Maria Augusta Capistrano
"Para mim, quando um presidente da República que apela para os cabos e sargentos é porque já perdeu os generais".Eu lia constantemente os jornais, principalmente o Diário de Pernambuco, e estava percebendo a movimentação da esquerda. Quando David chegava em casa, colocava o pijama e ia para o portão, eu ia atrás.
"Para mim, quando um presidente da República que apela para os cabos e sargentos é porque já perdeu os generais".Eu lia constantemente os jornais, principalmente o Diário de Pernambuco, e estava percebendo a movimentação da esquerda. Quando David chegava em casa, colocava o pijama e ia para o portão, eu ia atrás. Às vezes, ele dizia: "Eu não quero mais conversar sobre política, não agüento mais." Mas eu insistia em perguntar se aquela história de defesa da democracia, processo democrático, era para valer, se não existia nada além daquilo. Ele sempre respondia com outra pergunta: "Que história é essa?" Para mim, porém, se eles não tinham nada preparado para a defesa dessa tal democracia, estavam muito mal, porque o golpe estava sendo preparado, e eles não estavam acompanhando os movimentos do inimigo. Bastava ler os editoriais do Diário de Pernambuco e do Jornal do Comércio. Estava claro, para quem lesse nas entrelinhas, que se preparava o golpe. No dia do discurso do Jango [João Goulart] para os sargentos, às vésperas do golpe, o David estava deitado numa rede na varanda e eu estava costurando com meu rádio de pilha ligado – que eu ouvia o tempo todo. Eu fiquei como uma louca. Acordei o David. Ele me perguntou o que havia de errado. Mandei ele ouvir o discurso do Jango. Para mim, quando um presidente da República que apela para os cabos e sargentos é porque já perdeu os generais. Lembro que ele subestimou minha preocupação, afirmando apenas: "Lá vem você com essas coisas!" Em seguida, quando eu estava comentando que o discurso de Jango era patético, o Davizinho foi entrando e também dizendo: "Lá vem você com essas coisas!"
[…] No dia seguinte, o David saiu de casa naquele jipe, manso. Aí começou o bafafá. Eu tinha tanta certeza do golpe que vivia com a minha roupa e a dos meus filhos arrumadinhas: não deixava uma peça suja. Por isso, escapei. Pela manhã distribuí uma porção de roupas em três sacolas, dei a cada um dos filhos a sua, peguei a minha e saí. Fui em direção ao centro da cidade, para o Sindicato dos Feirantes. Quando estava andando na rua, lá veio o David na maior placidez, dirigindo aquele jipe. Perguntei o que eles estavam fazendo, desfilando de jipe, enquanto havia um golpe na rua. Ele disse: "E você e esses meninos?" Respondi: "Ah me deixa, te manda." Eu fui para o Sindicato dos Feirantes, e lá encontrei aquele pessoal num fala-que-fala. Tinha chegado uma petebista do esquema do Jango, do interior do Rio de Janeiro, para preparar a passeata e estava lá falando abobrinha. Conversei com um companheiro que me explicou que estavam preparando uma passeata. Argumentei que estavam loucos, não tinham armas com que reagir ao golpe. Ele me acusou de pessimista. Pedi então a palavra e fiz um discurso. Falei que ninguém estava preparado para a luta armada, que o golpe estava ali, e que teríamos de saber recuar. Os caras do partido diziam que a orientação era ir para a rua em passeata, e que Maria Augusta, mulher de David Capistrano, não apitava nada. Davizinho sugeriu que fôssemos para o Sindicato dos Bancários, onde os estudantes estavam reunidos e poderia encontrar o Jonas (que era como um irmão para ele). Quando chegamos em frente ao Sindicato, veio uma Kombi toda mal pintada com um dirigente do partido. Ele mandou que eu entrasse. Pensei que já haviam percebido o perigo e queriam esconder a mim e a meus filhos. Mas que nada! Ele queria me levar para o Sindicato das Tecelãs, onde as mulheres estavam reunidas. Eu fiquei puta! Lá, a história se repetiu: a orientação do partido era para as mulheres saírem em passeata. Discursei outra vez: "Passeata o quê, minha gente! O golpe está na rua, e a primeira coisa que vai ser feita é o cerco dos sindicatos. Então vocês fiquem aqui, eu estou indo." Um companheiro veio atrás da gente. Ele e uma companheira cabeleireira. Andamos uma quadra. Quando olhamos para trás, o Exército já estava descarregando. Os meninos que estavam reunidos no Sindicato dos Bancários foram para a frente do Palácio, que estava todo cercado. Eles foram para lá em passeata, com duas bandeiras brasileiras. O Exército abriu fogo e matou dois meninos. Quando eu saí dali, imediatamente os ônibus ficaram lotados, as pessoas todas em pé. E o ônibus que tomamos passava exatamente em frente ao Palácio do Governo, quando o povo passou em frente e viu o Exército, as lágrimas corriam. Um silêncio imenso naquele ônibus. Eu fui para a casa de uma amiga de infância que morava afastada. Os meninos ficaram na sala. Eu fui para o fundo e ligamos o rádio. Os meninos haviam levado outro rádio, que ouviam na sala. De repente, ouço um grito que nunca mais saiu dos meus ouvidos. O grito mais sofrido que já ouvi. Corremos para a sala, e o Davizinho disse: "Mamãe, mataram Jonas e Ivan." Eram os dois amigos mais ligados a ele. Eram duas crianças. Se o David não tivesse a mãe que tem, teria morrido também.
