Para entender nossos dias
Dois livros lançados pelos jornalistas Paulo Roberto Pires e Rodrigo Vianna traçam um retrato dos últimos 10 anos da história política do país. Dos dias de luta para denunciar as manobras do jornalismo de campanha e da crítica à mídia corporativa até chegar aos dias do Brasil sob Bolsonaro. A imprensa agoniza agora, mas também ajudou a parir a besta da extrema-direita
Alguém se lembra como era a política antes da internet? Felizmente, sim. Os jornalistas Paulo Roberto Pires e Rodrigo Vianna não apenas lembram, como acabam de lançar livros que aguçam o olhar para o que agora já é uma história de mais de 20 anos: a da migração da circulação das informações e das ideias de meios analógicos para os digitais. Isso provocou um deslocamento daquilo que se chamava de esfera pública do debate político para uma esfera estranha chamada internet.
Professor da UFRJ e editor da revista Serrote, do Instituto Moreira Salles, Paulo Roberto Pires lança o livro “Diante do Fascismo — Crônicas de um país à beira do abismo” (editora Tinta da China), que cobre o período entre março de 2018 e março deste ano. Ele reúne colunas escritas para a Época e o site da revista de livros Quatro Cinco Um. Com origem no jornalismo cultural como crítico de música e literatura nos jornais O Globo e Jornal do Brasil, Pires começa o ano em que passamos a viver em perigo permanente no tom de perplexidade de quem está observando com ar de mofa e sarcasmo.
Com prosa fluida e, por momentos, engraçada a ponto de chegar no deboche franco, Pires vai mapeando os tipos humanos do mundo das ideias, as modas da linguagem, os incômodos dos bem-pensante com o humor possível antes da catástrofe. Ou seja, as eleições que botaram Jair Bolsonaro, então um fascista em formação e um sujeito da baixíssima política, no poder.
Em 26 de outubro, às vésperas do segundo turno, com o caldo entornado já a favor de Bolsonaro, Pires publica “Diante do Fascismo”, espécie de compilação do debate que tomava os cadernos culturais e comentaristas de outras plataformas sobre a impropriedade de chamar Bolsonaro de “fascista”.
“Preferiu-se discutir se a marola é tsunami a organizar uma eventual fuga para as montanhas. Hoje, cheios de razão, estão prestes a morrer afogados. (…) E tome Hannah Arendt, Noberto Bobbio, George Orwell e mal disfarçada Wikipedia para explicar que seria exagero, tergiversação ou ignorância associar fascismo à peculiar concepção de sociedade que se traduz nos atos e nos planos do capitão, sua família, seu economista, seus generais e recrutas”, escreve o jornalista Bob Fernandes na apresentação “Paulo Roberto Pires viu antes”.
A partir de 2019, saído da Época para o ritmo mais espaçado e solto da Quatro Cinco Um, vão se avolumando as evidências e a perplexidade, que ainda permitia algum humor, passa a ser substituída pela indignação, pelo choque. E, sim, pela raiva.
Na contracorrente de discursos moderados e cirandeiros, Pires ataca a ideia fixa da “polarização” como a raiz dos males do Brasil. Ele é implacável contra o “Intelectual Sem Posição”, mais comumente chamado de “isentão” nas redes. E, ainda que ainda fale do ponto de vista do sujeito que se bota no lugar do observador da cultura, os artigos assumem tom político inequívoco.
É em 2020, com a chegada do coronavírus e do abandono criminoso do governo, que aquilo que vem se gestando explode e o autor passa a classificar, com todas as letras, o governo Bolsonaro como a barbárie fascista encarnada. “Diante do Fascismo”, além do testemunho de um escritor sobre seu tempo, constitui-se como um documento precioso para as próximas gerações, se é que elas existirão e vão ainda gostar de livros, entenderem o transe que vivemos nessa quadra de tempo.
O livro de Vianna, igualmente essencial, é uma espécie de réquiem para o blog O Escrevinhador, que manteve entre 2008 e 2020. Repórter de jornalismo diário, impresso e televisivo, Rodrigo Vianna também procura incorporar a formação em história e a militância como ativista da mídia. “De Lula a Bolsonaro — Combates na Internet” acaba, portanto, por cobrir um período maior do que o volume de Pires, mas nem por isso perde o sentido de urgência.
Vianna é da turma dos “blogs sujos”, forma que o então candidato do PSDB à Presidência, nas eleições de 2010, José Serra, achou para desprezar ou diminuir o trabalho daqueles jornalistas que migraram para o online. Ali, havia uma tentativa de fazer aquilo que se chamava de “contranarrativa”, ou seja, de escrever, publicar e reportar aquilo que a mídia corporativa escondia, omitia ou manipulava. Serra, já então um político de longa data, tentava naquele ano ganhar de um Lula que saíra com uma aprovação alta de seu primeiro mandato e aparecia em primeiro lugar nas pesquisas. O tucano protagonizaria um dos episódios pioneiros das fake news antes da internet: o caso da bolinha de papel, brilhantemente radiografado por Vianna no texto em que conta os bastidores da edição da Rede Globo do episódio, “Bolinha de papel: o dia em que até a Globo vaiou Ali Kamel”.
À época, as entradas dos blog “O Escrevinhador” eram diárias, como muitas vezes com dois posts por dia. E Vianna era apenas um dos blogueiros progressistas que, de fato, estavam revivendo uma forma de fazer jornalismo independente e alternativo na internet.
Além do caráter francamente colaborativo entre os vários profissionais de comunicação envolvidos nessa empreitada, havia um tom experimental — afinal, a Internet então podia competir quase que ombro a ombro com as grandes empresas de comunicação, uma vez que as migrações dos principais veículos para o online ainda patinavam tecnologicamente e as redes sociais ainda eram, de certa forma, incipientes.
Esse movimento político e essa guinada técnica para o que se chamava de “blogosfera” mostrou a força, a criatividade e, sobretudo, o inconformismo do jornalismo brasileiro. Também veio o aparecimento vertiginoso de blogs, sítios e plataformas, de revistas eletrônicas mais multimídia e com acabamento mais apurado. Mas, não menos importante, havia a criação de um meio ambiente de informação, análise e circulação de ideias muito mais progressista, em alguns casos francamente de esquerda, e livre. É essa a história que está por trás da história do livro de Vianna, que tenta flagrar a história de uma década de luta política no Brasil pela perspectiva da arena jornalística.
Assim, o livro faz um esforço verdadeiramente didático e (bem-sucedido) de ordenar aquilo que Vianna via pela tela e pelas ruas, pela televisão e pela internet da extraordinária história que vivemos entre o metade do segundo mandato de Lula, as transições para o governo de Dilma Rousseff, o golpe e a chegada da extrema direita no poder. Extraordinária, porém trágica, o que coloca sempre uma questão para qualquer ramo de atividade do pensamento: o que, afinal, aconteceu? Como caímos? Como deixamos isso acontecer?
A busca dessa resposta, que tirou e ainda tira o sono de muitos de nós, parece ser aquilo que ainda move Vianna a seguir, como comentarista e debatedor da TV 247, a perseguir aquilo que é o ouro da atividade jornalística: a inquietação constante de investigar, analisar e deixar as pegadas para o futuro. •