Cantoras, compositoras e produtoras que desafiam as noções de gênero botam sua cara no sol, nas plataformas digitais e na mídia afirmando o direito de existir com liberdade e dignidade

 

 

De noite pelas calçadas/ Andando de esquina em esquina/  Não é homem nem mulher/  É uma trava feminina/ (…) É favela, garagem, esgoto e pro seu desgosto/ Está sempre em desconstrução”. Os versos iniciais da canção “Mulher”, da cantora, compositora e, agora, participante do BBB 2022, Linn da Quebrada, resumem com nitidez a eclosão recente de uma visibilidade que esteve sempre nas sombras da vida social brasileira.

Transgêneros e travestis, ou seja, pessoas que não se identificam com a identidade de gênero que lhes foi atribuída ao nascer, vêm conquistando, à custa de muito ativismo, direitos básicos, como o registro do nome social — no Brasil, em 2016 — e o fato da disforia de gênero, nome médico para designar a desidentificação com o gênero cultural e socialmente atribuído, deixar de ser considerado um transtorno mental, de acordo com o Catálogo Internacional de Doenças — o que foi oficializado pela OMS apenas em 2019.

Diferentemente da homossexualidade, que se refere à orientação sexual, a transgeneridade envolve outros conflitos das noções de feminino e masculino e mobilizam transformações que vão desde a aparência às mudanças corporais radicais. Antes das terapias hormonais mais modernas e da possibilidade de fazer as cirurgias de maneira segura, inclusive pelo SUS, travestis e transgêneros eram invisibilizados muito pelo incômodo causado pela ambiguidade de seus corpos. Num país conservador como o Brasil, fora dos lugares, momentos e atividades “permitidas” àqueles que exerciam sexualidades não-binárias, a diversidade sempre foi muito reprimida. Em muitos casos, a violência dessa invisibilização se dava em conjunção explosiva com racismo e preconceito de classe. Ou seja, estava (e está) criada a receita para que a “bicha, preta, pobre e periférica” fosse tratada com tiro, porrada e bomba.

Linn da Quebrada começou a chamar a atenção nas plataformas digitais com suas letras e colagens eletrônicas, como em “Bixa Preta”, onde reflete sobre o triplo choque do racismo, de vir da quebrada e da homossexualidade: “A minha pele preta, é meu manto de coragem/Impulsiona o movimento/ Envaidece a viadagem”. Participante do programa BBB 2022, não abrandou o discurso nem diante das câmaras — e já sofreu transfobia ao vivo.

Liniker, paulista de Araraquara, surpreendia pelo contraste entre o uso de maquiagem e roupas femininas e a voz grave e potente. Com o grupo Caramelows, do qual fez parte até o ano passado, as composições dos discos Remonta e Goela Abaixo passavam pela tradição do soul e do suíngue da música negra brasileira, da linhagem de Jorge Ben e Tim Maia. Em sua estreia solo, no álbum Indigo Borboleta Anil, Liniker estreitou ainda mais sua relação com a MPB, em parcerias com Milton Nascimento e Tássia Reis.

Em trajetória semelhante, AssucenaAssucena surgiu em dupla com Raquel Virgínia no grupos As Baías, revisitando a MPB clássica. Assucena e Raquel se encontraram no começo dos anos 2010 no curso de História da USP e juntas com o grupo As Baías lançaram três álbuns. “Tarântula” (2019), o último da dupla, chegou a ser indicado ao Grammy Latino, pela sua produção mais apurada no pop dançante. Neste ano, Assucena fez uma guinada na carreira. “Parti do Alto”, seu primeiro (e excelente) single solo, homenageia o samba de partido alto.

Jupp do Bairro, ex-parceira musical de Linn, com quem trabalhou como backing vocal, ousou ser uma mulher trans preta, pobre e periférica da cidade de São Paulo, e adentrar no rap. Território tradicionalmente masculino, hétero até pelo menos os anos 2000, o rap começou também a ser reivindicado por mulheres MCs e por homens gays.

Não à toa, as primeiras décadas do século 21 viram também o funk, antes conhecido como “carioca”, não apenas fincar raízes nas periferias de São Paulo como se tornar o gênero de preferência dos mais jovens, homens e mulheres. Em “Corpo sem Juízo”, de 2020, Jupp plasma tanto essas confluências de gêneros musicais como a da fluidez dos corpos, em faixas com participação do rapper Rico Dalasam, da funkeira DeizeTigrona, da roqueira baiana Pitty. “Trangressão”, “Corpo sem Juízo” e o último single “A Sensação da Raiva”, aproximam a fala cantada (ou o canto falado) do rap de bases eletrônicas etéreas e sofisticadas.

Isis Broken se define como “rapentista”, combinando ao rap (acrônimo da expressão “rhythmandpoetry”) do repente nordestino, estilo que também se define pelo improviso e pela rima, em geral em dupla e como canto-resposta, ou seja, uma espécie de diálogo cantado.

Seja qual for a definição possível, a música de Isis Broken, toda angulosa e com inspirações no imaginário fantástico brasileiro, devolve ao ouvinte uma sensação de beleza estranha e aguda. A sergipana lançou seu primeiro álbum, “Bruxa Cangaceira” em 2021, ano em que também nasceu seu primeiro filho com o marido Lourenzo, homem-trans.

Toda vez que a música brasileira acolhe as diversidades que emergem rasgando as convenções, ela emerge desses processos com um frescor inventivo ímpar. Nas pistas ou nas plataformas digitais, travestis e transgêneros estão fazendo sua revolução nada silenciosa, afirmando o direito de existir com liberdade, dignidade e muita música interessante. •

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