Ostras à milanesa, na mesa do restaurante, dão-me a impressão de coisa fenecida e insincera.

Ostras à milanesa, na mesa do restaurante, dão-me a impressão de coisa fenecida e insincera.

Ostra*

Por Perseu Abramo
24/11/1961

Depois que cortei a mão tentando abrir uma ostra com um facão de ponta, ensinaram-me que ostras abrem-se levando-as ao forno, ou à chapa ou numa panela sem água sobre o fogo.Do corte curaram-me cirurgiões amigos, mas do gosto inexplicável de comer ostras espero que me não curem.

Deve haver ? acredito que haja ? maneiras numerosas e variegadas de cozer e comer ostras. Mas prefiro a que sempre usei: recém arrancadas da rocha, com o salgado e o iodado do mar, com grãos de areia cinzenta nos reconcavos pedregosos, mas principalmente com a resistência e o pudor virginais das conchas que se não abrem. Levá-las ao forno brando pode ser mais rápido e menos perigoso, mas me parece desleal: é a persuasão subreptícia, é a propaganda subliminal (abre-te sésamo, senão estás frito), é a coerção, a coação, a cocção. O que as torna tão saborosas e desejadas é ? acho ? que é preciso rompê-las violentamente, supreendê-las vivas, sugá-las ao seu natural. Ostras à milanesa, na mesa do restaurante, dão-me a impressão de coisa fenecida e insincera. O bom é sopesá-las, descobrir-lhes o ponto fraco, abri-las com decisão, comê-las ainda enquanto se rebelam. E acho ? não tenho certeza, que elas se sentem mais orgulhosas, de um férreo orgulho ostral, quando são assim despertas para a luta e para a morte, conquistadas sem piedade, devoradas com triunfo e sofreguidão.

E se vocês não acreditam permitam-me que lhes conte uma história que me contaram: era uma vez uma ostra que vivia no fundo do mar, agarrada a um rochedo milenar. Passavam tubarões, cações, mexilhões e gerações, mas a ostra não se mexia, imóvel, quieta, parada, silenciosa. Corroia-lhe o calcáreo uma angústia pungente, profunda e ardente: queria, feminina como era, exibir-se e servir, quer como pérola no colo resplandecente de afamadas damas, quer como fumegante especiaria na mesa adornada de gastrônomos exigentes. Não lhe sorria a sorte, porém, e, amargurada e frustra, assim vivia a ostra, fechada em si mesma, ensimesmada e muda. Lá um dia Netuno, a quem aborrecia tão soturno súdito, de súbito resolveu conceder-lhe a graça de concretizar-lhe o sonho: soltou-a por artes de magia e mandou-a à tona. Pescada e aberta, tinha uma pérola. Foi, como pretendia, adornar alvos e ricos pescoços. Mas logo percebeu que, se antes era ostra, agora não era nada: havia deixado de ser, para se tornar outra coisa, coisa nenhuma, um colar. Netuno percebeu que não lhe havia obtido a felicidade. Ainda por artes de magia, trouxe-a de volta ao mar, transformou-a novamente em ostra e a fez mercadoria nas mãos do cozinheiro de escrupuloso anfitrião. Foi servida ao jantar, mas aniquilou-a nova decepção: os convidados gabaram ao dono da casa o bom gosto, ao cozinheiro o molho, à Patria as marítimas virtudes, mas nem uma palavra à ostra. Levou-a novamente Netuno para o fundo do mar, como ostra, agarrada ao rochedo milenar, muda e fechada.

E só assim, fosca, agreste, crosta, selvagem, virgem, bárbara, pré-histórica, pedra, digna, poética, misteriosa, agressiva, rude e só, a ostra se sentiu ostra, ostra, ostra.


* Publicado no jornal O Estado de São Paulo – Suplemento Feminino

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