A imprensa alternativa era fundamentalmente dependente da imprensa chamada grande, isto é, aquela que, de uma forma ou de outra, havia contribuído para a eclosão do Golpe de 64.

A imprensa alternativa era fundamentalmente dependente da imprensa chamada grande, isto é, aquela que, de uma forma ou de outra, havia contribuído para a eclosão do Golpe de 64.

Imprensa alternativa: alcances e limites*

Por Perseu Abramo
Agosto de 1988

É difícil caracterizar com precisão o papel da imprensa alternativa dos anos 60. Uma das polêmicas a respeito ? e que muitas vezes provocava discussão na época ? era exatamente o sentido preciso da expressão “alternativa” quando aplicada à imprensa política que se fazia ou tentava fazer.

No sentido estrito do termo, essa imprensa nunca foi de fato uma alternativa à outra imprensa, à chamada grande imprensa ou imprensa burguesa. Não foi alternativa no sentido de oferecer ao leitor uma opção de leitura, do tipo que levaria um cidadão a deixar de ler o Jornal do Brasil para ler o Opinião, ou trocar O Estado de S. Paulo por Movimento. E não apenas pelo fato de a imprensa alternativa ser periódica, em contraposição aos grandes jornais diários. Porque Opinião, Movimento, Versus e tantos outros também não constituíam uma opção alternativa à leitura de Veja, Isto É, Visão etc.

A razão fundamental parece residir, em primeiro lugar, no fato óbvio de que os pequenos semanários ou mensários políticos nunca tiveram a menor possibilidade concreta de reunir recursos financeiros, materiais e humanos capazes de enfrentar a máquina poderosa da grande imprensa, e que vai se tornando cada vez mais poderosa justamente a partir da implantação da ditadura em 64 e da modernização do Estado burguês no Brasil.

Dependência contraditória
Mas isso, evidentemente, não explica tudo. Outra pista para entender o caráter real da imprensa chamada alternativa é o de que, na verdade, tratava-se muito mais de fazer um contraponto à imprensa burguesa do que efetivamente substituí-la. É como se, na Era da Ditadura, houvesse necessidade de colocar no papel o substrato de um movimento de contracultura, disperso e fragmentado sim, mas inegavelmente existente nos anos 60 e 70. Mas a contracultura só passa a ter existência real enquanto imagem invertida no espelho da cultura existente. Só existe contraponto quando existe o “ponto”. A imprensa alternativa era fundamentalmente dependente da imprensa chamada grande, isto é, aquela que, de uma forma ou de outra, havia contribuído para a eclosão do Golpe de 64 e, constrangidamente ou não, era simultaneamente sustentáculo e beneficiário da ditadura.

Dependência contraditória, evidentemente, para não dizer dialética. Era preciso que os grandes jornais e revistas dissessem alguma coisa para que os pequenos alternativos pudessem dizer o contrário, ou completar o que não fora dito, corrigir o dito, desmistificar a distorção, desvendar os mistérios reais habilmente escondidos pela palavras oficiais. Enfim, clarear o obscuro.

Essa necessidade era colocada ? provavelmente de forma inconsciente, ou pelo menos não claramente perceptível ? para os próprios jornalistas que faziam a imprensa alternativa. A maior fonte de dados e informações da imprensa alternativa era a grande imprensa (às vezes estrangeira). Os jornalistas da imprensa alternativa tinham, por óbvias razões políticas, poucos e difíceis acessos aos chamados meandros do poder, ao aparelho do Estado, ao interior das empresas, à intimidade dos principais grupos econômicos. É certo que uma ou outra vez “vazava” uma informação, uma dica, uma sugestão, trazida aqui para fora a partir de um político liberal com algum conhecimento do reinado tecnoburocrático que constituía a seiva da ditadura militar. Aí, a imprensa alternativa deitava e rolava. Mas eram raros esses casos.

A matéria-prima
O mais comum, o mais corriqueiro, é que a pauta da imprensa alternativa fosse calcada nas notícias da grande imprensa. O que se esforçava por ser alternativo era o ângulo de abordagem da matéria, os informantes ouvidos em off, a orientação oposicionista da análise e da interpretação, e, naturalmente, o posicionamento ideológico e político diante do assunto tratado, que se refletia nos títulos, nas fotos, nas charges e nos editoriais. Mas a base, a matéria-prima dos textos jornalísticos, era, na maior parte dos casos, constituída pelas informações veiculadas pela própria imprensa burguesa que se pretendia combater com uma imprensa alternativa. E isso, inevitavelmente, comprometia a qualidade, o nível, o alcance de boa parte do material da imprensa alternativa.

