Em dezembro de 1971, chegava às lojas de discos do país o álbum Construção, um dos mais bonitos e comoventes retratos dos anos de chumbo e um marco da Música Popular Brasileira. É, provavelmente, um dos discos mais importantes de todos os tempos. Chico tinha acabado de regressar do exílio, tinha 26 anos e trazia um estado de espírito inquieto e cada vez mais preocupado com seu tempo e as dores do povo brasileiro.

Com pouco mais de meia hora de duração, a obra traz uma visão lírica e urgente daquele tempo, mas soa tão atual que parece ter sido feito nesses tempos de pandemia, dor e escuridão. Construção traz algumas das mais belas e importantes canções da música brasileira, como a própria faixa-título, “Cotidiano”, “Desalento”, “Acalanto” e “Samba de Orly”.

É um disco tão importante e vital que soa moderno mesmo depois de cinco décadas. Chico relata as dores das gentes, os abusos do capitalismo, a negatividade das nossas classes dirigentes, ao mesmo tempo que embala o amor, trata do exílio, do homem comum, Jesus e da vida dura. Tudo isso com uma visão lírica, poética e profundamente emocional.

“Chico já sabia o que fazer, o que dizer e esse álbum é prova disso. É genial e inesquecível, tanto que estamos aqui falando dele”, comentou Miltinho, do MPB4, em entrevista à BBC. É um álbum que é o testemunho daqueles tempos sombrios em que o país estava sob o comando do General Emílio Garrastazu Médici. O período mais barra-pesada da ditadura.

A obra é uma coleção de crônicas, com algumas das canções mais importantes de toda a carreira do cantor e compositor, com arranjos primorosos, divididos entre Magro, do MPB4, e Rogério Duprat, o mais importante maestro do século 20. Ainda conta direção de Roberto Menescal, o piano de Tom Jobim, a percussão do Trio Mocotó e o violão de Toquinho em “Samba de Orly”.

Ao tempo em que o disco abre com a doce e perigosa ironia ao falar dos militares no poder — “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir/ A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir/ Por me deixar respirar, por me deixar existir/ Deus lhe pague” —, Chico vai pulando de maneira imaginativa entre metáforas e frases hipnóticas — “grito demente”,“rangido dos dentes”… Em seguida, conduz o ouvinte por duas canções sublimes — “Cotidiano” e “Desalento” — até chegar a “Construção”.

É de Duprat o desconcertante arranjo da faixa, com poderosos metais e uma orquestra sinfônica que sublinha toda a melodia, passando das cordas suaves do início, dialogando com a voz delicada e frágil de Chico, entremeada pela percussão que vai enredando o ouvinte, com a letra forte carregada de imagens poderosas, até desembocar no ápice, com intervenções fortes e estridentes depois que o herói despenca do andaime e morre na contramão — “atrapalhando o tráfego”.

Neste momento, a canção ganha um tom catártico no arranjo de Duprat e explode, em um caos sonoro e labiríntico. Na visão deste escriba, é uma canção revolucionária e absolutamente grandiosa, uma gema que mostra toda a maestria do compositor, escritor e cronista. Chico é um gênio e é esta faixa que mostra tudo isso. O arranjo retoma “Deus lhe pague” e deixa o ouvinte atordoado.

O próprio Duprat conta, em entrevista a Fernando Rosa e a Alexandre Matias, para a revista Bizz, em 1999, como se deu o desenho do arranjo: “Eu já tinha ouvido ‘Construção’, não sei se em show. Interessante, é uma brincadeira com proparoxítonas. Então, na hora que me mandaram avisar, eu fui direto lá, ouvir, estavam ensaiando no Canecão – aí, tudo bem. Eu ouvi e pedi, ‘então me arrumem uma fita, eu vou trabalhar’. Tinham pressa. Tinha o negócio de pressa, já estavam começando a gravação. Aí, eu fui para a casa do meu irmão que morava no Rio e escrevi a coisa, porque eu não podia ficar no Rio, tinha que voltar para São Paulo”.

Chico disse, em entrevista à hoje extinta revista Status, em 1973, sobre o processo de criação. “Em ‘Construção’, a emoção estava no jogo de palavras. Agora, se você coloca um ser humano dentro de um jogo de palavras, como se fosse um tijolo, acaba mexendo com a emoção das pessoas. Mas há diferença entre fazer a coisa com intenção ou — no meu caso — fazer sem a preocupação do significado”, disse. O álbum catapultou a carreira de Chico e o levou ao estrelato, sendo um disco com vendas inacreditáveis para a época — 140 mil cópias.

O regime também passou a ver o compositor como perigoso e subversivo. Seus problemas com a censura já existiam, mas passaram a outro patamar, até porque os militares parecem não ter percebido a força da faixa-título ou de “Deus lhe pague”, implicando mais com “Condão”, que teve sua letra alterada para ser liberada — Chico substituiu o verso “Nas grades do coração” por “As portas do coração”.

“Samba de Orly” também foi mutilada. Composta em parceria com Toquinho e Vinícius, os versos de Vinícius, adicionados quando a letra já estava praticamente pronta, foram censurados — “Pela omissão” deu lugar a “Pela duração” e “Um tanto forçada” foi substituída por “Dessa temporada”.

