Esta é uma das cinco experiências premiadas como destaque no ciclo de 1996 do Programa de Gestão Pública e Cidadania (iniciativa conjunta da Fundação Getúlio Vargas- SP e Fundação Ford).Autor: Marco Antônio de Almeida
a partir do relatório de Jean Rocha para o Programa Gestão Pública e Cidadania.

Esta é uma das cinco experiências premiadas como destaque no ciclo de 1996 do Programa de Gestão Pública e Cidadania (iniciativa conjunta da Fundação Getúlio Vargas- SP e Fundação Ford).Autor: Marco Antônio de Almeida
a partir do relatório de Jean Rocha para o Programa Gestão Pública e Cidadania.

A Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho no Estado do Mato Grosso do Sul foi criada para investigar as denúncias referentes às condições insalubres e irregulares vividas pelos trabalhadores em carvoarias. A Comissão desenvolve suas atividades unindo esforços entre órgãos públicos e sociedade civil organizada, visando prevenir, fiscalizar e erradicar as irregularidades nas condições de trabalho no Estado, especialmente no que se refere à mão-de-obra infantil.

O PROBLEMA

No início dos anos 90 várias plantações de eucalipto do Estado de Mato Grosso do Sul foram derrubadas para produzir carvão para a indústria de Minas Gerais. Muitas pessoas foram contratadas com promessas de bons salários. Ao chegarem em seus locais de trabalho, encontraram péssimas condições de vida, tornando-se totalmente dependentes dos empregadores para obter transporte e alimentos.

Esses trabalhadores, em sua maioria analfabetos, foram sistematicamente logrados, não recebendo corretamente seus salários e acumulando dívidas com os empregadores. Muitos acabaram envolvendo mulher e filhos no trabalho. Não havia médico, muito menos escola para as crianças. Nas destilarias de álcool a situação era semelhante. Os empregadores dificultavam visitas e proibiam entrevistas, escondendo as crianças quando algum estranho se aproximava.

CRIAÇÃO E IMPLANTAÇÃO

Em 1992 a imprensa começou a denunciar estas irregularidades, e a Assembléia Legislativa constituiu uma CPI para apurar os fatos.

Diante da situação constatada, o governo estadual criou, em junho de 1993, a Comissão Permanente de Investigação e Fiscalização das Condições de Trabalho, convidando para integrá-la as próprias entidades que denunciavam estas irregularidades, buscando unir esforços de agências governamentais e organizações da sociedade civil para articular respostas às denúncias de escravidão, exploração de mão-de-obra indígena e de trabalho infantil.

Na época da fundação, 27 órgãos participavam. Hoje, já são 38 (sendo 19 da esfera governamental e 19 da sociedade civil), sempre sob a responsabilidade da Secretaria Estadual de Cidadania, Justiça e Trabalho (SCJT). Desde 1996 a Comissão tem sido solicitada a atuar em outras três áreas onde também foram constadas irregularidades: o cultivo de algodão, erva-mate e braquearia.

FUNCIONAMENTO

A comissão executiva é composta por quatro membros e uma secretária, cedida pela Secretaria da Cidadania, Justiça e Trabalho, que também fornece uma sala para sediar a Comissão. Há reuniões mensais com a presença de todos os membros. A presidência é exercida em rotatividade pelos órgãos governamentais e pelas ONGs.

A Comissão realiza pelo menos três visitas por mês a carvoarias ou destilarias (agora, também às áreas de braquearia, algodão e erva-mate). As visitas são planejadas com antecedência para todo o semestre, o que explica que raramente alguma delas seja cancelada. Visitas extraordinárias são realizadas quando necessárias.

Os relatórios foram padronizados, e as informações reunidas formarão um banco de dados, que se estruturará através de um convênio com a Universidade Federal de Mato Grosso.

Decorrente do sucesso dos trabalhos realizados, outras secretarias foram incluídas (Educação, Saúde, Planejamento e Meio Ambiente). Estão sendo analisados os pedidos de outras ONGs que também querem participar da Comissão.

Os recursos são provenientes de orçamento estadual e federal e de convênios com a OIT (Organização Internacional do Trabalho), através da Comissão Pastoral da Terra, da Igreja Católica.

ATUAÇÃO

O problema mais urgente era nas carvoarias, que registravam o maior número de queixas. A Delegacia Regional do Trabalho não possuía recursos humanos suficientes para cobrir as denúncias. Além disso, existe a agravante das grandes distâncias envolvidas.

A Comissão saía de Campo Grande durante a madrugada, realizando muitas vezes viagens de 10 a 12 horas de duração, para chegar de surpresa nas carvoarias e efetuar o flagrante de mulheres em situação irregular e crianças trabalhando. Relatórios minuciosos, realizados após cada visita, eram distribuídos às ONGs e aos meios de comunicação.

O trabalho da Comissão, divulgado pela imprensa local, nacional e internacional, gerou uma forte pressão social. Hoje, a maioria dos trabalhadores possui carteira assinada. Os donos das carvoarias recuaram em relação ao trabalho infantil, chegando até a abrir escolas nos acampamentos. Algumas dessas escolas também oferecem cursos de alfabetização para adultos. O governo estadual é quem remunera os professores.