Essa situação vai se alterar um pouco na fase final da ditadura, nos últimos anos da década de 1970, muito mais em função das mudanças operadas no movimento social concreto do que propriamente no âmbito da imprensa alternativa. É que começa a surgir, apesar da ditadura, uma onda de resistência civil, representada pelos movimentos populares, pela luta contra a carestia, pela ação dos setores progressistas da Igreja Católica, pelas Comunidades Eclesiais de Base, pelos comitês de anistia, mais tarde pelas oposições sindicais e pela eclosão do neo-sindicalismo combativo e oposicionista. Aí então, há um movimento concreto, muitas vezes expresso por entidades e por líderes que se constituíam, por si, em fontes alternativas de informações e opiniões, e que foram largamente utilizadas pela pequena imprensa.

Os leitores
Mas não eram só os jornalistas que dependiam contraditoriamente da imprensa burguesa para fazer a sua imprensa alternativa a ela. De certa forma, os leitores também. Quem foram, de modo geral, os leitores das numerosas publicações alternativas que nasceram, floresceram e pereceram, a partir do início dos anos 60? Certamente não a grande massa. Dessa, como se sabe, infelizmente a grande maioria não tinha e continua não tendo os meios materiais e culturais, o tempo, a paciência, a disposição e o hábito de ler coisas impressas, entre as quais, os jornais e as revistas.

Dos que lêem, a grande maioria lê jornais diários da grande imprensa, principalmente os de cunho mais popular ? e populista ? e sensacionalista. O que sobra? Sobram as minguadas camadas mais esclarecidas e politizadas da grande massa, a chamada aristocracia operária dos grandes centros industriais, setores médios não alienados, os políticos, os ativistas sindicais, os quadros intermediários e centrais, os dirigentes e militantes de organizações políticas revolucionárias. Um público bastante diversificado na sua heterogeneidade, mas exíguo em número.

E mesmo esse público politizado e restrito, leitor virtual ou efetivo da imprensa alternativa, não podia dispensar a grande imprensa, a imprensa burguesa. Era ali que ele se informava, era ali que ele lia as explicações tecnocráticas, era ali que ele encontrava as versões oficiais e, de maneira mais ou menos acrítica, sofria a demolidora influência da doutrinação ideológica burguesa. Depois, ele ia conferir na imprensa alternativa. Recebia o contraponto, a contracultura, a versão da oposição.

A eficácia ou não desse duplo movimento de opinião de “esquerda” versus opinião de “direita” dependia em grande parte da capacidade do próprio leitor, em parte da qualidade das matérias dos jornais alternativos, em parte da correção da análise de conjuntura e do acerto das propostas políticas que eram elaboradas pela oposição.

A meta da unidade ampla
Nem sempre essa eficácia foi grande. Na maior parte dos casos, a imprensa alternativa se debatia entre dois extremos: apresentar ? aí sim ? uma alternativa radical à ditadura, e com isso correr o risco do sectarismo, do isolamento, da voz no vazio, sem eco; ou recuar para um mínimo denominador comum dos setores sociais os mais diversos para tentar “costurar” uma frente ampla de oposição democrática e liberal, e com isso não oferecer alternativas reais à ditadura. De certo modo, toda a imprensa alternativa do período oscilou pendularmente entre esses dois extremos, aproximando-se ora mais de um, ora mais de outro.

A meta idealizada pela imprensa alternativa, de uma oposição “comum” ? e, portanto, o menos diferenciada possível ? contra a ditadura, tinha a sua contrapartida no desenvolvimento da própria realidade política e partidária do período. O mdb ia tentando ser aquilo que a imprensa alternativa também procurava ser: a oposição, ampla para ser unida, mas, para ser ampla, indiferenciada. Talvez não seja por acaso que no final da década de 1960 e em quase toda a década de 1970, se tenha falado, no Brasil, em sociedade civil, concebida esta como a “nação” contra o Estado, ou, como aparecia maniqueistamente em muitas cabeças de então, o Bem contra o Mal, ou, ainda, como freqüentemente era interpretado por setores de extração mais popular e menos culta, da sociedade dos paisanos, dos civis, contra os militares.

Ora, mas a ditadura que foi implantada em 1964 e perdurou até meados da atual década é a ditadura da burguesia, só que operando com mãos militares. E, embora sejam inegáveis as diferenciações grupais e até pessoais dentro da burguesia (um senador liberal é diferente de um general fascista), a verdade é que a idéia, constantemente elaborada e reelaborada, de uma ampla frente democrática de oposição à ditadura acaba, na prática, deixando de lado e de fora a classe trabalhadora e as reais alternativas ideológicas e políticas ao sistema capitalista e ao regime autoritário que ele produziu nesse período da história do Brasil.

Pobre, frágil, improvisada, ousada, heróica, a imprensa alternativa não conseguiu nunca chegar a essa meta. Mas inegavelmente foi uma das forças que abalaram a ditadura e abriram perspectivas de mudanças democráticas que ainda estão por se realizar.


Artigo publicado na Revista Tempo e Presença, nº 233, em agosto de 1988.

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