Lincoln Secco
Marcos Cordeiro Pires
Eles se autoproclamam não racistas e acusam os negros desse crime. Escondidos atrás da cortina da “democracia racial” brasileira e apavorados com a legalização de políticas compensatórias reivindicadas pelos movimentos sociais, representantes do pensamento conversador do país usam todos os sofismas possíveis nos meios de comunicação para, a pretexto de defender direitos para todos, manter a população negra no degrau debaixo. Se possível, ainda na senzala…
Duas frentes de luta contra a adoção de cotas pelo Estado brasileiro têm chamado a atenção [1]. No Parlamento e na Justiça, o DEM (Partido dos Democratas), fiel intérprete do pensamento conservador, lidera os questionamentos à transformação em lei de demandas do movimento negro. A segunda frente é a mídia. Não por acaso, recentemente dois livros foram lançados para combater o que eles chamam de “políticas racialistas” do Estado.
Em 2006, Ali Kamel, diretor da Central Globo de Jornalismo, fez publicar um livro com o título autodefensivo Não Somos Racistas. Agradecendo à família Marinho pela “pluralidade de ideias” que a Rede Globo garante, o autor escreveu um libelo contra o que chama de “nação bicolor”, a qual apagaria a mestiçagem brasileira.
Menos original, o jornalista e sociólogo, doutor em Geografia pela USP, Demétrio Magnoli lançou com grande apoio da imprensa escrita e falada, em 2009, a obra Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial. Se por um lado repete algumas ideias de Kamel, por outro adensa muitas análises e faz retrospectivas sutis para reforçar a tese central daquele: somos um povo único, mestiço, e a promoção de cotas institui o ódio racial entre nós.
Magnoli faz incursões cirúrgicas e seletivas em várias regiões e épocas da História para repor aquela tese central. Todavia, suas derrapagens são sempre sutis. Um leitor desavisado sempre achará estranho ver num mesmo rol o Mein Kampf de Hitler, o “racialismo” de Evo Morales, a “mitificação” de Palmares, a “depreciação” da Abolição por parte de uma “elite negra”, a “ocultação” de que a escravidão na África já existia antes do tráfico internacional introduzido por europeus e o “fato” de que a escravidão mercantil só perdurou com o apoio de elites e Estados africanos que apresavam outros negros e os vendiam aos brancos.
Cada um desses argumentos é uma meia-verdade e, por isso mesmo, uma meia-mentira. Cada um deles é sofisticado o suficiente para isentar o autor da manifestação de um sentimento racista. Quando o livro se volta para o genocídio de Ruanda, ele diz que em 1973 uma lei limitou a “9% as vagas que poderiam ser preenchidas por candidatos tútsis” ao funcionalismo. Bem, como decênios depois houve um massacre de tútsis, podemos imaginar que as cotas e a “recriação” da História por ideólogos e historiadores hútus foram os responsáveis [2]. O autor quer nos induzir a acreditar, maliciosamente, que quaisquer cotas raciais levam a genocídios. Além disso, o que ele não quer perceber é que lá as cotas limitavam o acesso de um grupo étnico, já no Brasil, ao contrário, incentivam a integração dos negros e pobres em universidades. Ainda assim, o autor poderá sempre afirmar que não fez tal ilação. Afinal, ele não é racista.
Assim como Magnoli, outros autores, de ontem e de hoje, buscam se escorar numa cientificidade acadêmica e distorcer a realidade com o objetivo de frear a ascensão social e o consequente aumento da concorrência em setores em que a elite branca local sempre teve 100% das cotas. Vejamos a seguir.
O Haiti é aqui
Já no século 19 o ensaísta Silvio Romero dizia que “o negro é um ponto de vista vencido na escala etnográfica, e o Brasil não é, não deve ser, o Haiti”. De certa forma, a imagem haitiana contida na afirmação de Romero evoca duas categorias de problemas que permeiam a vida social brasileira: a arrogância de uma elite que tem seu poderio político e econômico baseado na escravidão e um medo incontido de uma revolta das classes populares contra os próprios privilégios. Por conta disso, qualquer contestação das classes subalternas foi combatida com a maior ferocidade pelas forças militares da ordem, como expressão desse medo incontido de um levante da maioria massacrada.
