Consumação do golpe no Brasil se soma às análises sobre o fim do ciclo progressista na América Latina

Ano 1 – nº 07 – Setembro 2016

Com a eleição de Mauricio Macri na Argentina, a derrota do chavismo nas eleições parlamentares de dezembro passado e a rejeição de um terceiro mandato para Evo Morales no referendo realizado em fevereiro, na Bolívia, a consumação do golpe no Brasil se soma às análises sobre o fim do ciclo progressista na América Latina. Os questionamentos, ainda que com respostas iniciais e variadas dentro do campo da esquerda, envolvem os limites de políticas progressistas no contexto de conciliação com as elites políticas em alguns países, ausência de reformas estruturais e reprimarização das economias, no marco do fim do ciclo de altos preços das commodities. Embora não seja o objetivo deste texto debater os significados dos recentes reveses eleitorais para o ciclo progressista, a intenção é situar a ofensiva neoliberal colocada pelo golpe no Brasil e levantar algumas considerações sobre a agenda de austeridade e as demandas por direitos no contexto regional.

Na Argentina, os nove meses de governo Macri trazem até o momento uma inflação de 40% ao ano, ocasionada pelo fim do controle cambial e a desvalorização do peso frente ao dólar, bem como pelo aumento brutal no preço de serviços subsidiados como transporte e energia; um aumento de 3,4% na taxa de desemprego, que alcança agora 9,3% segundo a primeira medição da nova gestão; e uma queda real de salários devido aos ajustes abaixo da inflação e às demissões em massa. Ainda em abril, o observatório da dívida social da Universidade Católica da Argentina registrava 1,4 milhão de novos pobres no país. No caso dos investimentos públicos, embora o governo ainda esteja executando neste ano o orçamento aprovado na gestão anterior, o montante também foi corroído pela inflação. No decorrer de setembro, o governo atual deve enviar para o Congresso o orçamento de 2017, que dará mais clareza sobre os passos a serem tomados com relação às políticas sociais. Este cenário tem levado centenas de milhares de pessoas às ruas e estimulado greves e mobilizações sindicais por todo o país. Pesquisa divulgada no início de setembro pela Universidade San Andrés, em parceria com a Ipsos, mostra taxas muito próximas de aprovação e desaprovação: 48% e 45% da população respectivamente. A ligeira diferença em favor da aprovação vem, sobretudo, dos estados do Nordeste e Noroeste argentinos, sendo que a desaprovação supera a aprovação na cidade de Buenos Aires (51% e 39%) e na província de Buenos Aires (50% e 42%). Além disso, há sinais de repressão e criminalização dos movimentos sociais, sendo o caso mais emblemático a prisão, desde o início do governo Macri, da dirigente social e deputada do Parlasul, Milagro Salas, acusada de atentar contra a ordem pública. Há retrocessos também no tema da justiça e da reparação pelas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura militar, com a diminuição de pessoal e recursos nas instituições.
Macri já sinalizou a disposição de reorientar a política externa, associando-se como observador à Aliança do Pacífico e estabelecendo uma agenda de cooperação com os Estados Unidos em diversos temas, entre os quais o monitoramento da tríplice fronteira e a política de drogas, retomando uma perspectiva militarizada sobre o tema.

Na Venezuela, a vitória da oposição nas eleições parlamentares de dezembro abriu caminho para uma crise institucional e para a intensificação das tentativas de destituição do presidente Nicolas Maduro (que já se arrastavam desde sua eleição, inclusive por meios de desestabilização escancarada em torno do uso da violência num cenário de conflito social). Ao longo de 2016, as disputas em torno das etapas para a convocação de um referendo revogatório do mandato paralisam o país e contribuem para o agravamento da crise econômica e social, oriunda da dependência quase total do Estado venezuelano das exportações de petróleo e da queda brutal dos preços do barril nos últimos anos, corroendo a base de apoio do chavismo. Em termos regionais, o acirramento da crise, a vitória da oposição, o resultado eleitoral na Argentina e o golpe no Brasil têm gerado mais êxito às já antigas tentativas de isolamento da Venezuela.

Popularidade da democracia em queda e medidas de austeridade

A partir de resultados divulgados no início de setembro, a pesquisa anual do Latinobarômetro registra, pelo quarto ano consecutivo, queda no apoio à democracia como forma preferível de governo e de organização da vida política. A pesquisa é resultado de mais de vinte mil entrevistas, realizada em dezoito países da América Latina, entre 15/5 e 15/6 deste ano. De acordo com o informe, no agregado dos dezoito países, 54% da população apoiam a democracia como melhor forma de governo (dois pontos percentuais abaixo do ano passado e quatro pontos abaixo dos resultados de 1995, início das medições). Há também uma leve queda (1% com relação ao ano passado) no apoio a soluções autoritárias, aprovadas por 15% dos entrevistados.
Cresceu em 3% a indiferença com relação à democracia e ao autoritarismo (de 20 para 23%). Entre os países a variação é grande, e o resultado no Brasil se destaca: 32% dos brasileiros responderam preferir a democracia a qualquer outra forma de governo, o número só é mais baixo na Guatemala (31%). Encabeçam a lista Venezuela (77%) e a Argentina (71%). Além do Brasil (cujo apoio à democracia caiu 22% em relação ao ano passado), as quedas mais bruscas ocorreram no Chile (-11%) e no Uruguai (-8%, mas ainda assim em terceiro lugar).

