Clara Charf
…”Quando o golpe se deflagrou no dia 31 de março, Marighella tentou ainda organizar a resistência na Cinelândia. Ele com alguns militantes de esquerda, estudantes e pessoas estavam ali. Isso é um fato que muito poucas pessoas conhecem”.O Marighella tinha sempre a preocupação de que as crises políticas iam se repetir até se dar o desfecho. Essa não era a opinião da maioria da direção.
…”Quando o golpe se deflagrou no dia 31 de março, Marighella tentou ainda organizar a resistência na Cinelândia. Ele com alguns militantes de esquerda, estudantes e pessoas estavam ali. Isso é um fato que muito poucas pessoas conhecem”.O Marighella tinha sempre a preocupação de que as crises políticas iam se repetir até se dar o desfecho. Essa não era a opinião da maioria da direção. Tanto é verdade que a crise foi se agravando e a direção não se preparou absolutamente em nada, nem tinha uma casa para se esconder. O golpe estava sendo preparado ostensivamente na área militar e na área civil. Nos meios de comunicação era uma coisa terrível. Basta você ver a imprensa daquela época. E o PC confiava em que o povo estava cada vez mais forte, que o golpe não viria. E essas idéias todas foram produzindo uma confiança muito grande nos quadros da direção. A análise estava errada. E como estava errada, o despreparo ficou evidenciado a tal ponto de você não tomar medidas de segurança nem com os dirigentes. Não se imaginava que fosse acontecer, então para que se preparar? A única pessoa que não foi tomada de surpresa foi o Marighella. Porque, com muito tempo de antecedência, ele começou a preparar uma casa para ele no caso de necessidade. E foi o que aconteceu. No dia do golpe, a polícia veio nos prender; subiu de elevador enquanto nós descíamos pela escada. Isso em nível pessoal. Em nível partidário, a preparação da resistência não dependia só dele, dependia do conjunto de dirigentes. Mas havia um confronto de idéias e atitudes dentro da direção e a prática revelou que Marighella tinha razão. Os fatos e a realidade comprovaram isso.
[…] Quando o golpe se deflagrou no dia 31 de março, Marighella tentou ainda organizar a resistência na Cinelândia. Ele com alguns militantes de esquerda, estudantes e pessoas que estavam ali. Isso é um fato que muito poucas pessoas conhecem. Ele achava que era inconcebível aceitar o golpe sem fazer nada. Qual era a idéia dele? É de que era preciso não deixar esfriar. Que o golpe tinha produzido um impacto muito grande no meio da população, certo? E de que era preciso fazer um chamamento ao povo para se organizar, para ver se tentava evitar todas as conseqüências posteriores. E aí fez um contato com pessoas que pensavam como ele e imprimiram o primeiro jornal chamado Resistência… Ele tentou reorganizar a resistência uma vez que o PC estava disperso. Foi quando ele foi baleado e preso, no dia 9 de maio de 1964. Como nós tínhamos saído do apartamento só com a roupa do corpo, ele manteve contato com a zeladora do prédio para que ela mandasse as cartas ou o que chegasse. Nesse contato ele percebeu que estava sendo seguido, mas não tinha certeza. Aí, o que ele fez? Como ele conhecia a região, entrou no cinema para fugir na saída. Por isso ele entrou. Era de tarde, uma matinê, cheia de crianças. E aí, quando ele entrou e se sentou, a polícia fez o cerco ao cinema e entrou atirando nele dentro do cinema. Criou um enorme pânico com crianças gritando, chorando, apavoradas com aqueles tiros. O que salvou foi que ele deu um pulo e começou a gritar: “Abaixo a ditadura militar fascista!”. […] Então, ele começou a lutar com a polícia ali dentro, mas foi sendo arrastado e começou a desmaiar, porque estava perdendo muito sangue. Quando ele chegou na porta do cinema, recuperou um pouco as forças e começou a empurrar com os pés; eram 14 policiais. Foi tão violento e tão covarde que quando eles o levaram ao hospital, nenhum hospital queria aceitá-lo. Perguntavam: “Que que é, esse homem sofreu um acidente? Foi baleado?” Como eles não podiam dizer que ele tinha sido baleado pela própria polícia, os hospitais se recusaram a recebê-lo, até que ele foi bater no Souza Aguiar, o hospital que o recebeu, tirou a bala e tudo. E quando ele recuperou os sentidos dentro do hospital, ainda pensando que estava lutando, ele continuou gritando: “Abaixo a ditadura fascista!”, aquelas coisas todas. Aí o médico falou para ele: “Marighella, você não está brigando com a polícia, você está num hospital.” Daí ele se acalmou, ficou quieto, tiraram a bala depois. Mas isso levantou um clamor. O Correio da Manhã, que havia apoiado o golpe, começou a protestar, dizendo que não tinha havido tiro no golpe de 31 de março. Que o único tiro havido no golpe era o tiro que deram no Marighella. E começou a fazer campanha denunciando o horror que foi aquilo.
[…] Marighella continuava sem contato com a direção [do PCB]. Imagina, depois do que aconteceu, eu acho que a direção não queria nem vê-lo. Houve muita crítica em cima dele. Como é que um mês e nove dias depois do golpe ele estava andando pela rua? Mas levantou uma simpatia no meio da juventude. Era o primeiro ato de resistência que aparecia contra a ditadura e que foi descrito no livro Por que resisti à prisão. Ele diz no livro mesmo que a resistência pessoal era uma atitude que ajudava a mostrar que era preciso resistir contra aquela ditadura. Quer dizer, às custas do exemplo dele mesmo, do combate que ele travou sozinho ali, naquele momento.
[…] Aí é o período em que ele procura travar a polêmica no terreno das idéias, foi mais forte porque houve a tal desagregação do partido naquela época, tal a falta de orientação, ninguém sabia o que fazer, ficava todo mundo esperando. Após o golpe, a situação ficou pior do ponto de vista econômico, o custo de vida, a carestia, o desemprego, a falta de liberdade. Estava todo mundo descontente, mas pouco a pouco o povo foi se reorganizando. Você vê pelo processo de resistência dos estudantes. Para o movimento operário foi bem mais difícil porque tudo era muito perseguido. Agora, o Marighella estava nessa batalha de tentar ganhar o partido para uma outra concepção sobre como conduzir a luta daí para frente. Ele escreveu dois livros e defendeu suas teses no processo de preparação do VI Congresso. Foi contra todas as teses revisionistas que circulavam, principalmente no comitê de São Paulo, e as idéias dele foram ganhando corpo dentro do partido. Então, nesse ambiente foram preparadas as discussões e depois o próprio congresso, mas aí aconteceram coisas incríveis. A direção tentou criar obstáculos contra a livre expressão das pessoas que tinham idéias contrárias à sua. Eu mesma não pude participar porque não me pegaram para ir ao local do congresso. Aqui em São Paulo as teses do Marighella foram vitoriosas. Quase por unanimidade. […] A traição começou por aí. A direção nacional ajudou a criar uma direção estadual paralela que se contrapunha a essas teses vencedoras. Você entende? Daí é que ele foi vendo que não havia condições, foi aí que ele foi perdendo definitivamente a crença na possibilidade de continuar lutando dentro do partido.
Trecho extraído de entrevista concedida a Maria Rita Kehl e Paulo de Tarso Venceslau, na Revista Teoria e Debate, nº 8, (4º trimestre de 1989). Clique aqui para ler a íntegra da entrevista.
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