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No último 13 de novembro completou-se quatro anos da ação militar da organização política Frente Polisário, que defende a autodeterminação do povo da República Árabe Saarauí Democrática (RASD), em retomar as armas contra o exército marroquino. A ação armada foi justificada pelo grupo de resistência saaraui que acusa o Marrocos de romper um acordo de cessar-fogo de quase 30 anos.

De certo modo foi uma ação que contribuiu apara retirar do silêncio quase obsequioso um conflito tanto mais ocultado porque ele representa uma forte interpelação à permanência nas relações internacionais da modelagem colonial que ainda caracteriza a estratégia das grandes potências econômico-militares de estabelecer os termos de ratificação de seus interesses hegemônicos globais.

O Brasil é um dos únicos países da América Latina a não reconhecer a soberania do Saara Ocidental, o que destoa da tradição diplomática brasileira. Com efeito, O Brasil é um dos três países da América do Sul que não reconhecem a soberania da República Árabe Saaraui Democrática, ao lado da Argentina e do Chile. Por esse motivo, o Itamaraty não mantém relações diplomáticas com o Saara Ocidental, mas reconhece a Frente Polisário como o único e legítimo representante do povo saaraui.

Marcado pela colonização, o território do Saara Ocidental foi dominado pela Espanha a partir de 1884. E a realidade atual de sua luta política por autodeterminação decorre de uma condução canhestra, como é comum nos processos de descolização, conduzido pelo colonizador.

A resistência saaraui se estabeleceu, ao longo da primeira metade do século 20, até os processos de independência de países no norte da África, quando se reacendeu a expectativa de autodeterminação do povo saaraui.

O Saara Ocidental deixou de ser considerado colônia em 1950, quando a Espanha transformou o território na 53ª província espanhola. E, mm 1975, em meio à crise política na Espanha, após a morte do ditador Francisco Franco, o país europeu assinou o acordo de independência e divide a administração do Saara Ocidental entre Mauritânia e Marrocos, firmado nos “Acordos de Madrid”, em relação aos quais a Corte Internacional de Justiça (CJJ), por sentença, estabeleceu a ausência de lastro legal para a decisão espanhola.

A Espanha se retirou do território em 1976, iniciando um conflito da resistência saaraui contra Marrocos e Mauritânia. Nesse momento, a Frente Polisário funda a República Árabe Saaraui Democrática (RASD), na cidade de Bir Lehlou.

Desde então, com nuances, os incidentes desse processo de libertação, ora no campo das negociações, ora no campo cruento armado, vem deixando um lastro de violência, em cuja conta se inclui uma alta cota de sofrimento. Hoje, só nos campos da Argélia, vivem 165.000 refugiados saarauís da RASD (República Árabe Saarauí Democrática).

E, na atualidade, agravando a complexidade de interesses que movem o xadrez ainda colonial, na sua intensidade neocolonial, resulta ainda mais agressiva a voracidade sobre o território do Saara Ocidental que detém as maiores jazidas de fosfato do mundo, reservas de cobre, urânio e ferro, além de uma costa rica em frutos do mar.

No início de outubro, a luta por autodeterminação do povo saaraui acumulou vitória depois que o Tribunal de Justiça Europeu anulou dois acordos comerciais firmados em 2019 com o Reino de Marrocos nas áreas de agricultura e pesca. Na decisão, a Corte estabeleceu que a Comissão Europeia violou o direito das pessoas no Saara Ocidental ao não consultá-las sobre acordos comerciais com o Marrocos, país que investe unilateralmente da titularidade sobre um território e sobre a soberania de um povo prorrogando com suas ações e as alianças que as abonam, uma situação de fato enquanto não se completa o processo internacional de reconhecimento da autodeterminação do povo Saaraui.

Num Encontro Internacional de Juristas sobre o Sáhara Ocidental, realizado na wilaya de Auserd, nos acampamentos de refugiados saharauis, durante os dias 5 e 6 de dezembro de 2024, foram fixados alguns entendimentos. O mais importante talvez o que considera, de conformidade com as sentenças do Tribunal de Justiça Europeu (sentenças datadas de 4 de outubro de 2024), “a nulidade dos Acordos da União Europeia-Marcas sobre a Associação Comercial e de Pesca”, com o fundamento de alta relevância com repercussão para situações similares, quanto “a necessidade dos ditos Acordos, na medida em que afetam al território do Sahara Ocidental, deve contar com o consentimento do Pueblo Saharaui, titular do direito de autodeterminação, que não pode ser substituído pelo consentimento da população assentada no Saara Ocidental após a ocupação”, ilegal à luz do direito internacional.