Para amenizar esse receio, já sob a lógica de uma ordem capitalista em que formalmente as pessoas deveriam ser iguais, são entronadas as ideias de Gilberto Freyre acerca da brandura do escravismo brasileiro e de seu grande legado, que foi a “tolerância” criada por nossa mestiçagem. Em contraposição, tem-se a violenta experiência norte-americana que situou o debate no “branco e preto”, sem concessões para qualquer dégradé. O ideário freyriano cria a ideologia oficial brasileira sobre o debate racial no Brasil, valorizando o mestiço e a democracia racial e fazendo vistas grossas a todo tipo de sordidez a que é submetida diariamente a população negra brasileira.
O receio do imaginário haitiano ou qualquer outro que possa inspirar as camadas populares a questionar a ordem vigente traz consigo a face menos cordata da elite brasileira e de seus aparelhos no Estado, não só o aparato repressivo, mas a pena e a boca de certa fração da intelectualidade, que busca justificar a realidade social do país como “o melhor dos mundos possíveis, em constante progresso civilizatório”. Em verdade, deparamos com uma situação de completa marginalização a que estão sujeitas parcelas significativas da população brasileira, marginalização essa que, em última instância, é atestada pelas disparidades de renda que separam negros e não negros.
Por outro lado, quando se procura encontrar mecanismos para minorar essa situação angustiante, como políticas de reforma agrária ou ações afirmativas, parcela dessa intelectualidade, fortemente enraizada na Universidade e na imprensa, busca desacreditar os movimentos sociais. Isso vale tanto para o movimento negro organizado como para as lutas dos trabalhadores rurais sem terra, que se irmanam com os negros como alvos preferenciais das elites.
Especificamente quanto ao primeiro caso, os detratores de qualquer iniciativa política que signifique melhorias para a população negra no Brasil usam argumentos sutis para se contrapor às ações afirmativas. Kamel e Magnoli são meros musicistas numa orquestra bem articulada. Tomemos outro exemplo característico: o Manifesto contra as Cotas Raciais, assinado por parcela da intelectualidade dita “progressista”.
Queremos um Brasil onde seus cidadãos possam celebrar suas múltiplas origens, que se plasmam na criação de uma cultura nacional aberta e tolerante, no lugar de sermos obrigados a escolher e valorizar uma única ancestralidade em detrimento das outras. O que nos mobiliza não é o combate à doutrina de ações afirmativas, quando entendidas como esforço para cumprir as declarações preambulares da Constituição, contribuindo na redução das desigualdades sociais, mas a manipulação dessa doutrina com o propósito de racializar a vida social no país [3].
A esses argumentos poderíamos acrescentar outros, pinçados aqui e ali em debates em comissões parlamentares, programas de entrevistas, fóruns de alguns partidos ditos “de esquerda” ou outras fontes impressas. Por exemplo: o Brasil é uma “democracia racial e a exclusão decorre menos da cor da pele do que da condição social”; o país não precisa importar “modelos norte-americanos que não se aplicam ao Brasil”; “a contradição fundamental da sociedade brasileira é a luta entre exploradores e explorados e soluções parciais visam arrefecer o fervor revolucionário das massas”; “políticas universalistas são a melhor solução para as desigualdades sociais no Brasil”; e “a introdução de mecanismos de promoção social baseados na raça tende a criar conflitos raciais até então inexistentes no Brasil”.
Mais uma vez, meias-verdades e meias-mentiras. Em abstrato, todas são verdadeiras. Na vida concreta tornam-se o seu contrário, ou seja: frases ocas que visam impedir a igualdade racial. Não é difícil entender que pelo próprio movimento de suas antinomias internas os belos princípios do Iluminismo se inverteram e serviram por muito tempo para impedir as mulheres, por exemplo, de exercitar sua diferença e, assim, obter direitos iguais.
O manifesto contra as cotas se previne contra isto: “As leis que oferecem oportunidades de emprego a deficientes físicos e que concedem cotas a mulheres nos partidos políticos são invocadas como precedentes para sustentar a admissibilidade jurídica de leis raciais. Esse segundo sofisma é ainda mais grave, pois conduz à naturalização das raças. Afinal, todos sabemos quem são as mulheres e os deficientes físicos…”.