O dossiê sobre Chico Buarque no Arquivo Nacional — um arsenal de 2.075 registros distribuídos em dezenas de milhares de páginas em arquivos digitais — mostra que o cantor e compositor já vinha sendo monitorado e tendo “problemas” por conta das letras já em 1968. Mas ele caiu no radar do regime e permaneceu lá até o fim da ditadura, já em meados dos anos 80.

Qualquer entrevista a veículos, principalmente estrangeiros ou “alternativos” merecia resenhas e relatórios. Shows de Chico pelo Brasil ou em países vizinhos, como a Argentina, rendiam relatórios e inúmeros comentários de arapongas e funcionários da “comunidade” do famigerado Serviço Nacional de Informações (SNI). Toda viagem dele era acompanhada de perto, principalmente quando incluía visita às universidades.

O Informe 638/19/ABS/SNI/1972, produzido pela Agência Brasília do SNI, disponível no Arquivo Nacional, mostra o show de Chico no Ceub, faculdade privada de Brasília, em 23 de setembro de 1972. Classificado como confidencial, e contendo nove páginas, o relatório produzido em 10 de outubro de 1972, trata do show de Chico produzido pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia do Ceub, no Clube dos Funcionários de Brasília.

“Durante o show, com a duração de 2 horas e 30 minutos, Chico Buarque dirigiu-se várias vezes à assistência, cerca de mil espectadores, sendo registrado os seguintes principais tópicos: (…) b) referindo-se a determinada canção, disse: ‘Não vou cantar, porque eu não quero ser preso’ (vaias da platéia). ‘Em segundo lugar, eu estou proibido de cantar esta música, não posso cantar. Eu acho que ninguém deve me confundir, eu gostaria imensamente de cantar, gostaria imensamente de alguém como vocês me ouvissem, mas não posso. Não quero ser preso. Por isso eu estou me guardando, estou me guardando para um lugar próprio’. Logo em seguida, cantou ‘Quando o carnaval chegar’”.

Ainda de acordo com o Informe 638, Chico fez troça com o ambiente político brasileiro em um determinado momento do show: “Agora a gente queria fazer um comercialzinho de um produto novo” — o conjunto MPB-4 entoava o estribilho ‘lá-lá-lá-lá lá-lá-lá-lá’, da propaganda do governo feita pela televisão, da qual crianças dizem que estão trabalhando e estudando pelo Brasil. ‘E agora o mais recente lançamento da indústria nacional: DEDOL, o endurecedor instantâneo de dedo. DEDOL DEDOL, é só tomar e apontar. DEDOL mantém o seu dedo duro por mais horas. DEDOL, duas gotas, dois minutos, dois dedos duros e eficientes. DEDOL pode ser encontrado nas boas lojas do ramo, entrega-se também a domicílio’“.

Por fim, o relatório lembra que “o presidente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia do Ceub, responsável pela exibição de Chico Buarque, é o estudante Miquixara Cunha, elemento de tendências esquerdistas, ligado a Honestino Monteiro Guimarães, e conhecido na panfletagem subversiva (Infão 1012/ ABS/SNI/72)”.

A referência é clara e direta ao líder estudantil Honestino Guimarães, estudante de Geologia da UnB, presidente da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília, preso por quatro vezes pelo regime militar. Depois de sua quarta prisão, em 1973, nunca mais foi visto. Seu atestado de óbito só foi entregue à família em 1996, e ainda assim incompleto. No documento, não consta a causa da morte. Foi anistiado em 20 de setembro de 2013 pelo governo Dilma.

O episódio mostra bem os riscos que Chico Buarque corria em suas apresentações pelo Brasil. Eram riscos sobretudo físicos. Mas há dezenas de outros, como o ocorrido em 14 de setembro de 1974. O cantor e compositor se apresentou no Teatro Glauce Rocha, em Campo Grande (MS). No documento Informação 2075/S-102-A4-CIE, classificado como “Confidencial” e encaminhado ao gabinete do ministro do Exército em 29 de novembro de 1974, o araponga reporta: “Chico Buarque de Holanda, acompanhado pelo conjunto MPB/4, interpretou inúmeras composições musicais, já gravadas e bastante conhecidas do público, tais como: ‘Construção’, ‘Jorge Maravilha’, ‘Minha história’, ‘Bom conselho’, ‘Deus lhe pague’, ‘Caçada’, à exceção de ‘Milagre’, ainda não gravada. Todas foram aplaudidas pelo público presente”.

E continua: “A respeito da composição musical ‘Milagre’, Chico Buarque fez os seguintes comentários, antes de cantá-la: ‘O compositor desta música já fez mais de 200 composições, todas as as 200 censuradas (também desta vez houve risadas por parte da platéia), mas parece que agora ela vai sair em meu próximo LP, em outubro’. A música ‘Milagre’ tem um estribilho que diz: ‘É o milagre brasileiro/ quanto mais trabalho/ menos vejo o meu dinheiro’”. A canção foi gravada em 1975 e é de autoria de Julinho da Adelaide, um dos codinomes de Chico para driblar a Censura Federal. Mas aí é outra história. •

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