O caso chileno chama a atenção. Ainda em seu segundo ano de mandato, a presidenta Michelle Bachelet enfrenta taxas bastante baixas de aprovação (em torno de 15%) e dificuldades para implementar seu programa de governo, tanto pela queda no crescimento econômico e na arrecadação, quanto por resistências no interior de sua coalizão. Mesmo com amplo espaço fiscal (é o menor déficit público da região), o governo diminuiu os investimentos públicos e a intensidade da política anticíclica em nome do equilíbrio fiscal.

Da mesma forma em que o chamado ciclo progressista agrupa experiências nacionais bastante diversificadas, os reveses não se limitam aos resultados eleitorais e apresentam particularidades nacionais, com combinações variadas de dificuldades econômicas, ameaça de retrocesso aos direitos conquistados no período anterior, demandas pela ampliação de direitos e conflitos sociais.

No Brasil, a mistura inclui o amplo rechaço das medidas de austeridade, que não foram referendadas nas urnas e ameaçam a conquista de direitos, como mostram as altas taxas de desaprovação do governo não eleito em diferentes capitais do país. Além da ilegitimidade no caso brasileiro, as medidas de austeridade (como a PEC 241/2016, que pretende congelar os gastos públicos por vinte anos e, por consequência, impedir o aumento real de investimentos em programas sociais, de saúde e educação, por exemplo) vão na contramão dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil em torno de uma agenda de desenvolvimento. Embora as metas de desenvolvimento humano desenhadas no âmbito de agências multilaterais não tenham um caráter obrigatório e sejam frágeis frente às pressões regulatórias do capitalismo globalizado, funcionam como ponto de referência para o trabalho de organizações da sociedade civil e para as iniciativas de cooperação internacional.

Nesse sentido, não apenas no caso brasileiro, mas também em outros países latino-americanos (como Argentina, México, Chile, entre outros), diversas entidades têm expressado preocupação com a incompatibilidade entre medidas de austeridade que jogam o peso do ajuste econômico sobre a população mais vulnerável e os compromissos internacionais, como a Agenda 2030 em torno dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). No México, por exemplo, segundo dados de um informe preparado por organizações da sociedade civil para uma audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a população 20% mais rica obtém 31,6% do gasto público destinado ao desenvolvimento humano, enquanto os 20% mais pobres recebem 13,1% deste gasto.

Relatório de 2016 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) aponta como medidas de austeridade são potencialmente desastrosas para se alcançar as metas de desenvolvimento humano. Entre os maiores desafios no campo fiscal, a Cepal aponta a regressividade das estruturas tributárias na América Latina e a alta evasão fiscal. Não apenas no Brasil, mas na região em geral, uma das características dos regimes tributários é a elevada proporção de impostos sobre bens e serviços sobre o total da arrecadação. No campo da evasão, chama a atenção a responsabilidade das corporações multinacionais, por meio de mecanismos de planejamento tributário agressivo e manipulação de preços no comércio internacional, prejudicando a capacidade de os países arrecadarem impostos. Em âmbito internacional, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) estimam que a evasão fiscal alcance de 100 a 240 bilhões de dólares ao ano. Estimativas da Cepal mostram que, na América Latina, nos últimos dez anos, as saídas originadas na manipulação de preços do comércio internacional registraram aumento médio anual de 9%, chegando a 765 bilhões no acumulado entre 2004 e 2013. O relatório afirma ainda que quanto maior a inserção de um país na economia mundial, maior a possível erosão de sua base tributária.

Embora o relatório da Cepal não avance neste último ponto, vale ressaltar que, se por um lado as metas de desenvolvimento humano são solapadas pelas políticas de austeridade, por outro lado este movimento é reforçado pela construção em curso de uma nova camada normativa no âmbito internacional, a partir de acordos para a liberalização do comércio e dos investimentos (como o acordo sobre o comércio de serviços – TiSA – e a Parceria Transpacífico). Isso porque não apenas estes acordos facilitam a erosão da base tributária (como é possível deduzir do próprio relatório da Cepal), mas também porque restringem legalmente a margem de ação para a promoção de políticas públicas.

Referências:

Cepal. Estudo Econômico da América Latina e Caribe – a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável e os desafios do financiamento para o desenvolvimento. 2016. Leia mais

Latinobarômetro – informe 2016. Leia mais

Política fiscal e direitos humanos nas Américas – informe para audiência temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Leia mais

 

 
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