[…] O David estava com 15 anos, o Jonas era mais velho do que ele dois anos. Desde pequenos participavam juntos das atividades secundaristas. Depois da morte do Jonas e do Ivan, eu voltei para o bairro onde morava, Campo Grande, e fiquei na casa de uma vizinha. Eu e meus três filhos não podíamos sair de casa. Nem no quintal, porque a casa era no centro do terreno. Ficamos numa situação difícil, a família era muito grande, era uma confusão, mas era muito solidária. Até que um dia recebi um bilhete de uma amiga de infância da Paraíba, casada com um banqueiro, e que estava morando em Pernambuco. Ela tinha um grande carinho por mim, e dizia que se eu tivesse dificuldade fosse para a casa dela, porque era seguro. A polícia me prendeu ao chegar na casa dessa amiga, já uns 20 dias depois do golpe. Agora, os policiais eram dois sujeitinhos jovens que, uns três meses antes do golpe, apareceram em casa, dizendo que eram de O Estado de S. Paulo, e queriam entrevistar o David. Eles levaram a mim e ao Davizinho. As meninas ficaram. Cristina tinha 13 anos e a Carolina, 10. Fui colocada numa sala com outras mulheres na Delegacia de Ordem Política e Social. Entre elas estavam a doutora Nair de Teodósio, as secretárias de Habitação e de Educação do governo Arraes, enfim todas as mulheres do tempo de Arraes e também de outras linhas políticas. A Célia Lima… E a cada dia o grupo aumentava: a Maria Celeste, que era do grupo de Julião (Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas), foi uma das mais torturadas. Passei cinco dias nessa sala. E o Davizinho no meio dessa mulherada. Eram mulheres da Liga Camponesa, mulheres de orientação de base, algumas lideranças populares. Depois de cinco dias, pegaram todo o grupo e levaram para a cadeia pública. Foi aí que me separaram do meu filho e eu fiquei incomunicável. […] Só fiquei sabendo [o que aconteceu com ele] depois que eu saí da cadeia.
Levaram o David para o Juizado de Menores. Uma das minhas amigas se comunicou com a família do David no Ceará, dizendo que eu e o Davizinho estávamos presos, o pai estava foragido e queria acertar com eles o procedimento que deveriam ter com as duas meninas. Ao mesmo tempo minhas amigas procuraram minha cunhada, freira, que trabalhava num colégio de crianças abandonadas. Naquele momento a Igreja já estava meio liberada, aceitando a relação das freiras com a família comunista. Consentiram que a Irmã Luiza se interessasse pelo nosso problema. Procuraram meu filho e souberam que ele estava no Juizado. Então a freira se comunicou com o resto da família no Ceará e acertaram que alguém viria buscar os três. O juiz deu permissão ao David para ir junto com as irmãs, inclusive porque já estava perturbando o Juizado.
[…] David começou a dar aula para os meninos, alguns até delinqüentes. Então acharam que aquilo já era subversão. Estavam querendo se ver livres dele, porque era um elemento muito estranho no meio daquela garotada. Deixaram-no ir, mas o Exército não concordou. Quando o empregado que os irmãos do David mandaram para buscar os meninos chegou no aeroporto de Fortaleza, tinha um pessoal do Exército para interditar os comunistas que tinham chegado naquele avião. Os comunistas eram David Capistrano Filho, Maria Cristina Capistrano e Maria Carolina Capistrano. O oficial que comandava o pelotão para levar os comunistas presos ficou arrasado: "Deve haver algum engano. São duas garotas, uma de 10, outra de 13, e um garoto de 15 anos…" A resposta foi que as duas podiam ir, mas o David era um subversivo e que voltaria preso para o Recife. E o colocaram na 7ª Região Militar, preso com várias lideranças comunistas adultas. Isso tudo eu soube depois. Eu não tenho a data precisa. Mas, se o golpe foi em 1º de abril, eu fui presa no dia 21, e fiquei, mais ou menos, um mês na cadeia. Quando eu soube dessas histórias, fiquei como louca, não sabia onde estava meu filho.