Os juristas também se manifestaram sobre outros aspectos gravíssimos, levados a juízo crítico em seu encontro, concluindo por considerar que “Em uma ordem mundial baseada em normas, a lógica da força não pode ser uma opção. A única opção é defender os princípios do Direito Internacional e levar a bom porto a descolonização do Sahara Ocidental através da expressão livre, autêntica e democrática da vontade soberana do Povo Saharaui no exercício do seu direito inalienável à determinação livre e à independência. Esta é a única via que pode levar a uma solução justa e duradoura que restaure a paz, a segurança e a estabilidade no Norte de África, em particular, o envio de uma missão de investigação, adotada pelo chefe de chefes de estado e governos em 2013. -A ONU, responsável por implementar as resoluções sobre o direito de autodeterminação, assim como as denúncias sobre tortura, detenções arbitrárias, desaparições forçadas, direitos económicos, sociais e culturais”.

Tendo em vista ainda as conclusões dos juristas, com eles deve-se concordar que o caso do Saara Ocidental é emblemático não apenas como uma questão de colonialismo clássico, mas também de colonialidade . Nesse enquadramento, há limites e responsabilizações a estabelecer em relação à conduta dos países e das organizações que têm tido ingerência, cabendo a União Africana a responsabilidade de implementar sua Carta de Direitos Humanos e dos Povos, além de enviar missões de investigação para determinar violações a direitos e a assegurar o RASD como o representante soberano do povo saharaui, baseando-se na legalidade africana, conforme suas próprias resoluções e atas; assim como a ONU, que deve garantir a implementação de resoluções que reconheçam o direito de autodeterminação do povo saharaui.

Na síntese de seu posicionamento os juristas sufragam a convicção de que a situação do Saara Ocidental reflete uma luta desigual onde prevalece a lógica do poder e a realpolitik, revelando uma perspectiva colonial, “originada de uma má descolonização” que não seguiu os preceitos sobre autodeterminação dos povos estabelecidos na década de 1960 pela Organização das Nações Unidas.

Sem o cumprimento dessas responsabilidades por parte dos atores envolvidos torna-se improvável avançar para uma solução justa e duradoura baseada na autodeterminação e nos princípios do direito internacional, prorrogando a perspectiva colonial, que não seguiu os preceitos sobre autodeterminação dos povos estabelecidos na década de 1960 pela Organização das Nações Unidas, orientados segundo princípios da sua Carta Magna expressos no enunciado de que “todo povo oprimido tem direito de conquistar autodeterminação”.

E muito menos, às diretrizes dos principais enunciados que se inscrevem nas declarações e nos pronunciamentos dos países e povos, valendo convocar a assembleia internacional, que a então recém- formada Liga para os Direitos e Libertação dos Povos conseguiu fazer reunir em Argel, quando elaborou um documento notável: a Declaração Universal dos Direitos dos Povos (1976).

Este documento ‘não oficial’ aparece nos mais qualificados repertórios de direitos humanos e, resultante do acordo de reconhecimento de direitos subjetivos de indivíduos, grupos e povos, conscientizados e afirmados, se inscreve na dinâmica de princípio e ação das personalidades e dirigentes que o subscreveram.

Fiz aplicação desse documento quando participei (1991), do Colóquio Internacional de Argel – Encontro de Personalidades Independentes, sobre o tema “Crise du Golfe: la Derive du Droit”. Essa aplicação se prestou o debate daquela conjuntura – o Colóquio se instalou no dia do cessar-fogo d 1ª guerra do Golfo – e penso que se se presta ainda. As suas disposições sobre direitos à existência, à autodeterminação política, a padrões econômicos, à cultura, ao meio ambiente e aos recurso naturais, à identidade das minorias, organizam eficazes sistemas de garantias e sanções que concretizam sua efetividade e positivação no contexto contraditório de antagonismos éticos nacionais e internacionais.

O preâmbulo deste documento designa estas contradições para estabelecer, em consequência, os fundamentos éticos: “Estamos vivendo tempos de grandes esperanças, mas também de profundas inquietudes; tempos cheios de conflitos e de contradições; tempos em que as lutas de libertação levantaram os povos do mundo contra as estruturas nacionais e internacionais do imperialismo e lograram derrubar sistemas coloniais; tempos de lutas e de vitórias em que as nações assumem, entre si ou no seu interior, novos dias de justiça; tempos em que as resoluções das Nações Unidas, desde a Declaração Universal dos Direitos do Homem até a Carta dos Direitos e Deveres Econômicos dos Estados exprimiram a busca de uma nova ordem política e econômica internacional” (SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. A Crise do Golfo: a Deriva do Direito in SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Sociologia Jurídica: Condições Sociais e Possibilidades Teóricas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 133-144).

