e o golpe de 1964 me surpreendeu em Goiânia, onde eu estava fazendo conferências. Fui para São Paulo já na clandestinidade, consegui um contato com a direção a muito custo. A luta interna já estava deflagrada. As posições vão-se delineando. No final de 1964, fui para o Rio Grande do Sul, para fazer parte da direção estadual do partido, que tinha restrições muito sérias à linha política.

Um ano depois do golpe, em maio de 1965, o Comitê Central realizou sua primeira reunião. Mário Alves estava na prisão, junto com alguns outros companheiros. Marighella compareceu, prestigiado porque tinha lutado com exemplar coragem contra a polícia, quando foi preso dentro de um cinema na Tijuca. Nessa reunião, Marighella tinha como objetivo manter-se na Comissão Executiva a fim de tirar proveito em favor de suas posições. Ele já estava com idéias a respeito do desencadeamento da luta armada, mas considerava que ainda era cedo para romper com o PCB. Como eu não alimentava pretensões nesse sentido, coloquei-me abertamente contra o informe apresentado pela Executiva, que era, em termos sucintos, uma justificação da política anterior, do 5º Congresso: "O erro não foi da linha, foi da sua aplicação, uma aplicação esquerdista." Por esse esquerdismo não eram responsáveis aqueles que tinham postos decisivos no partido, mas justamente os que não tinham, como era o meu caso, o de Mário Alves, o de Apolônio de Carvalho e de alguns outros. Quer dizer, os bodes expiatórios já estavam escolhidos. Critiquei duramente o informe, e votei contra ele. Fui o único voto contrário. Houve cinco abstenções. A partir daí se desenvolveu a luta interna. Marighella, continuando na Comissão Executiva, elegeu-se primeiro-secretário do Comitê Estadual de São Paulo, o que representou a conquista de uma posição de grande importância. Apolônio de Carvalho e Miguel Batista dos Santos, também divergentes do direitismo da maioria, dirigiam o Comitê Estadual do Rio de Janeiro. Éramos uma oposição de seis elementos no Comitê Central. Sob a influência de Marighella, Câmara Ferreira rompeu seus vínculos com Prestes e passou a atuar em favor da oposição, no Comitê de São Paulo. Havia outros companheiros do Comitê Central que não concordavam com a linha política, mas não se atreviam a dar o passo decisivo de romper com o PCB.

No livro Combate nas trevas, refiro-me à última reunião do Comitê Central à qual eu compareci. Uma reunião repleta de acusações, na qual Prestes lançou mão de uma verdadeira chantagem. Na sua intervenção, ele disse que os companheiros dissidentes cuspiam no prato em que comiam, porque era o partido que os sustentava e às suas famílias. Esse argumento não era ineficiente, como se pode pensar, para revolucionários. Porque, na clandestinidade em que nos encontrávamos, que perspectiva poderia haver para dirigentes operários de 40, 50 anos, se, de repente, se vissem sem nenhuma fonte de rendimentos? Esse é um drama por que passa muita gente que milita no movimento revolucionário, que envelhece nele. Quando chega a velhice, não há INPS, nem sempre há filhos que possam servir de amparo, e fica-se recebendo esmolas do PC. Isso anula velhos revolucionários do ponto de vista político e, psicologicamente, é pavoroso.

Eu desmascarei a intervenção de Prestes e disse que aquilo era uma chantagem indigna, motivo pelo qual, a partir dali, me recusava a receber qualquer ajuda financeira do Comitê Central. Passei a viver, na clandestinidade, de traduções de livros, cujas encomendas conseguia por intermédio de companheiros com vida legal.

Eu sabia que aquela era a última reunião da qual participaria, mas possuía antigos laços de amizade com alguns daqueles que iam ficar no PC e depois seriam assassinados pela repressão. Não faço aqui nenhuma discriminação com relação a Orlando Bonfim Júnior, a David Capistrano da Costa, a João Massena de Melo e outros. Considero-os companheiros que honraram o movimento revolucionário, apesar de todas as divergências que tive com eles. Foi uma despedida emocionada. Sabíamos que não íamos nos reencontrar tão cedo, talvez jamais. A partir daí, as coisas se aceleraram. Fizemos uma reunião em outubro de 1967, em Niterói, procurando, diante das punições disciplinares impostas pelo Comitê Central, agrupar os dissidentes. Vieram companheiros de vários estados do país: Rio de Janeiro, Guanabara, São Paulo, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e Paraná. Mas não veio ninguém ligado a Marighella. Nós já sabíamos que Marighella não iria marchar conosco. Porém, se todos aqueles que compareceram à reunião de Niterói se mantivessem unidos, nós teríamos um partido que seria tão grande quanto o próprio PCB. Infelizmente, não foi isso que se verificou. Dali saíram os fundadores do PCBR, saíram companheiros que foram para a ALN [Ação Libertadora Nacional], outros para o POC [Partido Operário Comunista], outros para o VPR [Vanguarda Popular Revolucionária] e para o PCdoB. Houve uma fragmentação, e o esforço unitário ficou anulado. Este processo de fragmentação me deixou cético quanto às perspectivas futuras das várias dissidências.


Trechos exatródos de entrevista a Alípio Freire e Paulo de Tarso Venceslau na Revista Teoria e Debate nº 11, (3º trimestre de 1990). Clique para ler a entrevista na íntegra.

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