[…] Recebi um bilhete de uma prima da mulher do general Murici, dizendo que eu podia ir à casa do general – veja só, do chefe do golpe – que ele iria me receber bem. Fui à casa do general muito apreensiva. Tinha um soldadinho na frente que perguntou o que eu queria. Disse que iria falar com dona Virgínia Murici. Apareceu uma senhora grávida na varanda, com mais uma criança pequena no colo, mandou que eu entrasse. Cumprimentei-a, disse quem era, que tinha saído há dois dias da prisão. Ela mostrou-se indignada e ofereceu-se para ajudar. Falei que tinha sido liberada mas que meu filho continuava preso. Ela mostrou-se surpreendida, ligou para o marido e disse que eu estava lá. Queria saber onde é que estava o meu filho, que ela achava isso injusto, uma criança de 15 anos presa. Que esperava uma resposta dele. Pouco depois, o telefone tocou e era o marido, o comandante-geral, dizendo que não estava fácil, porque o menino estava com o Bandeira, que era conhecido como um dos mais temíveis. Ela disse que não tinha nada com o Bandeira: "Meu negócio é com você, a mãe vai continuar aqui esperando." Voltou, ficou conversando comigo, e em pouco tempo veio a resposta. Eu podia visitar meu filho na 7ª Região Militar. Fui lá. Fui recebida e conduzida a uma sala cheia de corredores. David chegou cercado por dois soldados armados de metralhadora. Ao passar no corredor alguém mandou que os soldados voltassem e o David veio sozinho conversar comigo. […] Ele estava muito animado. Sabe como é, uma criança presa junto com uma porção de personalidades. Estava até meio orgulhoso. Pediu muitas coisas, roupas para ele e para os outros. Vieram buscá-lo. Quando eu estava saindo, fui abordada por um oficial, que me levou ao gabinete para fazer a ficha do David, e voltar a visitá-lo na quinta-feira seguinte. Arrumei tudo e na quinta-feira voltei à 7ª Região. Estranhei porque o David não chegava. Um oficial me chamou no corredor e disse: "Cadê a ficha do seu filho? Seu filho não vai ter visita porque é insubordinado, está numa solitária. A senhora quer me dar a ficha dele?" Eu dei a ficha, ele a picou. Larguei os pacotes lá, apanhei um táxi e fui bater na casa da dona Virgínia. Uns três dias depois, às vésperas do aniversário do David (7 de maio), ele foi solto. Rasgar a ficha foi uma armação para tomá-la das minhas mãos, porque seria uma prova, num processo jurídico, de que estiveram com uma criança presa quase por um mês.
[…] Antes de ser presa, recebi um comunicado de que o David [pai] estava salvo, em lugar reservado. Não sabia onde. E foi onde ele ficou até setembro, outubro. Ele e outros, Amaro Cavalcanti foi um deles, ainda editaram um jornal mimeografado chamado O Combate. Dias depois de eu ter saído da cadeia, recebi um recado para me encontrar com alguém numa esquina. Chegando lá, era o próprio David. Achei loucura. Mas ele disse que queria ver a mim e às crianças. Foi rápido. Outra vez, me levaram para esse sítio onde eles estavam, mas não sei onde era. Só sei que era um lugar muito bonito e, no caminho, antes de deixar a cidade, alguém dentro do carro avisou: "Abaixa todo mundo que o Álvaro da Costa Lima vem num carro." Era o secretário da Segurança. David ficou nesse sítio até que fosse possível ir para o Sul. Desse sítio ele foi para o Rio de Janeiro.
[Nós] ficamos [em Pernambuco]. Quando o Exército entrou na minha casa, entrou pela porta do fundo e tirou apenas os livros, documentos. Mas depois deixou a polícia tomando conta da casa. A solidariedade dos meus vizinhos foi tão grande que, quando o Exército saiu, eles se arriscaram e tiraram algumas coisas que achavam importante salvar para mim, antes da polícia chegar. Depois veio a polícia para ficar na guarda da casa e levou tudo… Quando voltei só tinha os colchões. A casa estava imunda, louça quebrada… E ainda levavam mulher para dormir lá dentro. Os vizinhos limparam, arrumaram, trouxeram comida, roupa de cama. Tem uma amiga de infância da Paraíba, a Iraci dos Santos Souza, que foi uma pessoa incrível e me ajudou muito nessa época. […] A minha filha menor, Carolina, de 10 anos, tinha aprendido uma técnica de pintar em tecido. Tinha uma vizinha que fazia pesquisa da Nestlé e convidou a Cristina para ajudá-la. Eu costurava para fora, sempre gostei de costurar. Colocamos uma placa: "Pinta-se tecido. Costura-se. Ensina-se Inglês e Admissão." Quem ensinava Inglês? David, que tinha só dois anos de curso e até hoje ainda não sabe inglês. De vez em quando o pessoal do partido me dava um pouco de dinheiro. Aos poucos, fomos conseguindo o suficiente para passar esses seis meses, precariamente. Quando estava no aperto, vendia alguma coisa de mais valor. E para vir embora fui primeiro para João Pessoa, depois Campina Grande e de lá segui para o Rio de Janeiro. Rompemos o ano na Bahia, porque o ônibus quebrou. Quando finalmente chegamos, ficamos hospedados na casa de uma pessoa que havia sido companheiro do David na Revolução Espanhola, colega de turma na Escola de Aviação, o José Corrêa de Sá. A viagem durou quatro dias.
Trechos extraídos de entrevista a Valter Pomar e Waldeli Melleiro na Revista Teoria e Debate n° 23 (1° trimestre de 1994). Clique aqui para ler a entrevista na íntegra.