Outra iniciativa, agora por parte do governo federal, foi a criação do Vale Cidadania: as mães recebem R$ 50 por filho mantido na escola, exigindo-se uma freqüência mínima de 70% às aulas. O repasse dessa verba é executado pelo governo estadual. Muitas famílias saíram dos acampamentos para morar na cidade (Ribas do Rio Pardo) para que as crianças pudessem comparecer às aulas. Além disso, uma congregação religiosa está implantando cursos profissionalizantes em Ribas.

Nas destilarias houve uma melhoria nas condições dos alojamentos, e foi proposto o contrato coletivo para os índios. O trabalho infantil não-indígena foi praticamente eliminado. O mesmo não aconteceu em relação à mão-de-obra infantil indígena: por questões culturais, as crianças acompanham seus pais no trabalho.

PARCERIAS

O trabalho da Comissão gerou a criação de um programa de governo denominado PAI (Programa de Ações Integradas), envolvendo ações de diversas secretarias estaduais em parceria com ONGs. Dentre as 54 ações desenvolvidas nas carvoarias destacam-se os mutirões de atendimento, que fornecem documentos de identidade e tratamento médico-odontológico.

Representantes de duas universidades participam da Comissão. A Universidade Federal presta assessoria no trabalho de montagem de um banco de dados e a Universidade Católica Dom Bosco confecciona cartazes e panfletos sobre doenças (para distribuição nas carvoarias), e também assessora pesquisas sociais.

O SESI entrou com uma unidade móvel que percorre as carvoarias, com médico e dentista, além de organizar gincanas e atividades de lazer. A Volkswagen prometeu entregar 25 veículos, além de garantir sua manutenção, para o transporte escolar das crianças das carvoarias.

DIFICULDADES

As dificuldades enfrentadas pela Comissão são de diferentes naturezas:

a) condições físicas adversas para a realização dos trabalhos: as destilarias distam 400 km de Campo Grande (o que demanda dois dias para cada visita); os campos de braquearia ficam mais próximos, 150 km em média, mas são difíceis de serem localizados pois mudam de lugar com muita rapidez. As plantações de erva-mate também são distantes.

b) problemas financeiros: não é raro que alguns membros da esfera governamental, particularmente a Polícia Rodoviária, não disponham de veículos, gasolina ou pessoal para colaborar nos trabalhos da Comissão. Salários e verbas de representação também costumam faltar: durante alguns meses a secretária-executiva trabalhou sem remuneração; por vezes os servidores não são pagos em suas diárias.

c) pressões políticas: no início dos trabalhos houve um pouco de dificuldade em trabalhar de forma conjunta com a DRT, fato que posteriormente foi contornado. O principal problema foi enfrentar a influência política dos empresários, exercida muitas vezes pelo financiamento de alguns deputados. Os membros da Comissão notaram também hostilidade dos proprietários e "gatos" (capatazes que são os intermediário na contratação de mão-de-obra ilegal) nas carvoarias e usinas. O medo dos trabalhadores em sofrer sanções apareceu em conversas informais efetuadas por ocasião das visitas.

IMPACTOS

A ação da Comissão provocou mudanças na legislação. Toda carvoaria precisa agora de uma certidão de instalação (CAI) para poder explorar o carvão. Estuda-se a possibilidade de isentar as carvoarias do ICMS, com a contrapartida de que a quantia correspondente seja aplicada em benefício dos trabalhadores.

No plano local, a Comissão ganhou o prêmio Marçal de Souza de Direitos Humanos por sua atuação em 1995. Graças à repercussão e ao impacto do trabalho, a Comissão também foi chamada a investigar outras áreas de trabalho (braquearia, algodão e erva-mate).

O Ministério da Justiça solicitou à Comissão um dossiê sobre as carvoarias, que foi entregue ao Presidente da República e ao Programa Comunidade Solidária. Posteriormente o dossiê será repassado para outros estados (Acre, Maranhão e Ceará), que pediram informações. Um dos membros da Comissão foi convidado para o cargo de secretário-executivo do Fórum Nacional para Erradicação do Trabalho Infantil.

Como demonstração de seu impacto internacional, o atual presidente da Comissão foi o único brasileiro convidado a apresentar seu trabalho num congresso sobre trabalho infantil realizado em agosto, na Tanzânia.

O trabalho da Comissão trouxe uma mudança positiva na atitude dos empresários: muitos começaram a se conscientizar e a melhorar as condições dos trabalhadores, e já aceitam dialogar com a Comissão. Hoje existe até uma carvoaria modelo, com ótimas condições de moradia, saúde e higiene. O grande saldo foi a retirada das crianças do trabalho nos fornos.

ESTIMATIVA DO NO DE PESSOAS NAS EMPRESAS
ATENDIDAS PELA COMISSÃO

Carvoarias

8.000

Destilarias

12.000

Braquearia

2.000

Algodão

6.000

Erva-mate

800

Total

30.000

 


* Publicado originalmente como DICAS nº 69 em 1996

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