E isso é bem verdadeiro. Como dizia o velho Marx, “um negro é um negro, só em certas condições ele se torna um escravo”. Nunca foi difícil reconhecer um escravo. Assim como hoje, à polícia, aos porteiros de prédio e aos professores universitários não tem sido difícil reconhecer os negros (em sua maioria pobres ou com essa marca em sua pele e em seu corpo). É certo que os signatários do manifesto, mesmo sendo intelectuais, nunca foram gentilmente abordados à porta de um centro cultural ou de uma megastore com a frase: “Pois não?” E ninguém lhes deu, num estacionamento, a chave para manobrar o carro.
Um sofisma interessante é mencionado pelo discurso antipolíticas compensatórias, quando afirma indiretamente que os racistas são os negros e, mais ainda, quando os acusa de atentar contra os princípios da Constituição ao manipular os preceitos de redução das desigualdades sociais, “com o propósito de racializar a vida social no país”. Isto é uma impostura: criminalizar a vítima e vitimizar o criminoso! Ora, a vida social do país já é racializada, o que cabe agora é lutar para que ninguém crie obstáculos a outras pessoas por conta de sua cor de pele, o que implica adotar políticas que reparem o massacre a que foi submetida a população negra no Brasil.
Diante dessas questões, como pode um intelectual dizer que políticas compensatórias seriam um grave atentado ao Estado democrático porque racializariam a política e criariam um perigoso potencial de conflitos para o futuro? De onde viria esse “perigo haitiano”? Das populações negras que seriam beneficiadas por ações que minorassem seu calvário ou de ressentimentos de parcela racista da população branca que viu sua cota de privilégio mitigar de 100% para 80%?
Em defesa de quem?
Sofisma, todos sabem, é uma maneira de induzir ao erro por meio de argumentos aparentemente lógicos, como vimos. Um bom sofista pode até mesmo fazer uma inesperada defesa da classe trabalhadora e de tradicionais bandeiras da esquerda. O jornalista Ali Kamel, por exemplo, criticava o Bolsa Família por supostamente não atender aos mais pobres. Outros insistem em lembrar o quanto o “PT radical” dos anos 80 era bom para o país. Agora, o partido teria abandonado o socialismo… É evidente que o leitor bem informado sabe que eles nunca ligaram para trabalhadores e nunca gostaram do PT, radical ou não. O jornalista Magnoli segue pela mesma via. No capítulo de seu livro intitulado “A cor da pobreza“, mostra como a desigualdade não se dá pela raça, e sim pela renda. Decerto saudoso de seus tempos engajados à esquerda, o professor apoia o “Movimento Negro Socialista”, que seria estimulado por uma tendência de natureza trotskista e reafirma o critério “de classe”. Se não conhecêssemos suas outras opiniões, é do que se trata, poderia até ser confundido com um marxista ortodoxo. Para difundir a ideia de que as cotas só servem a uma “burguesia negra”, distorce a estatística e se vale da exceção da UnB para negligenciar o fato de que as universidades brasileiras, em geral, usam o critério étnico combinado com o econômico. A cota não é só racial, é também para alunos (quase) brancos de escola pública.
Se a igualdade vigorasse e estivéssemos todos numa sociedade socialista, cotas talvez fossem desnecessárias. Até lá (ou talvez antes) elas precisarão ser usadas. De certa maneira, os críticos têm uma razão. Elas não foram pensadas para ajudar os negros a se conscientizarem. Sua consciência é forjada por eles próprios em sua vida social. Elas servirão para educar as elites brancas, pois agora terão de olhar os ex-escravos na mesma mesa, na mesma sala, na mesma escola.
Lincoln Secco é professor de História Contemporânea na USP;
Marcos Cordeiro Pires é professor de Economia na Unesp Marília (SP).
Notas
[1] Retiramos o título de um discurso do deputado Emiliano José -PT-BA (Câmara dos Deputados. 11/8/2009).
[2] Ignora o geógrafo que a delimitação das fronteiras que colocaram tútsis e hútus em diferentes Estados nacionais (Ruanda, Congo, Burundi, Tanzânia e Uganda) decorreu do imperialismo europeu que, em 1885, retalhou o continente africano na Conferência de Berlim e que os processos de independência não conseguiram superar esse pecado original de cada novo Estado nacional?
[3] Cidadãos Antirracistas contra as Leis Raciais. Disponível em: http://www1.folha.uol.com. br/folha/educacao/ult305u401519.shtm
Fonte: Teoria e Debate, nº 85, 01 de novembro de 2009. Acervo: CSBH/FPA.
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