São assim muito bem-vindas as tentativas de reverter essa posição, como a da deputada federal Erika Kokay (PT), do Distrito Federal, em movimento de articulação para a criação do Grupo Parlamentar Brasil-Saara Ocidental, com objetivo de pressionar o governo brasileiro a estabelecer relações diplomáticas com a República Saaraui.

Também a iniciativa, em maio de 2024, da Câmara Legislativa do Distrito Federal instalando uma sessão solene em comemoração aos 51 anos da Frente Polisário. Na ocasião, representantes da Associação de Solidariedade e Pela Autodeterminação do Saara Ocidental (ASAHARA), fundada na capital brasileira em 2018, e parlamentares reivindicaram a criação de uma embaixada do país no Brasil.

A presença de representante da Frente Polisário em Brasília, nesses eventos e articulações, tem sido um indicativo da incidência política no governo federal pelo reconhecimento da RASD. Atualmente, 82 países reconhecem a independência do Saara Ocidental.

Para o representante Ahmed Mulay, “o mundo enfrenta uma “séria crise do capitalismo”, em que os povos lutam por justiça e para recuperar direitos e riquezas”. Para o representante, as grandes potências do Ocidente não têm respeitado isso, além de estarem acabando com a terra e com a natureza. É preciso eleger a estabilidade mundial antes de pensar em ganhar. A terra oferece riquezas para todo o mundo, mas infelizmente o Ocidente não tem essa filosofia. É uma nova forma de escravidão, goste você ou não. E apenas a união dos povos pode reverter isso.” (https://operamundi.uol.com.br/especial/ultima-colonia-na-africa-retomada-das-armas-pela-resistencia-saaraui-completa-quatro-anos/).

Em continuidade a essas agendas é preciso seguir debatendo temas convoquem posições em favor da autodeterminação do povo saharaui; da soberania permanente dos povos sobre seus recursos naturais; da apuração de crimes de guerra e a aplicação dos direitos humanos e do direito internacional humanitário com a responsabilização de agentes, autoridades e governos violadores e perpetradores desses crimes e da prevenção à guerra híbrida na forma de lawfare contra ativistas e jornalistas que denunciam essas violações.

É certo, diz o representante da Frente Polisário no Brasil Ahmed Mulay, “que só nós mesmos temos que buscar a forma de conseguir nossa independência”. Mas – ele completa em entrevista concedida a Esquerda Diário (https://esquerdadiario.com.br/Entendemos-que-so-nos-mesmos-temos-que-buscar-a-forma-de-conseguir-nossa-independencia-entrevista) – “além disso, estamos tentando convencer a sua excelência, o presidente Lula, para que trate a causa saharaui como tem tratado a causa palestina. Ele recebeu representação da Palestina, depois deu um passo adiante e reconheceu a República de Palestina e permitiu a existência de uma embaixada da Palestina no Brasil. Ele já reconheceu a Frente Polisário, mas queremos que avance e reconheça a República Árabe Saaraui Democrática e nos permita abrir uma embaixada junto com a embaixada da Palestina em Brasília. Essa é a nossa luta e por isso precisamos de vocês e todos os que vocês conhecem, dos meios, para que mobilizemos a opinião internacional e possamos chegar a este objetivo”.

(*) José Geraldo de Sousa Junior é professor titular na Faculdade de Direito e ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB)

José Geraldo de Sousa Junior é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Associação de Ensino Unificado do Distrito Federal – AEUDF, mestre e doutor em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. É também jurista, pesquisador de temas relacionados aos direitos humanos e à cidadania, sendo reconhecido como um dos autores do projeto Direito Achado na Rua, grupo de pesquisa com mais de 45 pesquisadores envolvidos.

Professor da UnB desde 1985, ocupou postos importantes dentro e fora da Universidade. Foi chefe de gabinete e procurador jurídico na gestão do professor Cristovam Buarque; dirigiu o Departamento de Política do Ensino Superior no Ministério da Educação; é membro do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB, onde acumula três décadas de atuação na defesa dos direitos civis e de mediação de conflitos sociais.

Em 2008, foi escolhido reitor, em eleição realizada com voto paritário de professores, estudantes e funcionários da UnB. É autor de, entre outros, Sociedade Democrática (Universidade de Brasília, 2007), O Direito Achado na Rua. Concepção e Prática 2015 (Lumen Juris, 2015) e Para um Debate Teórico-Conceitual e Político Sobre os Direitos Humanos (Editora D’Plácido, 2016).