"De 1934 a 1969, a USP manteve inteira liberdade de expressão
de idéias e pensamentos. As diversas correntes podiam se encontrar
num nível elevado. Nesse ano, houve a explosão dos estudantes e a
cassação dos professores. Infelizmente, a partir daí, a universidade
perdeu muito, e hoje é uma instituição apática. Criou-se uma atmosfera
que não é permitida nenhuma contestação. E não pode haver espírito

"De 1934 a 1969, a USP manteve inteira liberdade de expressão
de idéias e pensamentos. As diversas correntes podiam se encontrar
num nível elevado. Nesse ano, houve a explosão dos estudantes e a
cassação dos professores. Infelizmente, a partir daí, a universidade
perdeu muito, e hoje é uma instituição apática. Criou-se uma atmosfera
que não é permitida nenhuma contestação. E não pode haver espírito
universitário, onde não há completa liberdade de expressão…"
Simão Mathias, professor de História da Ciência da USP.

Mais de 3000 pessoas aplaudiram, de pé, na 28ª reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada recentemente em Brasília, a moção que propôs a reintegração, nas universidades, dos professores afastados com base no AI-5. A proposta formulada pela Associação Nacional dos Cientistas Sociais, reivindicada, também a eliminação da triagem policial realizada muitas vezes abertamente, através de atestados ideológicos: a anulação do Decreto-Lei n.º 477, no que diz respeito às punições de alunos, professores, e funcionários das universidades; e a anistia para todos os que por ele foram atingidos.

A moção, apresentada pelo professor Carlos Guilherme Mota, da USP, foi aclamada entusiasticamente e aprovada por unanimidade pelos participantes da assembléia que a ampliaram, reclamando também uma anistia geral em favor de todos os presos políticos e cassados. A assembléia aplaudiu o Movimento Feminino pela Anistia, que solicitou à SBPC adesão à luta pela anistia geral "para a unificação do país" e pelas liberdades democráticas, afirmando não conceber a condução de uma economia dissociada do aspecto social", salientando que "só um processo democrático poderia evitar a degringolada que vem aí pela frente".

Onde estão nossos professores?
A maioria dos professores foi atingida pelo AI-5 (13-12168), cujos nomes foram constando de listões sucessivos, a exemplo do publicado em 25 de abril de 1969, em que figuravam, entre os nomes, nomes como o de Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, etc. Segundo alguns professores, os incluídos nas listas muitas vezes nem tinham emprego em universidade – "há um erro técnico de direito, ao aposentar-se uma pessoa de uma função que ela não exercia, de um emprego que ela não tinha". A precariedade das informações com base nas quais a Presidência tomou essas informações não faz sentido, acrescentaram. "É um absurdo dentro do absurdo os atos de exceção". Em circunstâncias normais, prosseguem, a pessoa atingida impetraria um mandado de segurança e ganharia, certamente. Porém, como a medida foi tomada com base no AI-5, o qual não é possível de apreciação pelo poder Judiciário, nenhum remédio existe".

O Professor aposentado não pode ser admitido em funções públicas, quaisquer que sejam. Por isso, alguns trabalham em pesquisa para empresas privadas, outros fundaram sua própria empresa de pesquisa, como é o caso do CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), alguns foram para o exterior, ou abandonaram o ensino. A maioria está afastada. A reintegração desses professores? "Só poderia ser compreendida no contexto de uma anistia".

Um mestre não se improvisa
Segundo o professor Carlos Guilherme Mota, a questão da reintegração dos professores aposentados surgiu, na SBPC, como tem surgido em outras oportunidades – a partir da época das aposentadorias compulsórias – na linha das antigas aspirações, não apenas universitárias. "Veja o consumo popular de livros e artigos de muitos de nossos principais cientistas sociais. São tiragens significativas, valendo como voto à autoridade dos mestres".

"Atualmente, porém, o problema tem se agravado – continua o professor Mota – pois estamos verificando a existência de uma crise na montagem dos cursos de pós-graduação gerada pela falta de mestres qualificados, fato que há vários anos vem preocupando a SBPC. Um mestre não se improvisa nem em 4 nem em 10 anos. Para a coordenação de cursos de excelência, só mestres excelentes".

Quando a comunidade acadêmica brasileira – relembra Carlos Motaviu alijados de seus quadros discípulos de Anísio Teixeira, Roger Batista, Fernando Azevedo, entendeu que estava sendo afastada a geração do "meio", ou seja, aqueles como Florestan Fernandes, Costa Pinto e outros que constituam um elo crítico no processo cultural. A partir daí, verificamos que freqüentemente recorremos a doutores estrangeiros, com muito menor qualificação, que possuindo títulos nos Estados Unidos, surgiram após as aposentadorias.

Enquanto isso, revela o professor Mota, muitos de nossos melhores mestres lecionam e fornecem seus trabalhos para universidades como a de Nova York, Yale, Sorbonne ou, até mesmo, fazendo estudos para órgãos governamentais no Brasil. A contradição acrescenta, é que vivemos essa conjuntura crítica de falta de mestres no mesmo movimento em que o próprio governo federal está preocupado com os cursos de pós-graduação, dos quais exige alta qualidade. Em conseqüência, estamos sendo obrigados a importar Brazilianists, menos qualificados que, segundo opinião recente de Michel Debrun, fizeram muito menos pelos estudos da realidade nacional do que teriam conseguido os pesquisadores brasileiros, se não tivessem sido marginalizados.

"Se Celso Furtado, Florestan Fernandes e outros têm seus livros como objeto até de congressos em universidades americanas, por que não pensar agora que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil? Afinal, não estamos em busca de um modelo brasileiro? Então, nada melhor que brasileiros capacitados para fazê-los".

Atestados ideológicos
Uma das reivindicações aprovadas pela assembléia da SBPC é a supressão do atestado ideológico. Brasil Mulher ouviu o deputado federal Airton Soares (MDB), autor de projeto de lei regulamentado os mecanismos dessa exigência:

"No Brasil de hoje, o regime ainda se mantém e é o mesmo desde 64. Só que este, caracterizado pelo governo Geisel, se mostra ajustado às atuais circunstâncias, adotando medidas preventivas com relação à organização do povo, uma vez que as medidas repressivas já cumpriram seu papel. Esta política de repressão preventiva se apresenta sob as mais variadas formas. Uma delas, a mais ampla e abrangente, relacionada com o setor da documentação do cidadão, faz cumprir a exigência, pela maioria das escolas e universidades de atestados políticos e ideológicos fornecidos pelos organismos policiais. Ora, esta é uma exigência ilegal, uma discriminação que contraria a Constituição que, mesmo esta – uma Carta outorgada, fundamentada na qual, lamentavelmente fazemos as leis – garante igualdade de condições entre os cidadãos, sejam quais forem as diferenciações de religião, pensamento, ou sexo.

Estamos, pois, procurando – através da elaboração de uma lei – evitar os abusos e as arbitrariedades que são cometidas hoje, em função dessa discriminação. Pretendo, neste mês, ter o projeto pronto para apresentá-lo ao Congresso. Será feito de acordo com as normas constitucionais. Consequentemente não será o ideal para ir de encontro aos interesses populares, uma vez que a Constituição atual apresenta todas as premissas que suportam o regime de exceção – isso sem falar do AI-5. Apesar de tudo, acredito que uma regulamentação possa evitar os abusos que estamos verificando a toda hora. Se não podemos ter, pelo menos, uma que evite as perseguições e os transtornos que atualmente se verificam".

 *Artigo publicado no jornal BRASIL MULHER (Ano I, nº 4) de 1976 – sobre reunião realizada em julho pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

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